Iniciativa popular

População precisa participar dos projetos de emenda à Constituição

Autor

  • Paulo Bonavides

    é doutor honoris causa da Universidade de Lisboa membro do Comitê de Iniciativa que fundou a Associação Internacional de Direito Constitucional e fundador da revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais.

13 de agosto de 2007, 16h04

É com júbilo e desvanecimento que assumimos na manhã de 23 de abril de 2007, em sessão solene da Assembléia Legislativa do estado do Ceará, a presidência de honra da Comissão de juristas e deputados que ali se instalou para levar a cabo os trabalhos de reforma e adequação da Carta Magna estadual aos ditames e princípios da Constituição Republicana vigente. Promulgada há cerca de duas décadas pelo poder constituinte da restauração democrática, a Constituição de 1988 pôs termo aos vinte anos de absolutismo da ditadura militar de 1964.

Teve aquele ato solene significado marcante porque assinalou na eloqüência de seus fins o momento em que os representantes do povo, com assento naquela casa parlamentar, em reencontro com a Sociedade, e inspirados de motivação profundamente democrática e participativa, buscam fazer da Constituição estadual um documento da atualidade, a saber, uma Constituição em harmonia e correspondência com as mais sensíveis exigências e necessidades políticas, sociais e econômicas de nosso tempo.

Os propósitos de melhoria e aperfeiçoamento do texto magno avultam na obra revisora, que convergirá sobretudo para o expurgo das inconstitucionalidades porventura existentes em alguns artigos e parágrafos da Lei Maior estadual.

Contudo, a meu parecer, o empenho da Comissão de Reforma não deve cingir-se unicamente a essa tarefa revisora, senão que, indo mais longe, cabe-lhe aprovar, como coroamento de todas essas diligências, a proposta de uma campanha nacional, ampla, fecunda e abrangente, que congregue mais da metade das Assembléias Legislativas da Federação, numa comunhão de esforços, no sentido de instituir a iniciativa popular em matéria de emenda à Constituição. Isto com o fim de não deixar esse instituto plebiscitário restrito tão somente à legislação ordinária, qual ora acontece, nos termos do parágrafo 2º do artigo 61 da Constituição.

Em termos concretos, tal ocorrerá mediante o poder de Emenda à Constituição que as Assembléias já possuem, de acordo com o inciso III do artigo 60 da Carta Magna, podendo elas por essa via propor o acréscimo de mais um inciso àquele artigo, a saber, o inciso IV. Por este seriam alargados os entes qualificados a oferecer emendas à Constituição, passando-se a inserir, ao lado dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado, do presidente da República e das Assembléias Legislativas, a figura do cidadão eleitor, que é a grande célula da democracia participativa. Ficaria assim este cidadão capacitado doravante a movimentar, pelo instituto da iniciativa popular, em matéria constitucional, o poder de reforma da Lei Maior.

A Emenda agora preconizada afigura-se-nos do seguinte teor:

“Artigo 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

IV – de um e meio por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.”

Em razão da crise que ora açoita o poder legislativo federal, espargindo descrença, pessimismo e desalento no seio da cidadania, maiormente em virtude dos erros e desvios éticos da passada legislatura, manda a verdade dizer que a contaminação não se propagou ainda às casas legislativas das unidades da Federação.

De modo que as Assembléias estaduais, conservando limpa a face representativa, republicana e federativa de seu poder, despontam, por conseqüência, na contextura do ordenamento, como órgãos de legitimidade, idôneos a fazer o reencontro da nação com os representantes do povo, isto é, da sociedade com o Estado, da democracia com o governo, do cidadão com o administrador.

Urge, pois, colocar a iniciativa popular também na esfera da legislação constitucional.

De sorte que se possa conferir as povo a alta capacidade política de atuar diretamente na elaboração de leis que reformem a Constituição, ou seja, em atos participativos de natureza constituinte.

Por aí a cidadania é copartícipe no exercício do poder constituinte de segundo grau, a mais elevada forma de expressão jurídica da atividade normal, regular, constante e profunda da soberania tocante à reforma e revisão da organização institucional do sistema. É a legitimidade consagrada, pois, em toda a sua latitude fortalecendo o funcionamento dos mecanismos e elementos democráticos e representativos do regime.

A democracia direta não é, porém, sem riscos. Assim como o sistema representativo pode cair num grau de decadência e degeneração irremediável, e os sintomas já indicam esse iminente desfecho na realidade brasileira, também os regimes que instauram formas plebiscitárias de atuação do poder podem, por igual, ficar sujeitos a deformações da legitimidade democrática.

Nessa hipótese, ao invés da democracia participativa, que é, em verdade, a forma mais pura de aperfeiçoamento legítimo das instituições, ter-se-á, conforme as lições da História, pelos exemplos do cesarismo romano e do populismo plebiscitário de Napoleão já nos advertem, uma espécie abominável de caudilhismo carismático e a lastimosa conseqüência aí gerada vem a ser o desvirtuamento do processo democrático, com o advento de referendocracia, isto é, com a deslegitimação da vontade popular por abuso, distorção e manipulação dos instrumentos constitucionais da democracia direta.

Não obstante, ainda correndo tal risco, afigura-se-nos que o governo de preponderância representativa é de todo o ponto inferior ao governo da democracia direta e participativa. Com efeito, a superioridade desta deriva da natureza principiológica que lhe é congenial e da pureza com que nela a vontade popular é suscetível de exprimir-se.

O princípio da soberania popular se exerce naquela democracia, qual nós o entendemos, em toda sua inteireza e legitimidade, teoricamente isento das distorções impostas pelas falhas e descaracterizações da intermediação representativa.

Tudo quanto for possível, pois, estabelecer de mais democrático e legitimo na reforma iminente, será, de conseguinte, saudado por bandeira inspiradora desta ação benemérita de labor legislativo, que há pouco se inaugurou, debaixo dos auspícios da Assembléia do Estado do Ceará.

As Assembléias estaduais caso se empenhem naquela campanha hão de assentar o padrão de apoio e solidariedade a mais nobre causa política de nosso tempo, que é, a nosso ver, a causa constitucional da democracia participativa.

Se assim proceder, a Assembléia Legislativa do estado do Ceará renovará e honrará também a tradição pioneira da terra que libertou seus escravos antes da Lei Áurea do Segundo Reinado. E terá dado, por sem dúvida, largo passo para obter uma das mais belas, justas e valiosas conquistas de nossa época constitucional.

Vamos, portanto, sagrar e consagrar a soberania popular num país da periferia em que a tragédia do poder tem sido precisamente não tê-la feito ainda um poder supremo, um poder da realidade e não da ficção, da concretude e não da abstração, da substância e não da forma, da prática e não apenas da teoria.

A grandeza desse passo pioneiro está ao inteiro alcance dos deputados cearenses se fizerem a reforma da Constituição estadual e deflagrarem em âmbito nacional a cruzada participativa que buscará introduzir na Carta Magna a iniciativa popular em matéria constitucional.

Se o fizer a Assembléia do estado do Ceará imprimirá seu nome nos fastos da democracia brasileira como a casa da Constituição, do cidadão participativo, dos poderes legítimos, do povo soberano, fazendo assim real e concreto, em toda sua dimensão de legitimidade, o parágrafo único do artigo 1º da Carta de 1988.

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    é doutor honoris causa da Universidade de Lisboa, membro do Comitê de Iniciativa que fundou a Associação Internacional de Direito Constitucional e fundador da revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais.

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