Acusador especial

Procurador-geral propor perda de cargo não é privilégio, mas garantia

Autor

  • Maurizio Marchetti

    44 anos Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

5 de agosto de 2007, 0h00

No domingo, 29 de julho de 2007, o jornal Folha de S.Paulo, em “Tendências & Debates”, encontramos o artigo intitulado “A Defesa do Ministério Público”, escrito pelo renomado e eminente procurador-geral de Justiça, Rodrigo Pinho, chefe do Ministério Público do Estado de São Paulo e presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União, onde se mostrou preocupado com a eventual promulgação do projeto de Lei Complementar 17/2007, da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais.

Após afirmar que desde a Guerra dos Emboabas os mineiros “sempre estiveram em defesa do interesse público”, o eminente procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Rodrigo Pinho, sustentou que o projeto de Lei Complementar 17/2007, da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, deveria ser vetado por conter inúmeras inconstitucionalidades, motivo pelo qual evocou ao Governador de Minas Gerais que o vete integralmente.

Dois foram os argumentos apresentado pelo renomado procurador-geral para a evocação de veto integral:

O primeiro argumento alegado foi vício quanto ao princípio da reserva de iniciativa, pois de exclusividade do procurador-geral do Ministério Público de Minas Gerais, sem qualquer possibilidade de emendas irregulares por “impertinência temática”, o que teria levado ao desvirtuamento da proposta original.

Depois, o segundo argumento, afirmou que de acordo com a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público o procurador-geral tem o poder de investigar civilmente, pela prática de atos de improbidade administrativa e outros que atinjam direitos e interesses difusos e coletivos, apenas o governador e presidentes de Assembléias Legislativas e Tribunais, o que corresponderia a reedição de norma estadual paulista — Lei Complementar 734, de 26.11.1993 — que foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.285, com vigência suspensa desde 1995, pelo Supremo Tribunal Federal, por liminar até hoje válida.

A respeito, argumentou-se que a promulgação do Projeto de Lei Complementar 17/2007 seria uma volta ao que foi denominado por “caneta forte”, o que se revelaria inconveniente concentração de poderes na pessoa do chefe do Ministério Público, o que poderia significar “enormes prejuízos à causa democrática e constituirão um dos mais sérios e duros ataques à independência do Ministério Público brasileiro desde a restauração das liberdades públicas e do Estado Democrático de Direito pela Carta de 1988”.

Quanto ao primeiro argumento, cabe salientar, que cabe exclusivamente ao Poder Legislativo dizer o que é tematicamente pertinente a projeto de lei, sob pena de se invadir a independência do Poder Legislativo, não podendo a respeito ter qualquer tipo de interferência externa.

Quanto ao segundo argumento, que é o que mais interessa, não deixa de ser curioso sustentar-se que a concentração de competências na pessoa do chefe do Ministério Público significaria “enormes prejuízos à causa democrática” além de “um dos mais sérios e duros ataques à independência do Ministério Público”, quando verificamos que a mesma regra encontra-se em pleno vapor dentro das próprias Leis Orgânicas do Ministério Público vigentes. Aliás, em vários dispositivos, conforme podemos verificar pelo seguinte elenco referente apenas à Lei Complementar Federal 75/93, que disciplina o Ministério Público da União, cujo artigo 240, inciso V, alínea “b”, dispõe que membro vitalício do Ministério Público pode perder o cargo por ato de “improbidade administrativa”, em ação civil a ser ajuizada apenas e tão somente pelo respectivo procurador-geral (Estado ou União), depois de autorizado pelo respectivo Conselho, exatamente como está proposto pelo Projeto de Lei Complementar 17/2007, da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Vejamos:

Quanto ao Ministério Público Federal:

ARTIGO 57. Compete ao Conselho Superior do Ministério Público Federal:

(…)

XX — autorizar, pela maioria absoluta de seus membros, que o Procurador-Geral da República ajuíze a ação de perda de cargo contra membro vitalício do Ministério Público Federal, nos casos previstos nesta lei;

Quanto ao Ministério Público do Trabalho:

ARTIGO 98. Compete ao Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho:

(…)

XVIII — autorizar, pela maioria absoluta de seus membros, que o Procurador-Geral da República ajuíze a ação de perda de cargo contra membro vitalício do Ministério Público do Trabalho, nos casos previstos em lei;

Quanto ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios:

ARTIGO 166. Compete ao Conselho Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios:

(…)

XVIII — autorizar, pela maioria absoluta de seus membros, que o Procurador-Geral da República ajuíze ação de perda de cargo contra membro vitalício do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, nos casos previstos em lei;

Quanto ao Ministério Público Militar:

ARTIGO131. Compete ao Conselho Superior do Ministério Público Militar:

(…)

XVIII — autorizar, pela maioria absoluta de seus membros, que o Procurador-Geral da República ajuíze ação de perda de cargo contra membro vitalício do Ministério Público Militar, nos casos previstos nesta lei complementar;

Regra de idêntico teor encontramos na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625/93), referente aos Ministérios Públicos Estaduais, que assim dispõe sobre o “acusador especial”:

Art. 38. Os membros do Ministério Público sujeitam-se a regime jurídico especial e têm as seguintes garantias:

§ 2º A ação civil para a decretação da perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local, após autorização do Colégio de Procuradores, na forma da Lei Orgânica.

E mesmo assim, depois de autorizado pelo respectivo Colégio de Procuradores, conforme artigo 12, inciso X, da Lei 8.625/93. Vejamos:

Art. 12. O Colégio de Procuradores de Justiça é composto por todos os Procuradores de Justiça, competindo-lhe:

X — deliberar por iniciativa de um quarto de seus integrantes ou do Procurador-Geral de Justiça, que este ajuíze ação cível de decretação de perda do cargo de membro vitalício do Ministério Público nos casos previstos nesta Lei;

Observem que tanto pela Lei 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público) quanto pela Lei Complementar 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), o ajuizamento da ação civil para perda de cargo apenas e exclusivamente pelo procurador-geral não é qualificada de “privilégio”, mas sim como “garantia”.

Ou seja, a Lei Orgânica do Ministério Público adota para os integrantes da instituição a regra do “acusador especial”, sem que ali nunca sequer tenha sido cogitado tratar-se de expediente que pudesse causar “enormes prejuízos à causa democrática” ou “um dos mais sérios e duros ataques à independência do Ministério Público”. Para os integrantes do Ministério Público a regra do “acusador especial” mantém-se tranqüilamente vigente.

Curiosamente, porém, o representante nacional dos Ministérios Públicos, não admite a mesma regra para as demais autoridades governamentais (Executivo, Legislativo e Judiciário), propondo que esses sejam submetidos a membros do Ministério Público de 1ª Instância, distribuídos pelas diversas comarcas do país, enquanto pela referida regra disseminada entre diversos artigos das referidas Leis Orgânicas do Ministério Público, qualquer de seus membros somente podem ser acusados de prática de improbidade administrativa pelo respectivo procurador-geral. E, mesmo assim, somente depois de aprovação por quorum qualificado do Conselho Superior (União) ou Colégio de Procuradores (Estados).

Ou seja, está sendo proposto que qualquer promotor de Justiça de qualquer comarca de Minas Gerais, em tese, pode investigar o vice-governador, os deputados estaduais e os magistrados (desembargadores e juízes) de Minas Gerais, enquanto que para ajuizar uma ação de idêntico teor contra um promotor de Justiça, de qualquer comarca, somente o procurador-geral de Justiça poderia fazê-lo!

Tal posicionamento, com o devido respeito, parece conter uma grave inconstitucionalidade, pois nega a quem não pertença ao Ministério Público o direito à isonomia, ao permitir que no mesmo ordenamento jurídico existam leis infraconstitucionais dispensando tratamento diferenciado apenas pelo fato de integrar ou não a carreira do Ministério Público.

Se realmente, o projeto de Lei Complementar 17/2007, da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, significará um “enorme prejuízo à causa democrática” e “um dos mais sérios e duros ataques à independência do Ministério Público”, então a proposta que deveria partir do representante maior do Ministério Público Nacional não deveria ser a evocação para que o governador de Minas Gerais vete integralmente o referido projeto de lei, mas que começasse a revogarem idênticas regras já existentes dentro das Leis Orgânicas do Ministério Público (Lei 8.625/93 e Lei Complementar 75/93).

Se isso não for feito, não nos parece que a promulgação da Lei Complementar 17/2007 possa constituir qualquer “prejuízo à causa democrática” ou “um dos mais sérios e duros ataques à independência do Ministério Público”, pois ai estão os exemplos das vigentes Leis Orgânicas do Ministério Público mostrando que em nada ameaçaram seja a democracia ou a independência do Ministério Público.

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    44 anos, Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

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