Expediente forense

Nada diz que juiz deve atender advogado a qualquer hora

Autor

  • Gabriel Napoleão Velloso Filho

    é desembargador do Trabalho pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário do Pará (Cesupa) e associado da Associação Juízes para A Democracia (AJD) da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD) e da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).

16 de agosto de 2007, 0h00

O debate persiste na comunidade jurídica acerca da amplitude da obrigação de o juiz receber advogados. A questão se acirrou com a decisão proferida, monocraticamente, pelo Conselheiro Marcus Faver, juiz de carreira desde 1969, desembargador e ex-presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cujo mandato encerrou-se em junho passado.

Segundo o conselheiro, “não pode” o magistrado reservar período durante o expediente forense para dedicar-se com exclusividade, em seu gabinete de trabalho, à prolação de despachos, decisões e sentenças, omitindo-se de receber profissional advogado quando procurado para tratar de assunto relacionado a interesse de cliente.

A condicionante de só atender ao advogado quando se tratar de medida que reclame providencia urgente apenas pode ser invocada pelo juiz em situação excepcionais, fora do horário normal de funcionamento do foro. O magistrado é sempre obrigado a receber advogados em seu gabinete de trabalho, a qualquer momento durante o expediente forense, independentemente da urgência do assunto, e independentemente de estar em meio à elaboração de qualquer despacho, decisão ou sentença, ou mesmo em meio a uma reunião de trabalho. Essa obrigação se constitui em um dever funcional previsto na Loman e a sua não observância poderá implicar em responsabilização administrativa” (grifos do original).

A meu ver, a decisão atrita com o Regimento do Conselho Nacional de Justiça, a Lei Orgânica da Magistratura, o Estatuto da Advocacia e a Constituição Federal, embora somente possa produzir efeitos em relação ao consulente, como passarei a expor.

Da violação ao regimento do Conselho Nacional de Justiça

Pelo Regimento do CNJ, compete ao relator “decidir os incidentes que não dependerem de pronunciamento do Plenário, bem como fazer executar as diligências necessárias ao julgamento do processo (artigo 45)”. Por outro lado, compete ao Plenário” o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura”, “zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências ” e ” receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência concorrente dos tribunais, decidindo pelo arquivamento ou instauração do procedimento disciplinar” (artigo 19).

O argumento do relator para subtrair do Plenário a decisão da matéria é simples: “A presente consulta envolve questão de extrema singeleza, claramente explicitada em texto legal expresso, razão pela qual a respondo monocráticamente, sem necessidade de submissão ao Plenário”.

A meu ver, não há previsão legal do regimental para a decisão monocrática, já que é matéria que se encontra, sem sombra de dúvida, dentre as atribuições do Plenário do Conselho Nacional de Justiça. Ademais, bem ao contrário, o debate atual mostra que a questão não é simples e envolve interpretação sensível e conforme a Loman e a Constituição.

Da violação à Loman e aos precedentes do STJ

O que entende o STJ é que o juiz não pode estabelecer, mediante portaria, horário específico para atendimento a advogados. O relator foi bem além, estatuindo que “O magistrado é sempre obrigado a receber advogados em seu gabinete de trabalho, a qualquer momento durante o expediente forense, independentemente da urgência do assunto, e independentemente de estar em meio à elaboração de qualquer despacho, decisão ou sentença, ou mesmo em meio a uma reunião de trabalho”.

Com certeza, a conseqüência extraída pelo Conselheiro não está nos precedentes apresentados, que se limitam a considerar ilegais as portarias que fixam horário para recebimento de patronos.

Tampouco o dever está na Loman, que enuncia como dever do Magistrado “tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência”. A Lei Complementar não estabelece o dever de paralisar o trabalho em sentenças ou audiências, nem de permanecer durante todo o expediente no foro, à espera de advogados que queiram ser atendidos.

A conclusão do conselheiro não tem base nos precedentes do STJ. No exame do recurso ordinário em MS 13.262 — SC (2001/0067821-4), a Primeira Turma do STJ assim decidiu: “ADVOGADO — DIREITO DE ENTREVISTAR-SE COM MAGISTRADO — FIXAÇÃO DE HORÁRIO — ILEGALIDADE — LEI 8.906/94 ARTIGO 7º, VIII). É nula, por ofender ao artigo 7º, VIII da Lei 8.906/94, a Portaria que estabelece horários de atendimento de advogados pelo juiz”. O ministro Humberto Gomes de Barros, autor do voto vencedor, adotou como fundamento: “Recebe-se o advogado a qualquer hora, verificada a urgência”.

Em verdade, a decisão atenta contra os próprios objetivos e fundamentos que inspiraram o Conselho Nacional de Justiça, imputando ofensa à independência do Poder Judiciário e às prerrogativas de seus membros, na medida em que impõe hipótese de sanção disciplinar sem base legal, sob pena de responsabilização administrativa.

Da violação à Constituição Federal e ao Estatuto da OAB

A Constituição Federal estabelece como garantia do cidadão “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (artigo 5º, LXXVIII). Impõe ainda à administração pública o dever de obedecer ao princípio da eficiência (artigo 37, caput). Tais princípios pressupõem — ou antes, exigem — que o Poder Judiciário possa se organizar adequadamente a prestar sua função e proferir decisões, realizar audiências e praticar outros atos, a fim de assegurar a observância do princípio da razoável duração do processo e a eficiência na atividade judiciária.

Pela interpretação proposta, tais princípios sofrem rude golpe. Não apenas o juiz, mas qualquer profissional ficaria extremamente dificultado em sua atuação caso tivesse de interromper suas atividades, a qualquer momento, independentemente da urgência do assunto. Seria simples impedir, por via reflexa, que as decisões pudessem ser prestadas de forma rápida e eficiente. A exegese realizada inviabiliza a realização desses princípios constitucionais.

Por outro lado, o caput do artigo 133 da Constituição Federal estabelece que o advogado é indispensável à administração da Justiça, ao passo que o caput do artigo 6º da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) prevê que não existe hierarquia entre juízes, advogados e membros do parquet. A sistemática brasileira tem como pilar a eqüidistância entre advogados, juízes e procuradores, situados em um mesmo plano.

Ora, se todos estão em nível equivalente, não há previsão para que os advogados detenham ascendência em relação aos magistrados. A prevalecer a orientação adotada na decisão, o que ocorreria seria que a carreira da advocacia estaria em franca assimetria em relação aos magistrados, que ficariam em plano inferior.

Abrangência da decisão

A consulta que deu origem à decisão foi formulada pelo juiz de Direito Titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Mossoró-RN. Embora o conselheiro faça referência a obrigações genéricas, intimou da decisão apenas o consulente e o corregedor geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Norte.

A conclusão é óbvia: a decisão tem seus efeitos restritos inter partes.

O artigo 28 da Lei 9.784/99, que rege o processo administrativo em nosso país, estabelece que “devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades”.

Sem intimação, não se forma a obrigação e os efeitos se restringem às partes.

Logo, ao contrário do que tem sido divulgado incorretamente, a obrigação apenas se restringe ao consulente e não pode ser estendida a outros magistrados, mormente por decisão monocrática do conselheiro.

Da obrigação do magistrado de receber os advogados

É indefensável enunciar que o juiz jamais deve receber os advogados, independentemente da urgência ou necessidade da medida. O advogado, indispensável à administração da Justiça, tem a inegável prerrogativa de ser recebido pelo juiz, quando se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência. A Lei Complementar não estabelece o dever de paralisar o trabalho em sentenças ou audiências, nem de permanecer durante todo o expediente no foro, à espera de advogados que queiram ser atendidos.

A preocupação é que a decisão possa instalar situação de instabilidade em que questão que sempre foi resolvida com razoabilidade e bom senso, salvo situações particulares que merecem ajuste.

A fórmula é delicada, mas é correto limitar-se a dizer que o advogado deve ser recebido, a qualquer momento, sempre que se tratar de providência que reclame e possibilite solução de urgência e, nos demais casos, mediante fórmula razoável que satisfaça aos interesses e princípios legais e constitucionais.

Conclusões

— A decisão prolatada pelo conselheiro Marcus Faver, monocraticamente, foi prolatada por órgão incompetente, já que a matéria deveria ter sido submetida ao Plenário;

— Nenhum dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça autoriza a conclusão de que o juiz esteja sempre obrigado a receber advogados em seu gabinete de trabalho, independentemente da urgência do assunto; ao contrário, a redação da Loman é em sentido oposto; Não há precedente que juiz tem de receber advogados.

— A organização do Poder Judiciário, para que possa exercer o seu dever de prestar a jurisdição conforme a razoável duração do processo, com eficiência, impõe que se organize e modernize a Justiça, o que conflita com a exigência de interrupção de qualquer atividade para recebimento de advogados, independentemente de urgência;

— Não existe hierarquia entre juízes, advogados e membros do ministério público, equilíbrio que se rompe com a adoção da interpretação proposta pelo conselheiro;

— A decisão proferida no PP 1465 produz efeitos apenas para o consulente, juiz Titular da 1ª Vara Criminal de Mossoró;

— A obrigação do juiz é de atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência. O advogado deve ser recebido, a qualquer momento, sempre que se tratar de providência que reclame e possibilite solução de urgência e, nos demais casos, mediante fórmula razoável que satisfaça aos interesses e princípios legais e constitucionais.

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