Exercício do poder

Direito Administrativo surge para controlar agente público

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12 de agosto de 2007, 0h00

1 – O Direito Administrativo e o exercício do Poder Estatal

O Direito Administrativo nasceu e desenvolveu-se sobre um substrato lógico-sistemático peculiar, como um dos filhos do Estado de Direito, pela superação da antiga e estratificada estrutura que então vigia há milênios em que o Estado personificava-se na figura de um soberano.

As leis que até então eram dirigidas exclusivamente aos cidadãos, em suas relações privadas, passaram também a sujeitar o próprio Estado, como garantia contra o exercício abusivo do poder conferido ao seu detentor.

Demais disso, sob a farta experiência histórica dos arbítrios e abusos cometidos por aqueles que detinham o poder, instituiu-se a separação de poderes como forma de evitar a formação de governos absolutos.

Desse modo, o exercício do poder do Estado foi dividido em três funções distintas: legislativa, administrativa e judiciária.

Inicialmente, cada uma dessas esferas de poder funcionava como um compartimento estanque de competências, com o exercício de parcelas de atribuições específicas. Sabe-se, todavia, que com o desenvolvimento da sociedade e do Estado essa divisão acabou por tornar-se mais flexível, possibilitando o exercício de funções típicas e atípicas por cada um desses poderes.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar poderes requeridos para supri-las”. E observa referido autor que “Quem exerce função administrativa está adstrito a satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade” [1].

O exercício da função administrativa compete à Administração pública que, segundo Romeu Bacellar Filho, consiste num aparelhamento complexo que o Poder Público cria para cuidar de seus serviços e atingir os seus objetivos na medida em que se organiza [2].

A Administração Pública, como curadora dos interesses da coletividade, constitui-se numa complexidade de órgãos e agentes que dirigem seus atos com vistas a determinados objetivos. Esses objetivos são explicitados em um rol exemplificativo no artigo 3° da Constituição Federal [3] e, em sua essência, têm como liame um princípio basilar, qual seja: a dignidade da pessoa humana [4].

2 – Os atos administrativos e o interesse público

Os agentes públicos exercem a função administrativa por meio da prática de determinados atos que vinculam a administração pública tanto nas causas quanto nos efeitos produzidos.

Esses atos, ditos administrativos, integram o gênero atos jurídicos e apresentam uma peculiaridade especial: são praticados dentro de um sistema próprio de normas e princípios aplicáveis à administração pública, denominado regime jurídico administrativo.

Para Romeu Bacellar Filho: “O regime jurídico administrativo compõe-se, assim, tanto pela necessidade de proteção aos direitos do particular em relação ao Estado quanto pela obrigatória satisfação dos interesses coletivos. Desta conjugação de prerrogativas e sujeições extrai-se o dever da Administração de realizar o bem comum”.

Note-se, portanto, que o exercício da função pública por meio dos atos administrativos é vinculado a um dever jurídico orientado ao bem comum da coletividade. E, embora sejam imprecisos os conceitos jurídicos de termos tais como o “bem comum” ou o “interesse público”, amiúde utilizados por legisladores, juristas e operadores do direito, o senso comum traduzido na idéia de justiça e equidade serve como vetor orientador da conduta do agente público no exercício de suas funções.

Neste ponto, calha trazer a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, que entende que “(…) o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem” [5].

Observa-se, portanto, que sobre o agente público incide uma dupla responsabilidade: como cidadão, a quem compete cumprir seus deveres e abster-se de praticar atos que venham de encontro ao interesse público; e como agente público que, em face de seu vínculo profissional, deve buscar alcançar os melhores resultados no exercício de sua função, dentro da legalidade e atendendo aos princípios expressos na Constituição Federal.

3 – O princípio da eficiência na administração pública

Na última década foram presenciadas profundas mudanças no paradigma da organização da Administração Pública brasileira, repudiando-se o modelo burocrático e elegendo o modelo gerencial como solução para a crise que se instalou na administração pública. Isso se deu máxime pela incapacidade do Estado de cumprir todos os compromissos sociais assumidos pela Carta Magna de 1988, e pela crença de que o mercado poderia, por si só, atender a todas as necessidades dos “usuários” do aparato estatal.

Observa Adriana da Costa Ricardo Schier que “No contexto da reforma do aparelho do Estado brasileiro verificou-se, como se viu, a tentativa de implantar, no âmbito da Administração Pública, mecanismos da iniciativa privada” [6]. Essa tentativa torna-se evidente pela inserção do princípio da eficiência no art.37 da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional n° 19/98.

E embora haja doutrinadores que dão ao referido princípio uma importância secundária [7], não se pode ignorar o significativo impacto que a sua elevação ao nível constitucional trouxe ao direito brasileiro. Verifica-se, na administração pública dos dias atuais, mesmo que por via reflexa, a busca por resultados mais céleres e menos custosos ao erário. Evidencia-se, portanto, a relevância dada a dois fatores que anteriormente despertavam interesse tão somente dos economistas: tempo e custo.

4 – O dever de precaução nos atos administrativos

A precaução pode ser traduzida como uma cautela antecipada a determinado fato danoso previsível, ou não, de modo a afastar ou reduzir ao mínimo a probabilidade de que ele ocorra.

Trata-se de um trabalho mental que supera em muito a tradicional tarefa de verificar a subsunção de um fato a norma, decorrente do princípio da legalidade. O agente público, ao adotar a precaução, avalia uma variedade de hipóteses possíveis desde as causas que autorizam a prática do ato até as conseqüências advindas do mesmo. Havendo a possibilidade de um evento danoso, deverá o agente lançar mão dos poderes conferidos por sua função pública para minimizar ou suprimir a possibilidade de ocorrência do dano.

A precaução, embora seja por natureza incompatível com a celeridade, não se contrapõe ao princípio da eficiência. Mais do que isso: a precaução precede a eficiência, uma vez que um ato praticado automaticamente, ou de forma açodada, sem a devida apreciação das causas e conseqüências, pode comprometer, ou mesmo invalidar, um dos componentes fundamentais perseguidos pelo princípio da eficiência: o resultado.

Desse modo, deve o agente público agir com precaução na prática dos atos administrativos, de modo a reduzir ao mínimo a possibilidade de ocorrência de lesão ao interesse público, tanto de modo direto quanto indireto.

No primeiro caso temos a hipótese do administrador público que, mesmo sabendo dos riscos existentes, permite o trânsito de veículo público sem que o mesmo seja coberto por contrato de seguro contra acidentes. No último caso trazemos a hipótese de ato administrativo praticado sem a devida precaução, invalidado pela inobservância de um dos seus requisitos básicos [8], resultando, desse modo, discussão no âmbito judicial e maiores ônus ao erário decorrentes da demanda, pela posterior anulação do ato pelo Poder Judiciário.

5 – Conclusão

Ao investir-se em um cargo público, o cidadão deve ter em mente que assume um múnus publico, que implica mais deveres que direitos. É um encargo dirigido àqueles que se dispõem a administrar a coisa pública que, por sua natureza, exige muito mais cuidados do que o devido aos bens e interesses privados.

Por essa razão, um dos deveres a que se submete o agente público é o de precaução, que evidencia a sua preocupação com o que não é seu, com o que é de todos.

Naturalmente, a precaução não pode ser tomada como escusa para o imobilismo, para a letargia. Pelo contrário, ela surge como elemento motivador para que o agente público pratique atos que, mesmo que não explicitamente previstos na lei, evidenciem o cuidado com a coisa pública, a busca pelos resultados que mais se coadunam com a dignidade da pessoa humana, verdadeiro alicerce dos demais princípios constitucionais.

Notas:

[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22.ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p.68.

[2] BACELLAR FILHO, Romeu. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p.16.

[3] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

[4] Nesse sentido observa José Afonso da SILVA que: “É pela primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos do Estado brasileiro, não todos, que seria despropositado, mas os fundamentais, e, entre eles, uns que se valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana”. (Curso de Direito Constitucional Positivo, 28.ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p.105/106).

[5] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op.cit. p.58

[6] SCHIER, Adriana da Consta Ricardo. Administração Pública: Apontamentos sobre os Modelos de Gestão e Tendências Atuais. In: Edgar Guimarães (Coord.). Cenários do Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2004, v.01, p.51

[7] Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, faz célebre o tratamento secundário que dá a tal princípio iniciando as suas considerações com a seguinte oração: “Quanto ao princípio da eficiência, não há nada a dizer sobre ele”. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op.cit. p.11).

[8] Observa Marcus Vinícius Corrêa BITTENCOURT que “Não há uniformidade na doutrina a respeito de quais seriam os elementos do ato administrativo, necessários para sua existência e validade perante o sistema normativo. Tradicionalmente, a doutrina indica cinco elementos para configurar o ato administrativo: sujeito (competência), finalidade, forma, motivo e objeto”. (Manual de Direito Administrativo, 2.ed. Fórum: Belo Horizonte, 2007.p.117)

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