Justiça de olho

Extradição só é possível se país vive Estado de Direito

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16 de agosto de 2007, 17h46

O ministro Gilmar Mendes reafirmou que o Brasil não pode simplesmente entregar um estrangeiro para o país onde é acusado de crime. Ao Supremo Tribunal Federal, responsável por analisar os pedidos de extradição, cabe vigiar para que o extraditando tenha garantido o devido processo legal no seu país de origem.

Em maio, o Supremo analisava pedido de extradição da Bolívia contra John Axel Rivero Antelo, quando Gilmar Mendes suspendeu o julgamento por colocar em dúvida a existência de um Estado de Direito na Bolívia. Antelo é acusado de tráfico de drogas e formação de quadrilha na Bolívia.

Na quarta-feira (15/8), o ministro apresentou seu voto a favor da extradição. Ele acompanhou o relator, ministro Eros Grau, e a extradição foi concedida.

Gilmar Mendes observou que não basta que o Estado tenha os direitos fundamentais na Constituição Federal. É necessário ter um Judiciário independente e funcionando para que os direitos dos cidadãos sejam respeitados.

O ministro afirmou que, quando pediu vista dos autos, em maio, o Judiciário boliviano passava por uma crise. O presidente da Bolívia, Evo Morales, havia nomeado, em dezembro de 2006, quatro juízes interinos para a Corte Suprema de Justiça da Bolívia. Em maio, a Corte Constitucional suspendeu a nomeação por considerar que juízes interinos podem exercer o cargo por três meses. O Congresso boliviano instaurou uma CPI para apurar a suspensão das nomeações. Membros da corte foram presos por se recusar a depor.

Hoje, no entanto, a situação está resolvida. Em julho, foram nomeados quatro novos ministro para a Corte Suprema de Justiça. Para o ministro, o Judiciário boliviano está estabilizado e capaz de garantir que o extraditando tenha direito ao devido processo legal. Portanto, não há mais motivo para barrar a extradição.

Veja o voto do ministro Gilmar Mendes

EXTRADIÇÃO 986-9 REPÚBLICA DA BOLÍVIA

RELATOR: MIN. EROS GRAU

REQUERENTE(S): GOVERNO DA BOLÍVIA

EXTRADITANDO(A/S) : JOHN AXEL RIVERO ANTERO OU JHON AXEL RIVERO ANTELO OU JOHN AXEL RIVERO ANTELO OU JOHN AXEL RIVERO

ADVOGADO(A/S): JOSÉ CARLOS DOS SANTOS E OUTRO(A/S)

V O T O – V I S T A

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator):

Trata-se de pedido de extradição, formulado pelo Governo da Bolívia, do nacional boliviano JOHN AXEL RIVERO ANTERO, com base no tratado firmado entre o Brasil e aquele Governo, promulgado pelo Decreto no 9.920, de 8 de julho de 1942.

O extraditando foi acusado pela prática de delitos de confabulação e associação delituosa e tráfico de substâncias controladas (cocaína), tipificados nos arts. 48 e 53 da Lei boliviana no 1008/1988.

Em sessão plenária de 31 de maio de 2007, o Ministro Eros Grau, relator desta Extradição, votou pelo seu deferimento.

Não obstante as percucientes considerações trazidas pelo Ministro Eros Grau, que entendeu encontrar-se o pedido de extradição devidamente instruído, pedi vista dos autos por ter entendido necessário fossem tecidas algumas considerações sobre os acontecimentos que se verificavam na Bolívia naquela oportunidade, que, ao menos em tese, poderiam ensejar o indeferimento do presente pleito.

Segundo informações veiculadas na mídia, o Presidente Evo Morales nomeou, em dezembro de 2006, quatro juízes para a Corte Suprema de Justiça da Bolívia e, em 9 de maio de 2007, decidira a Corte Constitucional suspender a nomeação dos referidos juízes, por considerar que os juízes eram interinos e que o período a que tinham direito a exercer o cargo de juiz da Corte Suprema já havia expirado.(www.reporterdiario.com.br)

O § 16 do artigo 96 da Constituição boliviana faculta ao Presidente da República nomear, interinamente, no caso de renúncia ou morte, os empregados eleitos por outro Poder, quando este se encontre em recesso. Ainda, lei boliviana, de 2.10.1991, estabelece que as nomeações interinas por parte do Executivo têm efeito somente por um período de 3 meses, após o qual a nomeação perderá efeito.

A pedido do Presidente Morales, o Congresso boliviano instaurou uma CPI para apurar a suspensão das nomeações e, em 29 de maio de 2007, a polícia legislativa do referido Congresso expediu ordem de prisão contra alguns membros da Corte, por terem se recusado a prestar depoimento à referida CPI. Em 30 de maio de 2007 um dos juízes da Corte (Juan González) renunciou ao seu mandato, em protesto aos atos do Presidente Morales. (Revista Consultor Jurídico de 31.5.2007 em http:// www.conjur.com.br e www.spanish.xinhuanet.com, notícia veiculada em 24.5.2007)

Em 5 de junho de 2007, 900 juízes e magistrados do Poder Judiciário da Bolívia entraram em greve nacional, por 24 horas, em protesto contra a interferência do Presidente Morales no Judiciário, e contra o que consideram “permanentes ataques do presidente do país, Evo Morales, à magistratura”. (www.reporterdiario.com.br)


Assim, ao participar do julgamento no Plenário, naquela assentada de 31 de maio de 2007, de pedido de extradição por parte do Governo da Bolívia, considerei a relevância de levar à discussão desta Corte a capacidade de o Estado requerente assegurar ao extraditando, diante os fatos narrados, seus direitos fundamentais básicos.

Isso por considerar essencial que, nas decisões concessivas de extradição, sejam mantidos e observados os parâmetros do devido processo legal, do estado de direito e dos direitos humanos, fundamentalmente.

A doutrina alemã cunhou a expressão “Justizgrundrechte” para se referir a um elenco de proteções constantes da Constituição, que tem por escopo proteger o indivíduo no contexto do processo judicial. Sabe-se que a expressão é imperfeita, uma vez que muitos desses direitos transcendem a esfera propriamente judicial.

À falta de outra denominação genérica, também nós optamos por adotar designação assemelhada — direitos fundamentais de caráter judicial e garantias constitucionais no processo —, embora conscientes de que se cuida de uma denominação que também peca por imprecisão.

A Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais, ao consagrar um expressivo elenco de direitos destinados à defesa da posição jurídica perante a Administração ou perante os órgãos jurisdicionais em geral, como se pode depreender da leitura do disposto no art. 5o, incisos XXXIV, XXXV e XXXVII a LXXIV. Da mesma forma, refira-se aos incisos LXXVI e LXVIII do art. 5o.

Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e oito incisos e quatro parágrafos (CF, art. 5o), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos.

A idéia de que os direitos e garantias fundamentais devem ter eficácia imediata (CF, art. 5o, §1o) ressalta, também, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.

O constituinte reconheceu, ainda, que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º). A complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda, por conseguinte, que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais.

E no que se refere aos direitos de caráter penal, processual e processual-penal, talvez não haja qualquer exagero na constatação de que esses direitos cumprem um papel fundamental na concretização do moderno Estado democrático de direito.

Como observa Martin Kriele, o Estado territorial moderno arrosta um dilema quase insolúvel: de um lado, há de ser mais poderoso que todas as demais forças sociais do país – por exemplo, empresas e sindicatos –, por outro, deve outorgar proteção segura ao mais fraco: à oposição, aos artistas, aos intelectuais, às minorias étnicas [Cf. KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado — Fundamentos Históricos de la Legitimidad del Estado Constitucional Democrático. Trad. de Eugênio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 149-150].

O estado absolutista e os modelos construídos segundo esse sistema (ditaduras militares, estados fascistas, os sistemas do chamado “centralismo democrático”) não se mostram aptos a resolver essa questão.

Segundo ressalta Kriele:

“(…) A Inglaterra garantiu os direitos humanos sem necessidade de uma constituição escrita. Por outro lado, um catálogo constitucional de direitos fundamentais é perfeitamente compatível com o absolutismo, com a ditadura e com o totalitarismo. Assim, por exemplo, o art. 127 da Constituição soviética de 1936 garante a `inviolabilidade da pessoa´. Isso não impediu que o terror stalinista tivesse alcançado em 1937 seu ponto culminante. A constituição não pode impedir o terror, quando está subordinada ao princípio de soberania, em vez de garantir as condições institucionais da rule of law. O mencionado artigo da Constituição da União Soviética diz, mas adiante, que `a detenção requer o consentimento do fiscal do Estado´. Esta fórmula não é uma cláusula de defesa, mas tão-somente uma autorização ao fiscal do Estado para proceder à detenção. Os fiscais foram nomeados conforme o critério político e realizaram ajustes ao princípio da oportunidade política, e, para maior legitimidade, estavam obrigados a respeitar as instruções. Todos os aspectos do princípio de habeas corpus ficaram de lado, tais como as condições legais estritas para a procedência da detenção, a competência decisória de juízes legais independentes, o direito ao interrogatório por parte do juiz dentro de prazo razoável, etc. Nestas condições, a proclamação da `inviolabilidade da pessoa´ não tinha nenhuma importância prática. Os direitos humanos aparentes não constituem uma defesa contra o Arquipélago Gulag; ao contrário, servem para uma legitimação velada do princípio da soberania: o Estado tem o total poder de disposição sobre os homens, mas isto em nome dos direitos humanos. [Kriele, Martín. Introducción a la Teoría del Estado. cit., p. 160-161]


A solução do dilema — diz Kriele — consiste no fato de que o Estado incorpora, em certo sentido, a defesa dos direitos humanos em seu próprio poder, ao definir-se o poder do Estado como o poder defensor dos direitos humanos. Todavia, adverte Kriele, “sem divisão de poderes e em especial sem independência judicial isto não passará de uma declaração de intenções”. É que, explicita Kriele, “os direitos humanos somente podem ser realizados quando limitam o poder do Estado, quando o poder estatal está baseado em uma ordem jurídica que inclui a defesa dos direitos humanos”. [KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado, cit. p.150]

Nessa linha ainda expressiva a conclusão de Kriele:

“Os direitos humanos estabelecem condições e limites àqueles que têm competência de criar e modificar o direito e negam o poder de violar o direito. Certamente, todos os direitos não podem fazer nada contra um poder fático, a potestas desnuda, como tampouco nada pode fazer a moral face ao cinismo. Os direitos somente têm efeito frente a outros direitos, os direitos humanos somente em face a um poder jurídico, isto é, em face a competências cuja origem jurídica e cujo status jurídico seja respeitado pelo titular da competência.

Esta é a razão profunda por que os direitos humanos somente podem funcionar em um Estado constitucional. Para a eficácia dos direitos humanos a independência judicial é mais importante do que o catálogo de direitos fundamentais contidos na Constituição (g.n)”.[KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado, cit. p. 159-160].

Essa expansão normativa das garantias constitucionais processuais, penais e processuais-penais não é um fenômeno brasileiro.

A adoção da Convenção Européia de Direitos Humanos por muitos países fez com que se desse uma expansão singular dos direitos e garantias nela contemplados no âmbito europeu. Mediante uma interpretação dos direitos fundamentais previstos na Constituição em conformidade com as disposições da Convenção Européia tem-se hoje uma efetiva ampliação do significado dos direitos fundamentais previstos na Constituição ou quase uma ampliação dos direitos positivados na Constituição. Tendo em vista a práxis dominante na Alemanha, observa Werner Beulke que tal orientação culmina por conferir supremacia fática da Convenção Européia em face do direito alemão. [Cf. BEULKE, Werner. Strafprozessrecht. 8. ed. Heidelberg, 2005, p. 6; cf. ainda, sobre o tema, Palma, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina, 2006; Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. Maria Fernanda Palma, Coimbra: Almedina, 2004.]

Alguns direitos relevantes reconhecidos na Convenção Européia de Direitos Humanos:

– proibição de tortura (art. 3);

– direito à liberdade e à segurança, especialmente o direito de imediata apresentação do preso para aferição da legitimidade de eventual restrição à liberdade (art. 5, III);

– direito ao devido processo legal (`fair trial´), especialmente a um processo submetido ao postulado da celeridade (art. 6, I);

– direito à imediata informação sobre a forma (tipo penal) e a razão (fato) da acusação (art. 6, III a);

– direito à assistência gratuita de tradutor ou intérprete (art. 6, III e);

– direito à assistência jurídica (art. 6, III c);

– direito de inquirir ou de fazer inquirir as testemunhas de acusação (art. 6, III d);

nulla poena sine lege (art. 7, I);

– abolição da pena de morte (¨Protocolos nºs 6 e 13). [Cf. BEULKE, Werner. Strafprozessrecht, cit. p. 6].

Tem-se, assim, em rápidas linhas, o significado que os direitos fundamentais e, especialmente os direitos fundamentais de caráter processual, assumem para a ordem constitucional como um todo.

Acentue-se que é a boa aplicação dos direitos fundamentais de caráter processual — aqui merece destaque a proteção judicial efetiva — que permite distinguir o Estado de Direito do Estado Policial!

Não se pode perder de vista que a boa aplicação dessas garantias configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações e, como amplamente reconhecido, o princípio da dignidade da pessoa humana impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais. [Cf. MAUNZ-DÜRIG. Grundgesetz Kommentar. Band I. München: Verlag C. H. Beck, 1990, 1I 18]

A propósito, em comentários ao art. 1o da Constituição alemã, afirma Günther Dürig que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”]. [MAUNZ-DÜRIG. Grundgesetz Kommentar. Band I. München: Verlag C. H. Beck , 1990, 1I 18.]


Na mesma linha, entende Norberto Bobbio que a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária:

“A diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de direito, ou seja, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A conseqüência principal dessa transformação é que nas relações entre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima ‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima ‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da ‘supremacia da lei’ (rule of law).” [BOBBIO, Norberto. As Ideologias e o Poder em Crise, p.p. 97-98]

Em verdade, tal como ensina o notável mestre italiano, a aplicação escorreita ou não dessas garantias é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito. São elas que permitem distinguir civilização de barbárie.

Nesse sentido, forte nas lições de Claus Roxin, também compreendo que a diferença entre um Estado totalitário e um Estado (Democrático) de Direito reside na forma de regulação da ordem jurídica interna e na ênfase dada à eficácia do instrumento processual penal da prisão preventiva. Registrem-se as palavras do professor Roxin:

“(…)Entre as medidas que asseguram o procedimento penal, a prisão preventiva é a ingerência mais grave na liberdade individual; por outra parte, ela é indispensável em alguns casos para uma administração da justiça penal eficiente. A ordem interna de um Estado se revela no modo em que está regulada essa situação de conflito; os Estados totalitários, sob a antítese errônea Estado-cidadão, exagerarão facilmente a importância do interesse estatal na realização, o mais eficaz possível, do procedimento penal. Num Estado de Direito, por outro lado, a regulação dessa situação de conflito não é determinada através da antítese Estado-cidadão; o Estado mesmo está obrigado por ambos os fins: assegurar a ordem por meio da persecução penal e proteção da esfera de liberdade do cidadão.Com isso, o princípio constitucional da proporcionalidade exige restringir a medida e os limites da prisão preventiva ao estritamente necessário.” [ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores del Puerto; 2000, p. 258]

Nessa linha, sustenta Roxin que o direito processual penal é o sismógrafo da Constituição, uma vez que nele reside a atualidade política da Carta Fundamental. [Cf.ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal, cit., p.10]

No caso concreto, há de se assegurar a aplicação do princípio do devido processo legal, que possui um âmbito de proteção alargado, e que exige o fair trial não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituições e órgãos, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas, constitucionalmente, como essenciais à Justiça.

E no contexto da extradição o tema do juiz natural assume relevo inegável, uma vez que somente poderá ser deferida essa medida excepcional se o Estado requerente dispuser de condições para assegurar julgamento com base nos princípios básicos do Estado de Direito, garantindo que o extraditando não será submetido a qualquer jurisdição excepcional.

Referida preocupação já havia sido expressa no julgamento da Ext. no 232/Cuba, Relator Min. Victor Nunes Leal, DJ 14.12.1962. Eis a ementa:

“1) A situação revolucionária de Cuba não oferece garantia para um julgamento imparcial do extraditando, nem para que se conceda a extradição com ressalva de se não aplicar a pena de morte.

2)Tradição liberal da América Latina na concessão de asilo por motivos políticos.

3) Falta de garantias considerada não somente pela formal supressão ou suspensão, mas também por efeito de fatores circunstanciais.

4) A concessão do asilo diplomático ou territorial não impede, só por si, a extradição, cuja procedência é apreciada pelo Supremo Tribunal, e não pelo governo.

5) Conceituação de crime político proposta pela Comissão Jurídica Interamericana, do Rio de Janeiro, por incumbência da IV Reunião do Conselho Interamericano de Jurisconsultos (Santiago do Chile, 1949), excluindo `atos de barbaria ou vandalismo proibidos pelas leis de guerra´; ainda que ‘executados durante uma guerra civil, por uma ou outra das partes.’”


Também no julgamento da Ext. no 347/Itália, Relator Min. Djaci Falcão, DJ 9.6.1978, discutiu-se a questão da existência de juízo de exceção e a impossibilidade de concessão de pedido extradicional, como indica a ementa, na parte em que interessa:

“(…) III – Alegação da existência de juízo de exceção. A Corte Constitucional criada pela Constituição Italiana de 1947 situa-se como órgão jurisdicional. A sua composição, o processo de recrutamento dos seus membros, as incompatibilidades e os limites de eficácia das suas decisões encontram-se legitimamente definidos na Legislação da Itália. Órgão jurisdicional preconstituído e que atende aos princípios fundamentais do estado de direito. A ninguém é dado negar a eficácia suprema da Constituição. Competência da Corte Constitucional, em relação ao extraditando, por força da conexão. Aplicação da Súmula 421. Satisfeitas as condições essenciais à concessão da extradição, impõe-se o seu deferimento. Decisão tomada por maioria de votos.”

Em seu voto, ressaltou o relator, o Ministro Djaci Falcão:

“(…) É sabido que a nossa Constituição não admite foro privilegiado, que se apresenta como favor de caráter pessoal, e, bem assim, tribunal de exceção, para o julgamento de `um caso, ou para alguns casos determinados, porque, então, estaria instituído o que se quer proibir: o juiz ad hoc´, como acentua o douto Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969, tomo V, 2ª. Edição, pág.238).”

Na mesma assentada, afirmou o Ministro Moreira Alves:

“ Ninguém discute que cabe a esta Corte fixar o sentido, e, portanto, o alcance, do que vem a ser Tribunal ou juízo de exceção; para verificar se nele se enquadra o Tribunal ou juízo estrangeiro a cujo julgamento será submetido o extraditando.

É tradicional em nossas Constituições — o princípio somente não constou da de 1937 — o repúdio ao foro privilegiado e aos tribunais ou juízos de exceção. Interpretando essa vedação constitucional, constitucionalistas do porte de CARLOS MAXIMILIANO (…) se valem dos princípios que se fixaram na doutrina alemã na interpretação do artigo 105 da Constituição de Weimar, reproduzido, como acentua MAXIMILIANO (…), quase literalmente pelo artigo 141, § 26, da Constituição brasileira de 1946, cujas expressões foram repetidas na parte final do § 15 do artigo 153 da Emenda Constitucional no 1/69.”

Sobre a necessidade do respeito aos direitos fundamentais do estrangeiro, muito bem salientou o Ministro Celso de Mello no julgamento da Extradição no 897/República Tcheca (DJ 23.9.2004), cujo excerto da ementa transcrevo a seguir:

“(…) EXTRADIÇÃO E RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS: PARADIGMA ÉTICO-JURÍDICO CUJA OBSERVÂNCIA CONDICIONA O DEFERIMENTO DO PEDIDO EXTRADICIONAL.

– A essencialidade da cooperação internacional na repressão penal aos delitos comuns não exonera o Estado brasileiro — e, em particular, o Supremo Tribunal Federal — de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que venha a sofrer, em nosso País, processo extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado estrangeiro. O extraditando assume, no processo extradicional, a condição indisponível de sujeito de direitos, cuja intangibilidade há de ser preservada pelo Estado a que foi dirigido o pedido de extradição (o Brasil, no caso).

– O Supremo Tribunal Federal não deve autorizar a extradição, se se demonstrar que o ordenamento jurídico do Estado estrangeiro que a requer não se revela capaz de assegurar, aos réus, em juízo criminal, os direitos básicos que resultam do postulado do “due process of law” (RTJ 134/56-58 – RTJ 177/485-488), notadamente as prerrogativas inerentes à garantia da ampla defesa, à garantia do contraditório, à igualdade entre as partes perante o juiz natural e à garantia de imparcialidade do magistrado processante. Demonstração, no caso, de que o regime político que informa as instituições do Estado requerente reveste-se de caráter democrático, assegurador das liberdades públicas fundamentais.”

No mesmo sentido, a ementa da Extradição no 633/ República Popular da China (DJ 6.4.2001), também da relatoria do Ministro Celso de Mello, na parte em que interessa:

(…) O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente como pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável importância, a garantia do due process of law.


Em tema de direito extradicional, o Supremo Tribunal Federal não pode e nem deve revelar indiferença diante de transgressões ao regime das garantias processuais fundamentais. É que o Estado brasileiro — que deve obediência irrestrita à própria Constituição que lhe rege a vida institucional — assumiu, nos termos desse mesmo estatuto político, o gravíssimo dever de sempre conferir prevalência aos direitos humanos (art. 4º, II).

EXTRADIÇÃO E DUE PROCESS OF LAW.

(…) A possibilidade de ocorrer a privação, em juízo penal, do due process of law, nos múltiplos contornos em que se desenvolve esse princípio assegurador dos direitos e da própria liberdade do acusado — garantia de ampla defesa, garantia do contraditório, igualdade entre as partes perante o juiz natural e garantia de imparcialidade do magistrado processante — impede o válido deferimento do pedido extradicional (RTJ 134/56-58, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

O Supremo Tribunal Federal não deve deferir o pedido de extradição, se o ordenamento jurídico do Estado requerente não se revelar capaz de assegurar, aos réus, em juízo criminal, a garantia plena de um julgamento imparcial, justo, regular e independente.

A incapacidade de o Estado requerente assegurar ao extraditando o direito ao fair trial atua como causa impeditiva do deferimento do pedido de extradição.”

O voto do Ministro Francisco Rezek na mencionada Extradição no 633/República Popular da China expressou, igualmente, semelhante preocupação:

“(…) Mas a esta altura dos acontecimentos, qualquer que fosse a intenção original, é possível ter segurança de que outra coisa não vai acontecer senão a administração de justiça criminal, no seu aspecto ordinário? Não a tenho. Se a tivesse até ontem, tê-la-ia perdido hoje.

É nossa a responsabilidade pelo extraditando e pela prevalência, no caso dele também, dos parâmetros maiores da Constituição brasileira e da lei que nos vincula.”

Ainda sobre a mesma questão ressaltou o relator da Ext. no 811/República do Peru, o Ministro Celso de Mello, em assentada de 04.09.2002 (DJ 28.02.2003):

“(…)O respeito aos direitos humanos deve constituir vetor interpretativo a orientar o Supremo Tribunal Federal nos processos de extradição passiva. Cabe advertir que o dever de cooperação internacional na repressão às infrações penais comuns não exime o Supremo Tribunal Federal de velar pela intangibilidade dos direitos básicos da pessoa humana, fazendo prevalecer, sempre, as prerrogativas fundamentais do extraditando, que ostenta a condição indisponível de sujeito de direitos, impedindo, desse modo, que o súdito estrangeiro venha a ser entregue a um Estado cujo ordenamento jurídico não se revele capaz de assegurar, aos réus, em juízo criminal, a garantia plena de um julgamento imparcial, justo, regular e independente (fair trial), com todas as prerrogativas inerentes à cláusula do due process of law.”

No presente caso, no entanto, creio que a preocupação que tive, ao pedir vista dos autos, em 31 de maio de 2007, parece não ter mais lugar.

Conforme informações recebidas do Ministério das Relações Exteriores, em 27 de julho de 2007, foram empossados, no último dia 24 de julho, quatro novos ministros na Corte Suprema de Justiça da Bolívia (Teófilo Tarquino, Angel Irusta, Roberto Suárez e José Luis Baptista), resultado de um acordo travado entre as principais forças políticas naquele país (Podemos, MAS, UN e MNR).

Os referidos ministros, durante a solenidade de posse, afirmaram que atuarão “com absoluta imparcialidade, porque nenhum de nós se sente comprometido com partido político algum, nem da situação nem da oposição.” Solicitaram uma majoração no orçamento do Poder Judiciário para que vários desafios fossem cumpridos e mencionaram, ainda, a “unidade” de trabalho e a necessidade de superar as “asperezas” existentes entre as instituições de poder do Estado. (http://www.nu.org.bo/webportal/News, em 25.07.2007)

Diante o exposto, e em reconhecimento aos esforços que vêm sendo desenvolvidos no processo de consolidação do Estado Democrático de Direito no país requerente, acompanho o voto do Ministro Eros Grau para deferir a presente extradição, na certeza de que ao extraditando será assegurado o pleno cumprimento dos direitos fundamentais a que faz jus.

Ressalto, no entanto, meu entendimento de que esta Corte deverá adotar orientação estrita no que concerne à concessão de qualquer pleito extradicional, quando houver, no país requerente, ameaça de violação aos direitos fundamentais do extraditando, especialmente a falta de garantia de um julgamento que observe rigorosamente os parâmetros do devido processo legal (Cf. Ext. no 232/Cuba, Relator Min. Victor Nunes Leal, DJ 14.12.1962; Ext. 347/Itália, Rel. Min. Djaci Falcão, DJ 9.6.1978; Ext. 524/Paraguai, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 8.3.1991; Ext. 633/República Popular da China, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 6.4.2001; Ext. 811/Peru, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28.2.2003; Ext. 897/República Tcheca, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23.09.2004; Ext. 953/Alemanha, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 11.11.2005; Ext. 977/Portugal, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 18.11.2005; Ext. 1008/Colômbia, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 11.05.2006; Ext. 1067/Alemanha, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01.06.2007).

É como voto.

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