Jogada da sorte

MPF acusa TV Globo de enriquecimento ilícito em sorteio

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8 de agosto de 2007, 16h39

O Ministério Público Federal ajuizou, na 2ª Vara Federal de São Paulo, Ação Civil Pública contra a TV Globo e a Editora Globo, acusadas de enriquecimento ilícito em razão da promoção “Jogada da Sorte”, feita durante o Campeonato Brasileiro de 2003. O sorteio era feito pelo apresentador Fausto Silva, no Domingão do Faustão.

De acordo com o procurador da República Luiz Fernando Gaspar Costa, que assina a ação, a campanha resultou em arrecadação de 14,8 milhões decorrentes da venda de 4,9 milhões de fascículos da promoção. Segundo ele, o MPF constatou que “tal evento foi promovido de maneira ilícita, por contrariar os dispositivos legais presentes na Lei 5.768/71, que trata da distribuição gratuita de prêmios”.

De acordo com a lei, a distribuição gratuita de prêmios a título de propaganda, quando efetuada mediante sorteio, vale-brinde, concurso ou operação assemelhada, dependerá de prévia autorização do Ministério da Fazenda. O MPF afirma que não havia autorização.

O procurador ressaltou que a promoção feita pelas rés não foi gratuita e não serviu para fins de dar publicidade a qualquer produto. Segundo ele, o fascículo consistia apenas em uma saída para o consumidor dar dinheiro para concorrer aos prêmios.

“Caso as empresas tivessem feito a promoção nos termos da lei, o montante mencionado não teria sido arrecadado, permanecendo ele em poder das centenas de milhares de pessoas que adquiriram onerosamente os fascículos ilicitamente vendidos nas casas lotéricas de todo o Brasil”, registrou o procurador na ação.

Ele ressaltou, ainda, que é necessário reconhecer que o enriquecimento ilícito em favor da TV Globo e da Editora Globo gerou prejuízo às empresas concorrentes das rés. Assim, solicitou que as empresas sejam condenadas a restituir o montante indevidamente adquirido.

O juiz federal Paulo Cezar Neves Junior, da 2ª Vara Federal Cível, por despacho, determinou que o MPF inclua a Caixa Econômica Federal no pólo passivo, já que um dos objetivos da ação é anular o ato administrativo da CEF que autorizou as outras rés a implementarem os chamados “sorteios gratuitos”, por meio da promoção.

A ação do MPF teve origem no pedido apresentado pelo ex-deputado Afanásio Jazadji, assessorado pelo advogado Luis Nogueira, à Procuradoria da Republica de São Paulo, em 2003. Ao acolher o pedido do ex-deputado, a Procuradora instaurou procedimento investigativo o que levou o MPF a constatar a ilicitude da promoção.

A promoção

Para participar do sorteio e concorrer a 50 carros zero quilômetro e a prêmios em barras de ouro, o interessado deveria adquirir nas casas lotéricas um exemplar do fascículo da “Jogada da Sorte”, no valor de R$ 3, contendo tabelas de jogos e algumas informações sobre o Campeonato Brasileiro daquele ano.

O conteúdo do fascículo consistia em um cupom destacável que o participante deveria preencher com seus dados pessoais e responder à pergunta qual o campeonato de futebol que está dando prêmios?, questão para a qual se previam duas alternativas de resposta (“brasileiro” e “outros”).

O advogado Luiz Camargo de Aranha Neto, que representa a Rede Globo, informou que as empresas ainda não receberam notificação.

Leia a Ação Civil Pública

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DA —VARA CÍVEL FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República signatário, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência, com fulcro nos artigos 127; 129, III, ambos da Constituição Federal; art. 6.º, XIV, “b”, da Lei Complementar n.º 75/93 e nos artigos 1.º a 5.º da Lei n.º 7.347/85, propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

pelos fatos e fundamentos a seguir expostos, em face de TV GLOBO LTDA., pessoa jurídica de direito privado, inscrita no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas sob o n.º 33.252.156/0001-19, com sede na Rua Lopes Quintas, n.º 303, Jardim Botânico, Rio de Janeiro — RJ, e EDITORA GLOBO S/A, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas sob o n.º 04.067.191/0001-60, com sede na Av. Jaguaré, n.º 1485, Jaguaré, São Paulo– SP, requerendo o parquet, desde logo, a intimação da Caixa Econômica Federal, a fim de integrar o pólo ativo da ação, na qualidade de assistente, pelas razões que adiante serão mencionadas.

1) Dos fatos

Em outubro de 2003 a Procuradoria da República em São Paulo recebeu denúncia (fls. 3-4 da Representação em anexo) relatando a existência de irregularidades na promoção comercial intitulada “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003”, promovida pelas empresas que ora figuram como rés na presente ação. Tal denúncia ensejou a instauração da Representação 1.34.001.005423/2003-23, que consta em anexo à exordial.


Tal promoção, ocorrida no período de 1.º de junho a 14 de dezembro de 2003, consistiu na distribuição, na forma do Plano de Operação elaborado pelas rés (fls. 53-65 da Representação), de prêmios consistentes em: 50 (cinqüenta) automóveis 0 km, marca Volkswagen, modelo Gol, básico, duas portas, 1.0, Geração III, ano e modelo 2003, no valor unitário de R$ 15.000,00; 25 (vinte e cinco) prêmios em barras de ouro no valor individual de R$ 50.000,00; e 3 (três) prêmios em barras de ouro no valor individual de R$ 100.000,00.

Para participar de tal promoção, o interessado deveria adquirir nas casas lotéricas um exemplar do fascículo intitulado “Jogada da Sorte”, ao preço de R$ 3,00, contendo tabela de jogos e algumas informações relacionadas ao Campeonato Brasileiro de Futebol do ano de 2003. O conteúdo indubitavelmente mais chamativo de tal fascículo consistia em um cupom destacável que o participante deveria preencher com seus dados pessoais e responder à pergunta “qual o campeonato de futebol que está dando prêmios?”, questão para a qual se previam duas alternativas de resposta (“brasileiro” e “outros”) (fl. 5 da Representação).

A escolha da resposta correta (bastante óbvia) propiciava ao participante concorrer aos prêmios acima enunciados, os quais tinham seu sorteio apresentado em programa televisivo veiculado aos domingos pela ré TV Globo Ltda., no período acima assinalado.

Tendo o parquet federal, após o recebimento da denúncia que ensejou a instauração do procedimento investigativo n.º 1.34.001.005423/2003-23, diligenciado no sentido de apurar a existência de irregularidades no âmbito da referida promoção comercial realizada pelas empresas rés, houve a constatação de que tal evento foi promovido de maneira ilícita, por contrariar os dispositivos legais que regem a realização de sorteios por particulares, presentes no âmbito da Lei n.º 5.768/71, sobre a qual se tratará adiante.

2) Observações Preliminares

2.1) Da competência da Justiça Federal

A autorização e a fiscalização das promoções comerciais realizadas por instituições não-financeiras, de acordo com o que dispõe o art. 18-B, parágrafo primeiro, da Medida Provisória n.º 2.216-37 de 31/8/2001, conservado ex vi do art. 27, § 9.º da Lei n.º 10.683/2003, são de atribuição da Caixa Econômica Federal. Desta forma, é esta empresa pública federal que possui o dever legal de atuar, desde o momento em que é apresentado o pedido de autorização para se proceder à campanha publicitária de distribuição gratuita de prêmios, até a prestação de contas referentes a este.

Assim, o interesse da Caixa Econômica Federal nesta Ação Civil Pública é incontestável, especialmente porque é ela a titular do poder sancionatório, na esfera administrativa, no que tange a essa matéria. Isto posto, não restam dúvidas acerca da competência da Justiça Federal para apreciar a demanda que aqui se apresenta, uma vez que o artigo 109, I, da Constituição Federal dispõe, in verbis:

“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessados na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes do trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho” (sublinhamos).

Sendo assim, requer o Ministério Público Federal a intervenção da CEF no presente feito, em observância ao dispositivo constitucional acima referido.

Ademais, no que concerne à competência territorial, cabe a apreciação da lide ao Juízo da Subseção Judiciária de São Paulo, levando-se em conta que, embora o dano seja difuso e atinja toda a população brasileira, fica consagrada a regra firmada pelo parágrafo 2.º do artigo 109 acima citado:

“Art. 109. (…)

§ 2º – As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal.”

Por outro lado, afirma-se a competência da Justiça Federal para cuidar da presente demanda em razão da presença do Ministério Público Federal no pólo ativo, na esteira do que foi decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça (1). Se o Ministério Público Federal é parte, a Justiça Federal é competente para conhecer do processo.

Tal entendimento é dominante na nossa jurisprudência, havendo firmado posição a respeito o E. Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, no seguinte sentido:

“PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MPF.

Se a ação proposta pelo MPF está incluída dentro de suas atribuições, prevista na CF 88 e na LC n.º 75/93, como é o caso dos autos, basta esse fato para legitimar o Parquet Federal para a causa e, conseqüentemente, a Justiça Federal é a competente para o processo e julgamento do feito. Precedentes da jurisprudência. Apelação conhecida e provida”. (TRF da 4.ª Região, Apelação Cível 2001.04.01.065054-8/SC, Rel. Juiz Federal Carlos Eduardo T. F. Lenz, D.J. 25.4.2002).”


2.2) Da legitimidade ativa do Ministério Público Federal

Impõe-se a presença do Ministério Público Federal no pólo ativo do presente feito, tendo em vista tratar-se de matéria cuja legislação, regulamentação e fiscalização competem à União Federal.

Por definição apresentada pelo artigo 127 da Constituição Federal de 1988, é o Ministério Público órgão indispensável à atividade jurisdicional do Estado, cabendo a ele zelar pela defesa da ordem jurídica, pelo regime democrático e pelos interesses sociais e individuais indisponíveis. Tal escopo se encontra inserido entre as funções institucionais do órgão ministerial elencadas no artigo 129 da Carta Magna, o qual, no seu inciso III, atribui ao parquet a atribuição de:

“Art. 129. (…)

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”

Dentre os outros interesses difusos e coletivos a que faz alusão o texto constitucional, insere-se o bem jurídico referente à ordem econômica, expressamente prevista no inciso V do art. 1.º da Lei n.º 7.347/85 como interesse cuja violação enseja a propositura de ação civil pública para responsabilização pelos danos materiais e morais a ele causados.

Para propor a ação a que aqui se alude, dispõe a Lei n.º 7.347/85 sobre os órgãos que estão legitimados a fazê-lo, acompanhando a Constituição Federal, de forma expressa, ao também atribuir a função ao órgão ministerial, conforme está expressamente previsto no art. 5.º do referido diploma legal.

3) Da incompatibilidade entre a promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003” e o disposto na Lei n.º 5.768/91 e no Decreto n.º 70.951/72:

O inciso XX do art. 22 da Constituição Federal prevê ser de competência privativa da União Federal a criação de normas jurídicas sobre sistemas de sorteios, estando até mesmo os Estados e Municípios afastados, prima facie, da possibilidade de legislarem sobre a instituição de loterias e outras modalidades de sorteio.

Se tal capacidade é, em princípio, negada até mesmo aos Estados-Membros, desnecessário dizer que a iniciativa para a realização de sorteios por particulares deve se revelar extremamente restrita, sendo possível apenas nas hipóteses em que a lei federal expressamente autorizá-la, uma vez que tais iniciativas causam grande repercussão na ordem econômica, em razão do elevado montante de dinheiro que é absorvido da coletividade.

Para refrear o resultado nocivo que tal prática produz na ordem econômica (uma vez que o dinheiro dispendido com a participação em tais sorteios poderia ser empregado para o fomento da economia, por meio da realização de investimentos, aquisição de bens ou contratação de serviços), o legislador sancionou a atividade de exploração ilegal de loterias na esfera criminal e restringiu a realização de sorteios por parte de particulares aos casos estritamente previstos em lei.

Neste momento, é oportuna a menção ao entendimento do Min. Eros Grau, em voto prolatado perante o Egrégio Tribunal:

“A Constituição do Brasil determina expressamente que compete à União legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios. A exploração de loterias constitui ilícito penal. Nos termos do disposto no art. 22, inciso I, da Constituição, lei que opera a migração dessa atividade do campo da ilicitude para o campo da licitude é de competência privativa da União.” (ADI 2.948, Rel. Min. Eros Grau, D.J. 13.05.05 – sublinhamos).

A disciplina da realização de sorteios por particulares é feita pela Lei n.º 5.768/71, que por sua vez é complementada pelo disposto no Decreto n.º 70.951/72. Tais diplomas legais versam tão-somente sobre a distribuição gratuita de prêmios a título de propaganda, ou seja, a utilização de sorteios, vales-brinde, concurso ou operação assemelhada para impulsionar a aquisição de determinado produto, disponível no mercado (art. 1.º), consistindo, destarte, em uma operação de marketing utilizável por pessoas jurídicas que exerçam atividade comercial, industrial ou de compra e venda de bens imóveis (art. 2.º).

No caso da promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003”, realizada pelas rés, verifica-se que os sorteios realizados não foram dotados de gratuidade, nem serviram para fins de dar publicidade a qualquer produto.

Com efeito, a ausência de gratuidade se infere facilmente, na medida em que, para participar da promoção in commento, o interessado deveria adquirir onerosamente, com o custo de R$ 3,00, um fascículo na qual constava o cupom que, preenchido corretamente, permitiria ao participante concorrer aos prêmios noticiados.

Ademais, a ausência de correlação entre a promoção e a publicidade de qualquer produto também se revela nítida, uma vez que o fascículo “Jogada da Sorte”, vendida pelas rés através das casas lotéricas, nada mais era do que o único meio pelo qual o interessado poderia concorrer aos prêmios noticiados na mídia. Se o consumidor adquiria a fascículo, tal fazia por ser esse o único meio de adquirir o cupom que, preenchido corretamente, permitir-lhe-ia concorrer aos prêmios compostos de automóveis e elevadas quantias em barras de ouro.


Conforme demonstra inequivocamente o exemplar juntado a fl. 05 da Representação anexa, tal fascículo consistia apenas em um subterfúgio para o consumidor despender dinheiro para concorrer aos prêmios. O seu conteúdo informativo se revelava irrisório, na medida em que se restringia apenas a uma tabela dos jogos do Campeonato Brasileiro de Futebol de 2003, e alguns parágrafos de informações alçadas à condição de “curiosidades”.

O elemento que melhor comprova o fato de que tal fascículo foi comercializado apenas com o intuito de tornar onerosa a participação dos interessados nos sorteios promovidos consiste na sua própria capa. Nesta, não há menção alguma ao conteúdo informativo do fascículo, havendo única e exclusivamente o alardeamento dos prêmios a serem sorteados àquela época. Aliás, o próprio título do fascículo, “Jogada da Sorte”, resume a idéia de que a pequena publicação disponibilizada para venda nas casas lotéricas tinha por único escopo ser o meio para conduzir o seu comprador a participar dos sorteios dos prêmios ostensivamente anunciados na mídia.

Destarte, verifica-se que a promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003” não possuía qualquer idoneidade para ser realizada sob a égide da Lei 5.768/71, por se distanciar tanto da gratuidade quanto do escopo publicitário, ambos elementos sem os quais a ordem jurídica não admite a realização de sorteios por parte da iniciativa privada.

Dito isso, constata-se que a promoção sobre a qual ora se versa também viola o disposto no art. 11, III, do Decreto n.º 70.951/72, o qual prevê:

“Art. 11. Não serão autorizados os planos que:

III – Permitam ao interessado transformar a autorização em processo de exploração dos sorteios, concursos ou vales-brindes, como fonte de receita”

Conforme já explanado, a promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro de 2003” não foi realizada com a finalidade de divulgar determinado produto colocado à venda no mercado, que é a única permitida pelo disposto na Lei n.º 5.768/71, uma vez que o que deveria ser o produto em questão, ou seja, o fascículo “Jogada da Sorte”, consistia sobremaneira em um meio oneroso de o interessado ter acesso à disputa pelos prêmios já referidos, não consistindo ele, por si só e independentemente do sorteio promocional, um item de interesse para o mercado consumidor.

Destarte, não se vislumbrando a existência de um escopo publicitário que deveria permear sua realização, infere-se que a promoção executada teve apenas o intuito de que as rés auferissem receitas mediante a venda dos fascículos disponibilizados nas casas lotéricas de todo o território nacional, ou seja, a promoção não passou de um mecanismo que possibilitou à TV Globo Ltda. e à Editora Globo S/A explorar os sorteios realizados com intuito de auferir receitas, nos exatos termos da vedação contida no inciso III do art. 11 do Decreto n.º 70.951/71.

Como se tais ilegalidades não bastassem, a referida campanha promocional acabou, ainda, por violar outro regramento legal, previsto no art. 15 do Decreto n.º 70.951/72. Tal diploma legal prevê exaustivamente os prêmios que podem ser distribuídos na forma da Lei n.º 5.768/71, nos seguintes moldes:

“Art. 15. Poderão ser distribuídos prêmios que consistam em:

I – mercadorias de produção nacional ou regularmente importadas;

II – títulos da Dívida Pública e outros títulos de crédito que forem admitidos pelo Ministro da Economia, Fazenda e Planejamento;

III – unidades residenciais, situadas no País, em zona urbana;

IV – viagens de turismo;

V – bolsas de estudo.”

Da análise dos prêmios sorteados no âmbito da promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003”, verifica-se, conforme já mencionado na parte inicial da presente exordial, que eles consistiram em: 1) automóveis de fabricação nacional; 2) barras de ouro, no valor de R$ 50.000,00 e R$ 100.000,00.

Observado o disposto no art. 15 do Decreto n.º 70.951/72, observa-se que os automóveis sorteados parecem estar inseridos no permissivo legal contido no seu inciso I (mercadorias de produção nacional ou regularmente importadas); todavia, no que tange aos prêmios em barras de ouro, constata-se que tal modalidade de premiação não encontra guarida em nenhuma das hipóteses do referido dispositivo. Sendo este rol exauriente dos prêmios que podem ser sorteados em promoções realizadas pela iniciativa privada, constata-se a existência de uma outra ilegalidade na promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003”, de responsabilidade das empresas que figuram no pólo passivo da presente ação civil pública.

4) Dos efeitos jurídicos das ilegalidades constatadas no âmbito da promoção “Jogada da Sorte”:

O art. 4.º da Lei n.º 5.768/71 dispõe:


“Art. 4.º. Nenhuma pessoa física ou jurídica poderá distribuir ou prometer distribuir prêmios mediante sorteios, vale-brinde, concursos ou operações assemelhadas, fora dos casos e condições previstos nesta lei, exceto quando tais operações tiverem origem em sorteios organizados por instituições declaradas de utilidade pública em virtude de lei e que se dediquem exclusivamente a atividades filantrópicas, com fim de obter recursos adicionais necessários à manutenção ou custeio de obra social a que se dedicam” (sublinhamos).

Por sua vez, o art. 8.º do Decreto n.º 70.951/72 prevê:

“Art. 8.º. Fora dos casos e condições previstas em lei especial, neste Regulamento e em atos que o complementarem, nenhuma pessoa, jurídica ou natural, poderá distribuir ou prometer distribuir prêmios mediante sorteio, vale-brinde, concurso ou operação assemelhada”.

Conseqüentemente, necessário o reconhecimento da ilegalidade de toda distribuição de prêmios, promovida por particulares, que fuja à disciplina dada pelos dois diplomas legais acima referidos. Conforme já se demonstrou, a promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003” infringiu em diversos aspectos a disciplina imposta pelo legislador a tais atividades, motivo pelo qual se revelam plenamente cabíveis tanto a aplicação das sanções previstas na própria Lei n.º 5.768/71 (art. 12, inciso I c/c parágrafo único, e art. 13), quanto a pretensão de que as empresas que figuram como rés no bojo da presente ação promovam o integral ressarcimento das receitas por elas percebidas em virtude da realização ilegal da mencionada promoção, uma vez que tal percepção, feita ao arrepio da lei, configura flagrante hipótese de enriquecimento ilícito por parte da TV Globo Ltda. e da Editora Globo S/A, as quais, às custas da poupança popular e em violação à legislação que regula a distribuição de prêmios por particulares, auferiram vultuosas quantias por meio da venda de fascículos que condicionavam a participação dos interessados na promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003”.

5) Da subsunção dos atos praticados pelas co-rés ao disposto nos arts. art. 12, I, e art. 13, da Lei n.º 5.768/71:

A própria Lei n.º 5.768/71 estabelece, em seus arts. 12 e 13, as penalidades que devem recair sobre as pessoas que realizarem as atividades nela disciplinadas sem prévia autorização ou em desacordo com as normas jurídicas que tratam da matéria. No que tange especificamente ao caso ora em comentário, referente à realização, por particulares, de promoções comerciais nas quais haja distribuição de prêmios por sorteios, vales-brinde, concurso ou operação assemelhada, o referido diploma legal dispõe da seguinte maneira:

“Art. 12. A realização de operações regidas por esta Lei, sem prévia autorização, sujeita os infratores às seguintes sanções, aplicáveis separada ou cumulativamente:

I – no caso de que trata o art. 1.º:

a) multa de até cem por cento da soma dos valores dos bens prometidos como prêmios;

b) proibição de realizar tais operações durante o prazo de até dois anos;

Parágrafo único. Incorre, também, nas sanções previstas neste artigo quem, em desacordo com as normas aplicáveis, prometer publicamente realizar operações regidas por esta Lei.

Art. 13. A empresa autorizada a realizar operações previstas no art. 1º, que não cumprir o plano de distribuição de prêmios ou desvirtuar a finalidade da operação, fica sujeita, separada ou cumulativamente, às seguintes sanções:

I – cassação da autorização;

II – proibição de realizar tais operações durante o prazo de até dois anos;

III – multa de até cem por cento da soma dos valores dos bens prometidos como prêmio”.

No presente caso, tendo em vista que as rés TV Globo Ltda. e Editora Globo S/A obtiveram da Caixa Econômica Federal autorização para a realização da promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003” (como bem demonstra o processo administrativo n.º 90104.000.252/03-43, constante do Apenso I da Representação n.º 1.34.001.005423/2003-23, ora em anexo), sendo essa empresa pública federal o ente competente para autorizar tais atividades (art. 18-B, parágrafo primeiro, da Medida Provisória n.º 2.216-37 de 31/8/2001 c/c art. 27, § 9.º da Lei n.º 10.683/2003), constata-se que as empresas inseridas no pólo passivo da presente ação civil pública não incidem nas sanções previstas nas alíneas do art. 12 da Lei n.º 5.768/71 em decorrência da violação do caput do mencionado dispositivo.

Todavia, uma vez que o parágrafo único do referido artigo prevê que nas mesmas penalidades incorre quem, “em desacordo com as normas aplicáveis, prometer publicamente realizar operações regidas por esta Lei”, cristalina se torna a incidência de tais sanções às empresas rés.


Com efeito, a TV Globo Ltda. e a Editora Globo S/A não apenas prometeram realizar a referida promoção, como efetivamente executaram-na, sem embargos de todas as violações existentes em face da legislação vigente. Desnecessário discorrer acerca da ostensiva promessa pública, feita pelas rés, no sentido de promover a promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003” – tal se evidencia tanto pela comercialização, nas casas lotéricas de todo o território nacional, da cartela “Jogada da Sorte”, cujo conteúdo já foi detalhadamente analisado, quanto pela permanecente publicidade televisiva que a TV Globo Ltda. realizou acerca dessa promoção, que culminou na realização de sorteios semanais, transmitidos pela televisão em rede nacional, durante o período de 1.º de junho a 14 de dezembro de 2003.

Levando em consideração as diversas irregularidades cometidas pelas rés na execução da promoção ora em comentário, configurando plurais violações ao dispostos na Lei n.º 5.768/71 e no Decreto n.º 70.951/72, à outra conclusão não se pode chegar, que não a de que a TV Globo Ltda. e a Editora Globo S/A devem se submeter às sanções previstas nas alíneas do inciso I do art. 12 da Lei n.º 5.768/71, ex vi do disposto no parágrafo único do mesmo dispositivo.

Ainda que, ad argumentandum tantum, não se reconhecesse a aplicabilidade de tais penalidades às rés por força do mencionado art. 12, as mesmas teriam plena incidência em decorrência do que dispõe o art. 13 da Lei n.º 5.768/71.

Com efeito, enunciando esse dispositivo que as sanções equivalentes à proibição de realizar tais operações durante o prazo de até dois anos (inciso II) e à cominação de multa de até cem por cento da soma dos valores dos bens prometidos como prêmio (inciso III) são imputáveis às empresas autorizadas que desvirtuem a finalidade da operação, clara também se revela a subsunção dos atos praticados pelas rés às prescrições legais que implicam na aplicação de tais penalidades.

Esse desvio de finalidade se evidencia na medida em que, conforme já explanado, as empresas rés acabaram por se utilizar da promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro” como meio de auferir receitas pela venda de fascículos que continham cupons que possibilitavam aos seus adquirentes participar de sorteios de prêmios em mercadorias e em barras de ouro, e não para promover a divulgação de determinado produto posto no mercado, o que corresponde à mens legis contida na Lei n.º 5.768/71 e no seu decreto regulamentar.

Conforme já foi exposto, o fascículo “Jogada da Sorte” não continha, por si só, conteúdo que pudesse interessar ao mercado consumidor, motivo pelo qual sua própria capa se ocupava apenas em divulgar os prêmios que seriam sorteados no decorrer da promoção. O único atrativo de tal publicação era justamente o cupom impresso que, uma vez preenchido e respondido corretamente, dava ensejo a que o seu adquirente concorresse às premiações sorteadas semanalmente.

Destarte, patente se mostra o desvio de finalidade ocorrido no âmbito da promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003”, o que configura, portanto, razão adicional pela qual se deve imputar à TV Globo Ltda. e à Editora Globo S/A as penalidades correspondentes à proibição de realizar operações de distribuição gratuita de prêmios na forma da lei pelo prazo de até dois anos e à cominação de multa de até cem por cento da soma dos valores dos bens prometidos como prêmio.

Registre-se apenas que, tendo em vista que a promoção in commento teve seu término há mais de dois anos, inviável se revela a cominação da pena prevista no inciso I do art. 13 da Lei n.º 5.768/71, referente à “cassação da autorização” dada pela entidade administrativa competente para a realização da promoção irregular em razão de desvio de finalidade.

5) Do enriquecimento ilícito das rés e da obrigação jurídica de ressarcir o montante indevidamente auferido em decorrência da promoção ilegalmente realizada

LIMONGI FRANÇA (2) leciona que o enriquecimento ilícito (enriquecimento sem causa) corresponde ao “acréscimo de bens que

se verifica no patrimônio de um sujeito, em detrimento de outrem, sem que para isso tenha havido um fundamento jurídico”.

Assim, para a sua configuração, necessário que se reúnam quatro requisitos, aferíveis pela leitura do caput do art. 884 do Código Civil, quais sejam: 1) enriquecimento real por parte de alguém; 2) existência real de prejuízo para outrem; 3) ausência de fundamento jurídico válido para o enriquecimento ocorrido; 4) nexo causal entre o enriquecimento havido por uma parte e o prejuízo sofrido pela outra.

Saliente-se, todavia, que, ao contrário do que parcela considerável da doutrina e da jurisprudência inadvertidamente considera, o enriquecimento ilícito/indevido não necessariamente implica no empobrecimento de outrem. Conforme bem salienta o Enunciado 35 da I Jornada de Estudos Jurídicos promovida pelo Conselho da Justiça Federal, “a expressão ‘enriquecer às custas de outrem’ não significa, necessariamente, que deverá haver empobrecimento”.


Com efeito, para que se configure o enriquecimento ilícito basta que este ocorra em prejuízo de outrem, ou seja, que o locupletamento ocorrido coloque outra pessoa em situação desfavorável, inexistindo na situação concreta fundamento jurídico para tanto.

No presente caso, evidente se mostra o enriquecimento da TV Globo Ltda. e da Editora Globo S/A em virtude da realização da promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003”, uma vez que, como foi revelado pelas próprias rés (fls. 86-87 da Representação n.º 1.34.001.005423/2003-23), tal campanha promocional resultou numa arrecadação total de R$ 14.825.928,00, decorrente da venda ilegal de 4.941.976 fascículos intitulados “Jogada da Sorte”.

Sobejamente já se falou, por sua vez, acerca do caráter ilícito da percepção de tal montante por parte das rés. Basta mencionar que, caso as referidas empresas houvessem realizado a promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003” nos estritos termos da lei, o montante acima mencionado não teria sido arrecadado, permanecendo ele em poder das centenas de milhares de pessoas que adquiriram onerosamente os fascículos ilicitamente vendidos nas casas lotéricas de todo o Brasil. Vale dizer, a quantia que praticamente atinge a cifra de R$ 15.000.000,00 só foi auferida pela TV Globo Ltda. e pela Editora Globo S/A em decorrências das graves e plurais violações ao disposto na Lei n.º 5.768/71 e no Decreto n.º 70.951/72.

Uma vez demonstradas a existência de um enriquecimento patrimonial por parte das rés, bem como a ausência de fundamento jurídico que o justificasse, necessário se abordar a questão do prejuízo havido como consectário do locupletamento ilícito ocorrido por parte das empresas que figuram no pólo ativo da presente ação civil pública.

Esse prejuízo assume dois aspectos, ambos decorrentes do enriquecimento indevido da TV Globo Ltda. e da Editora Globo S/A.

Em primeiro lugar, fácil é perceber que tal locupletamento ocorreu em prejuízo da própria ordem econômica, uma vez considerado o elevado montante de dinheiro que foi captado pelas rés em razão da realização ilegal da promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003”, sendo que tal quantia poderia, como já foi dito em momento anterior, ter sido empregada, por aqueles que a despenderam com a aquisição onerosa dos fascículos “Jogada da Sorte”, de outro modo que não pela prática de jogos de azar, podendo essa quantia ter sido utilizada para, v.g., a aquisição de bens de consumo, contratação de serviços, constituição de investimentos, etc..

Num panorama mais abstrato, mas igualmente de fácil aferição, o prejuízo à ordem econômica é verificado em razão da própria violação das normas contidas na Lei n.º 5.768/71 e no Decreto n.º 70.951/72, que fixam regras para a proteção da poupança popular, por meio da disciplina da distribuição gratuita de prêmios à título de propaganda. Uma vez que a promoção realizada pelas rés contrariou frontalmente essa disciplina legal, ofendendo tanto a regra que tão-somente permite a gratuidade na realização dessas campanhas promocionais, quanto a regra que prevê taxativamente quais são os prêmios que podem ser distribuídos por meio da realização prêmios, sorteios, vales-brinde e concurso, tem-se verificada outra face do prejuízo causado à ordem econômica pelo locupletamento indevido das rés.

Outrossim, é necessário reconhecer que o enriquecimento ilícito ocorrido em favor da TV Globo Ltda. e da Editora Globo S/A acarretou em prejuízo para as empresas que ocupam o posto de concorrentes de ambas as rés. Tal se explica uma vez que as empresas que figuram no pólo passivo da presente ação, ao infringir as disposições da Lei n.º 5.768/71 e do Decreto n.º 70.951/72, aproveitaram-se de tais irregularidades para angariar recursos vedados por lei. Uma vez que as outras empresas que atuam no mercado editorial e televisivo não fizeram – por observância aos regramentos contidos na legislação pátria – campanhas promocionais da mesma índole daquela ilicitamente promovida pelas rés, tem-se outra faceta do prejuízo causado pelo locupletamento ilícito das empresas TV Globo Ltda. e Editora Globo S/A.

Desse modo, tendo-se demonstrado a existência de um enriquecimento indevido por parte das rés, ocorrido sem o devido fundamento de direito e em prejuízo à poupança popular (bem jurídico inserido na própria idéia de ordem econômica), plenamente demonstrada se revela a necessidade de que as empresas rés sejam condenadas a restituir todo o montante indevidamente adquirido, por força do disposto no art. 884 do Código Civil.

6) Do pedido

Por todo o exposto, o Ministério Público Federal requer seja a presente ação julgada procedente, postulando-se desde já:

1. A condenação das rés ao ressarcimento do valor ilicitamente auferido em virtude da realização da promoção “Jogada da Sorte do Campeonato Brasileiro 2003”, no montante de R$ 14.825.928,00, corrigido monetariamente, por força do disposto no art. 884 do Código Civil, devendo tal importância ser revertida ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos – FDD, ex vi do disposto no art. 13 da Lei n.º 7.347/1985 c/c art. 2.º, I, do Decreto n.º 1.306/1994 ;

2. A condenação das rés à proibição de realizar as promoções de que trata a Lei n.º 5.768/71 durante o prazo de dois anos, ex vi do art. 12, I, “b” e art. 13, II, do referido diploma legal;

3. A condenação das rés ao pagamento de multa, no montante de 100% (cem por cento) do valor total da premiação, nos termos dos art. 12, I, “a” e art. 13, III, da Lei 5.768/71, em montante equivalente a R$ 2.285.000,00 (conforme dados a fl. 451 do Apenso I da Representação n.º 1.34.001.005423/2003-23).

Por fim, requer-se:

1. a citação da Rés, na pessoa de seus representantes legais, postulando-se desde já a expedição de carta precatória para a Seção Judiciária do Rio de Janeiro, para fins de promover a citação da ré TV Globo Ltda.;

2. juntada dos autos da Representação MPF/SP n.º 1.34.001.005423/2003-23;

Protesta o Ministério Público Federal provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos, especialmente por meio de prova documental e pericial.

Dá-se à causa o valor de R$ 17.110.928,00 (dezessete milhões, cento e dez mil e novecentos e vinte e oito reais).

São Paulo, 17 de janeiro de 2007.

LUIZ FERNANDO GASPAR COSTA

Procurador da República

Notas de Rodapé

1- Conflito de Competência 4927-0/DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, D.J. 4.10.1993

2- LIMONGI FRANÇA, Rubens. Enriquecimento sem causa. In “Enciclopédia Jurídica Saraiva”, vol. 32. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 210.

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