Sem fronteiras

Dupla nacionalidade não gera implicações jurídicas

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17 de agosto de 2007, 0h00

O principal fato motivador da elaboração deste artigo decorreu da leitura do artigo 12 da Constituição Federal, a qual trata sobre a nacionalidade. De tal leitura originou uma questão intrigante: há implicações jurídicas ao militar estadual que adquirir a dupla cidadania?

Bem sabemos que por força da legislação internacional (como por exemplo, a União Européia) há alguns países que ao reconhecerem a “dupla cidadania” preconizam aos “novos cidadãos” direitos e, por conseguinte, deveres como o de ser convocado quando de um conflito internacional.

Assim, procuraremos alinhavar, brevemente, algumas considerações sobre o acima mencionado e os reflexos aos militares estaduais. Inicialmente, cumpre-nos destacar que o termo jurídico correto para delimitarmos o tema é o “reconhecimento de nacionalidade” e não “cidadania”, pois, cidadania é a expressão que identifica a qualidade da pessoa que, estando na posse de plena capacidade civil, também se encontra investida no uso e gozo de seus direitos políticos, não se aplicando, portanto, ao assunto aqui proposto. (Silva, de plácido e. Vocabulário Jurídico. Editora Forense, 15ª Ed. p.168, Rio de Janeiro, 1999).

Partindo-se dessa premissa, Alexandre de Moraes define nacionalidade como “o vínculo jurídico político que liga um indivíduo a um certo e determinado Estado, fazendo deste indivíduo um componente do povo, da dimensão pessoal deste Estado, capacitando-o a exigir sua proteção e sujeitando-o ao cumprimento de deveres impostos” (grifo nosso — Moraes, Alexandre de.Constituição do Brasil Interpretada. Editora Atlas. 2ª Ed. p.513, São Paulo-2003).

Buscando ainda os ensinamentos do renomado autor, verifica-se que a doutrina, com base na Constituição Federal, distingue duas espécies de nacionalidade: a originária, resultante da origem sanguínea (ius sanguinis) ou da origem territorial (ius soli) e a secundária ou adquirida, resultante da aquisição por vontade própria, após o nascimento, em regra pela naturalização.

Feitas tais considerações, trazemos à baila novas questões: é possível perder a nacionalidade brasileira? Pode um militar estadual adquirir outra nacionalidade? Haverá implicações jurídicas?

Muito bem. Dissecado o conceito e abrangência do termo “nacionalidade”, cumpre-nos fundamentalmente destacar que as regras de aquisição da nacionalidade estão preconizadas na Constituição da República especialmente no artigo 12.

Nesse diapasão, a CF/88, dispõe, também, sobre a perda da nacionalidade, senão vejamos, no §4º e incisos do aludido artigo.

Assim, a perda da nacionalidade somente ocorrerá nas hipóteses constitucionais e, diga-se de passagem, taxativas.

A segunda hipótese de perda da nacionalidade, prevista no inciso II, do citado artigo, é aplicável tanto aos brasileiros natos quanto aos naturalizados. Nesse sentido, o brasileiro (nato ou naturalizado) perderá, em regra, sua nacionalidade quando voluntariamente adquirir outra.

Nesse diapasão, constata-se que é possível, portanto, através das regras constitucionais, o brasileiro e, para o caso aqui proposto militar estadual perder a nacionalidade. Cumpre-nos, entretanto, discorrer as implicações jurídicas (casos existentes) na hipótese acima levantada referente aos militares estaduais.

Conforme leitura do texto constitucional, o brasileiro (nato ou naturalizado) somente perderá a nacionalidade, quando, conforme já mencionamos, espontaneamente, adquirir outra nacionalidade. É imperioso, entretanto, para que a previsão constitucional seja levada a efeito, a observância dos seguintes requisitos :

1) voluntariedade da conduta;

2) capacidade civil do interessado;

3) aquisição da nacionalidade estrangeira.

A doutrina tem se manifestado no sentido de que a mera formalização perante o Estado estrangeiro, de pedido que vise à obtenção da nacionalidade desejada não traz por conseqüência, por si só, a perda da nacionalidade, que supõe efetiva aquisição da nacionalidade estrangeira.

A perda da nacionalidade somente será concretizada através da anuência do presidente da República, materializada por decreto e precedida por procedimento administrativo iniciado por requerimento do interessado ao Ministério da Justiça.

Com efeito, as regras aplicáveis à perda da nacionalidade são extremamente formais. Tanto é assim que o brasileiro que tenha adquirido voluntariamente outra nacionalidade, sem ainda haver sido efetivada através de decreto presidencial, continuará a ser cidadão brasileiro e a autoridade consular deverá abster-se de apor visto em passaporte estrangeiro.

O rito administrativo a ser adotado pelo interessado em adquirir outra nacionalidade, privando-se da brasileira é regido pela Lei Federal 818, de 18 de setembro de 1949 (recepcionada pela Constituição Federal), a qual regula a aquisição, perda e a reaquisição da nacionalidade e a perda dos direitos políticos.

Nessa linha, a Emenda Constitucional de Revisão 3, de 07 de junho de 1994, passou a admitir expressamente a dupla nacionalidade, constituindo-se as alíneas “a” e “b”, inciso II, § 4º, artigo 12, da Constituição Federal, como vimos.

Do exposto, extraem-se dos textos legais algumas considerações:

1. o militar estadual que adquirir outra nacionalidade através do reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira (como por exemplo, a Itália que reconhece aos descendentes de seus nacionais a cidadania italiana) constituirá em hipótese de dupla nacionalidade, não implicando, portanto, em conseqüências jurídicas para a condição de militar;

2. o militar estadual (hipótese mais remota dada à natureza da atividade policial militar) que adquirir outra nacionalidade através da imposição de naturalização pela norma estrangeira, como condição para permanência em território ou para o exercício de direitos civis, também não trará efeitos jurídicos para a condição de militar.

Nesse sentido, conclui-se, inicialmente, que a aquisição de outra nacionalidade por militar estadual, não colide com o ordenamento infraconstitucional existente, não implicando, por conseguinte, em reflexos à condição de servidor.

Resta-nos, por fim, explorar a hipótese em que o militar estadual adquire outra nacionalidade, sem constituir as exceções constitucionais acima estudadas.

Como exaustivamente demonstrado não há implicações, em nosso entender, ao militar estadual que adquirir outra nacionalidade fundamentada, em especial, nas hipóteses excepcionais. Há, entretanto, a intrigante pergunta: haverá implicações ao militar que adquirir outra nacionalidade, perdendo, por conseguinte, à brasileira (artigo12, § 4º, II, CF/88)? É possível a exoneração ex officio ou passagem para a reserva não remunerada ou até mesmo a demissão por processo regular? Com a devida vênia, nenhuma dessas hipóteses pode vingar.

Para responder a tal questão, devemos em observância aos princípios constitucionais, em especial ao da legalidade, analisar no ordenamento jurídico pátrio se há alguma norma legal que contemple tal hipótese.

Inicialmente, lembramos que os certames públicos que visam arregimentar interessados para o ingresso na Polícia Militar, dentre outros requisitos, prevêem como condição de exigibilidade, dentre outras, a de ser brasileiro. Conclusão lógica decorre, portanto, que basta ser brasileiro nato ou naturalizado.

Alias a própria CF, excepcionalmente, preconiza os cargos privativos de brasileiros natos no artigo 12, §3º e incisos.

Assim, constata-se de plano, que o rigor quanto à diferenciação entre brasileiros natos e os naturalizados é tratada pela Constituição Federal de forma excepcional. Tal dispositivo nos permitirá, conforme verificaremos, a importantes conclusões no caso em apreço. Extraindo-se, ainda, ditames constitucionais, constata-se que as hipóteses, frise-se taxativas, de passagem à reserva, ou da perda do posto dos oficiais militares (quer sejam federais, quer sejam estaduais) são excepcionais (artigo 42 “caput” e 142, § 3º, II, III, VI, VII, X c.c. 144, § 6º, todos da CF/88).

A fim de melhor direcionarmos o tema, no estado de São Paulo, a passagem compulsória para a inatividade é regida por dispositivos específicos, os quais permitirão, conforme verificaremos a importantes conclusões sobre a aplicabilidade ou não ao caso em tela.

Obviamente apenas para a questão discorrida neste artigo e em respeito ao princípio constitucional da eqüidade, a passagem para a inatividade e perda da graduação das praças militares (em que pese o fundamento ser infraconstitucional, portanto, diverso aos oficiais) é tratada, também, em caráter excepcional.

Nessa esteira, compete-nos trazer à baila o Decreto Lei 260, de 29 de maio de 1970, que dispõe sobre a inatividade dos componentes da Polícia Militar do estado de São Paulo.

Nota-se, de plano, que o legislador foi taxativo quando afirmou que a inatividade dos policiais militares do estado de São Paulo é regulada pelo Decreto Lei 260/70 (artigo1).

Assim, não há previsão legal, segundo as hipóteses constantes do Decreto Lei 260/70 de passagem para a inatividade ao policial militar que deixar de ser brasileiro.

Sob a ótica disciplinar, como é notório, a Lei complementar 893, de 09 de março de 2001, instituiu o regulamento disciplinar da PM e, após apurada análise do referido diploma legal, constata-se, também (respeitadas as opiniões em contrário), que não há fundamento legal para a instauração de procedimento administrativo disciplinar em desfavor do policial militar que eventualmente deixar de ser brasileiro (como vimos, nas hipóteses remotíssimas).

Além do mais, há valores espirituais superiores inerentes à condição de policial militar (artigo 6º, §1º, RD-PM), coadunados a atividade de preservação da ordem pública, como por exemplo, honra, lealdade, dentre outros (artigo 7º, VI e IX, tudo do RD-PM).

Assim, dentro de um sistema jurídico aberto, portanto, imperfeito, constata-se que a perda da nacionalidade por militar estadual refere-se à hipótese de lacuna dentro do ordenamento, competindo ao intérprete, conforme alinhavaremos nas conclusões finais a busca pela solução adequada.

O Decreto Lei Federal 4.657, de 04 de setembro de 1942 institui ao ordenamento jurídico brasileiro, a Lei de Introdução do Código Civil (recepcionada pela Constituição Federal, portanto, em vigor).

O artigo 4º, do Decreto Lei estabelece que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Em que pese não se tratar de um caso concreto, nem tampouco a hipótese de julgamento, o acima disposto norteia aos julgadores e operadores do direito uma premissa fundamental: diante da lacuna (ausência de norma ao caso concreto), deve-se buscar a integração do caso ao sistema jurídico.

Além disso, aos operadores do direito há a incumbência de se buscar a finalidade social da norma, através da aplicação dos princípios básicos e inerentes ao Estado Democrático de Direito como respeito à dignidade da pessoa humana, eqüidade, dentre outros.

Nesse aspecto, não é necessário uma “ginástica” legislativa para constatar que não interessa à sociedade (em observância ao princípio constitucional do interesse público) que o militar estadual, formado e treinado pela instituição pública passe a condição de inativo pelo fato de ter deixado de ser brasileiro.

Além do mais, a perda da nacionalidade somente terá efeito jurídico após o crivo do chefe do poder executivo federal, o qual, por si só, já constitui uma criteriosa análise quando o interessado pertencer a Instituições públicas, como PM, Forças Armadas, dentre outras.

Conforme verificado sob o aspecto disciplinar, pertencer a uma Instituição como a Polícia Militar, calcada historicamente sob valores públicos, legais e espirituais, transcende a relação prestação de serviços — remuneração, constituindo em verdadeira missão.

Assim, concluímos que mesmo na hipótese de perda da nacionalidade, através de decreto presidencial, não há reflexos jurídicos ao militar estadual.

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