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STF confirma dívida da União com empresa gaúcha de energia

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13 de agosto de 2007, 0h12

O ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, confirmou pela segunda vez a obrigação da União em acertar dívidas com a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) do Rio Grande do Sul. O direito de compensar dívidas a título de despesas trabalhistas com servidores herdados da empresa pública que atuava na área – a antiga Comissão Estadual de Energia Elétrica – foi conferido pelo Superior Tribunal de Justiça e confirmado pelo ministro Sepúlveda Pertence há cerca de dois meses, quando rejeitou recurso da União contra a empresa.

Depois desta decisão, a Advocacia-Geral da União levou ao Supremo uma reclamação alegando que o caso traz conflito federativo, sendo do Supremo a competência originária para julgá-lo. Entre outras coisas, a União alegava na reclamação que seu Recurso Extraordinário (RE 536.345) contra a decisão do STJ ainda não tinha sido julgado. No pedido, a União também ignorou os quase 15 anos de evolução que sofreu a legislação sobre o tema, reivindicando direitos baseada em legislação extinta em 1993.

A reclamação foi distribuída por prevenção ao ministro Sepúlveda Pertence, que a rejeitou na semana passada. “Causa espanto o tempo que a demorou União para vislumbrar esta suposta usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal; foram precisos mais de 14 anos – a ação foi proposta em março de 1993 – e a manifestação de quatro instâncias judiciais para só agora a reclamante pretender a anulação de todas as decisões proferidas”, argumenta o ministro em sua decisão.

Para o ministro, o sucesso da ação proposta pela concessionária gaúcha não interferirá em nada na composição da tarifa de energia elétrica nos demais estados. De acordo com o ministro, não há conflito federativo em questão.

Todo o raciocínio da reclamação parte do pressuposto de que a chamada Conta de Resultados a Compensar, extinta em 1993, ainda está em vigor. Da conta de resultados faziam parte todas as concessionárias do setor elétrico nacional de forma que o que uma concessionária incluísse no cálculo do seu custo operacional poderia ter reflexos nas contas de todas as demais, afetando a composição da tarifa. Porém, esse sistema foi extinto em 1993.

Histórico do caso

Criada em 1963, a antiga Comissão Estadual de Energia Elétrica integrou em seus quadros servidores do estado que, apesar de terem passado para o regime celetista, aposentaram-se mantendo a paridade de remuneração com os funcionários ativos da CEEE. Essa foi uma das condições legais imposta à empresa ao assumir concessão.

Para arcar com esse custo, a empresa podia compensá-los nos cálculos dos valores tarifários. Mas, em 1981, a União passou a não mais admitir a inclusão desses encargos nas tarifas por entender que os custos não teriam natureza salarial. Ao analisar o caso, o STJ determinou que os custos têm sim natureza trabalhista e deveriam ter sido compensados pela CEEE.

Pertence arquivou o recurso da União por motivos formais. Ele apontou a falta de pré-questionamento de dispositivos constitucionais que teriam sido violados na decisão do STJ. O pré-questionamento é um imperativo para a análise de recursos no Supremo, um requisito de admissibilidade.

O ministro só chegou a analisar a suposta violação ao princípio constitucional da isonomia. Para a União, a CEEE conseguiu tratamento diferenciado das demais concessionárias de energia elétrica. Pertence apontou que a decisão do STJ é clara ao dizer que o custo em questão é peculiar, mas que outras concessionárias também têm custos peculiares, já que, na área, não há modelos uniformes para a composição de custos.

Leia a decisão

RECLAMAÇÃO 5.441-1 RIO GRANDE DO SUL

RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE

RECLAMANTE(S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

RECLAMADO(A/S): JUIZ FEDERAL DA 5ª VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO GRANDE DO SUL (AÇÃO ORDINÁRIA Nº 930002153-2)

RECLAMADO(A/S): TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO (APELAÇÃO CÍVEL Nº 960407823-2)

RECLAMADO(A/S): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (RECURSO ESPECIAL Nº 435.948)

INTERESSADO(A/S): COMPANHIA ESTADUAL DE ENERGIA ELÉTRICA – CEEE

ADVOGADO(A/S): LUÍS RENATO FERREIRA DA SILVA E OUTRO(A/S)

DECISÃO: A União apresenta reclamação para que seja preservada a competência deste Tribunal prevista no art. 102, I, f, da Constituição Federal.

Expõe-se que a Companhia Estadual de Energia Elétrica – CEEE do Estado do Rio Grande do Sul propôs ação contra a União visando a inclusão na composição dos custos da prestação de serviço concedido, as parcelas pagas aos seus aposentados, ex-autárquicos, a título de complementação e suplementação de proventos, de modo a ajustar a Conta de Resultados a Compensar – CRC (L. 5.655/71, art. 1º).


Após longa tramitação na Justiça Federal, o Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial da CEEE por entender que referidos pagamentos correspondiam a obrigação de natureza trabalhista, razão pela qual sua inclusão como rubrica de custo da concessionária estava autorizado pelo art. 180, I, do Código de Águas.

A reclamante ainda relata que, contra a decisão do STJ, a União interpôs recurso extraordinário para o Supremo Tribunal, autuado sob o número 536.345 e a mim distribuído, o qual, segundo a reclamante, estaria pendente de julgamento.

Para demonstrar a existência de conflito federativo na causa, aduz a reclamante: “Nos julgamentos de demandas desta espécie, essa Colenda Corte fixou segura orientação no sentido de que (i) se encontra configurada sua competência originária nas hipóteses em que há litígio entre as unidades políticas integrantes da federação – União, Estados e Distrito Federal -, presumindo-se a repercussão federativa do objeto da demanda ou das questões envolvidas na lide quando estas figurem como parte no processo; (ii) a verificação da competência originária do STF, nas demandas em que seja parte entidade da administração indireta das referidas unidades federadas, pressupõe a existência de questão jurídica cuja resolução revele potencial influência no equilíbrio federativo.

O entendimento desse Excelso Tribunal a respeito do tema fica bem evidenciado no voto do Ministro Sepúlveda Pertence na Questão de Ordem na Ação Cível Originária nº 555/DF (DJ de 16.09.2005), ocasião em que pontuou – indicando inúmeros precedentes – as variantes acima registradas na jurisprudência dessa Suprema Corte.

Dessarte, evidenciada a consolidada interpretação restritiva atribuída por esse Supremo Tribunal ao dispositivo constitucional que lhe atribui competência para o julgamento de demandas que repercutam no pacto federativo, quando se trate de entidades da administração indireta da União, dos Estados e do Distrito Federal, é mister demonstrar que o pedido condenatório articulado no âmbito da ação referida no item I por uma sociedade de economia mista do Estado do Rio Grande do Sul em face da União pode gerar reflexos para o equilíbrio federativo.

De acordo com o ressaltado acima, a demanda proposta pela sociedade de economia mista concessionária de fornecimento de energia elétrica em face da União discute questões cuja resolução poderá repercutir na unidade da fixação da política tarifária de energia elétrica, de responsabilidade da União ou, conforme o resultado do processo, dos consumidores gaúchos de energia elétrica pelo pagamento de obrigação instituída pela legislação do Estado do Rio Grande do Sul.

Não é demais lembrar que, de acordo com os fatos narrados pela referida concessionária, a União instituiu a chamada ‘Conta de Resultados a Compensar – CRC’ com o objetivo de buscar certa uniformidade nos investimentos, na qualidade e na remuneração dos serviços públicos de energia elétrica. Na referida conta, integraram-se todas as concessionárias do serviço público federal de fornecimento de energia elétrica (CF, art. 21, XII, ‘b’), de modo a viabilizar o efeito prático da ‘compensação’ pretendida.

Diante dessa realidade é que foi articulado o pedido da concessionária gaúcha, no sentido de condenar a União a incluir em seus custos de serviço as parcelas pecuniárias por ela pagas a seus empregados aposentados, a repercutir – com saldo que lhe favoreça – na composição da ‘Conta de Resultados a Compensar – CRC’.

Assim, demonstra-se que o pleito articulado pela referida sociedade de economia mista tem inegável repercussão sobre os custos globais de serviço fixados pela União e, conseqüentemente, sobre o sistema crédito-débito instituído pela CRC, a influenciar no mecanismo compensatório por ela instituído e no resultado patrimonial de todas as demais concessionárias de energia elétrica.”

Decido.

É de manifesta improcedência a pretensão da reclamante. Anote-se primeiramente que, ao contrário do que afirma a reclamante, o RE 536.345 não está pendente de decisão, que proferi em 12.06.2007 – ou seja, quase dois meses antes da propositura desta reclamação -, negando seguimento ao recurso.

Ademais, causa espanto o tempo que a demorou União para vislumbrar esta suposta usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal; foram precisos mais de quatorze anos – a ação foi proposta em março de 1993 – e a manifestação de quatro instâncias judiciais para só agora a reclamante pretender a anulação de todas as decisões proferidas.

De qualquer maneira, os argumentos da reclamante no sentido da existência de conflito federativo no caso vêm abaixo tão logo se desvela o equívoco elementar da premissa de que partem.

Todo o raciocínio da reclamação parte do pressuposto de que a chamada Conta de Resultados a Compensar ainda existe: esta, de fato, era fator relevante para a composição da tarifa de energia elétrica num sistema que, no entanto, deixou de existir desde 1993 – conforme relata a CEEE na petição inicial de sua ação.


Foi a Lei 5.655/71 que instituíra o regime de remuneração garantida, nos termos do seu art. 1º e parágrafos, verbis:

“Art. 1º A remuneração legal do investimento, a ser computada no custo do serviço dos concessionários de serviços públicos de energia elétrica, será de 10% (dez por cento) a 12% (doze por cento), a critério do poder concedente.

§ 1º A diferença entre a remuneração resultante da aplicação do valor percentual aprovado pelo Poder concedente e a efetivamente verificada no resultado do exercício será registrada na Conta de Resultados a Compensar, do concessionário, para fins de compensação dos excessos e insuficiências de remuneração.

§ 2º As importâncias correspondentes aos saldos credores da Conta de Resultados a Compensar serão depositados pelo concessionário, a débito do Fundo de Compensação de Resultados, até 30 de abril de cada exercício, em conta vinculada no Banco do Brasil S.A., na sede da empresa, que só poderá ser movimentada, para sua finalidade, a juízo do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica.”

O art. 2º da referida lei dispunha sobre o modo como o custo seria calculado para a formação da tarifa de energia elétrica. O regime de remuneração garantida consistia num modelo de concessão no qual o poder concedente fixava, previamente, a margem de lucro da concessionária e garantia a sua percepção, independentemente da demanda efetiva.

Daí a criação da Conta de Resultados a Compensar e do Fundo de Compensação de Resultados, dos quais faziam parte todas as concessionárias do setor elétrico nacional; assim, o que uma concessionária incluísse no cálculo do seu custo operacional poderia ter reflexos nas contas de todas as demais, afetando a composição da tarifa.

Ocorre que esse sistema foi extinto em 1993. Dispõe o art. 7º da Lei 8.631/1993:

“Art. 7º. O regime de remuneração garantida e, em conseqüência, a Conta de Resultados a Compensar – CRC e a Reserva Nacional de Compensação de Remuneração – RENCOR, ficarão extintos na data de publicação do decreto regulamentador desta Lei.”

A regulamentação da Lei 8.631/93 veio com o Decreto 774/93, cujo art. 18 apenas reafirma a extinção que a lei já determinara.

Desse modo, o resultado da procedência da ação proposta pela concessionária gaúcha não interferirá em nada na composição da tarifa de energia elétrica nos demais Estados-membros da Federação.

Apenas para que não pairem dúvidas, transcrevo o disposto no art. 9º da Lei 8.987/95, a vigente Lei das Concessões, de cuja incidência não escapam as do setor elétrico:

“Art. 9º. A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato.

§ 1º A tarifa não será subordinada à legislação específica anterior e somente nos casos expressamente previstos em lei, sua cobrança poderá ser condicionada à existência de serviço público alternativo e gratuito para o usuário.

§ 2º Os contratos poderão prever mecanismos de revisão das tarifas, a fim de manter-se o equilíbrio econômico-financeiro.

§ 3º Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.

§ 4º Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.”

Derruída, portanto, a base equivocada da reclamação, o que resta é apenas uma ação de cobrança que uma concessionária de serviço público move contra a União, poder concedente, na qual a circunstância de ser a outra uma sociedade de economia mista estadual não basta, como a reclamante mesmo admite, para firmar a competência originária do Supremo Tribunal, à falta do suposto “conflito federativo”.

Nego seguimento à reclamação (RISTF, art. 21, § 1º).

Brasília, 10 de agosto de 2007.

Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE – Relator

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