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Perfil: Ives Gandra da Silva Martins, advogado

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4 de agosto de 2007, 0h01

Alguns advogados e escritórios podem se tornar conhecidos pela capacidade técnica. Outros pela habilidade estratégica. Todos precisam de talento no relacionamento com a mídia para conseguir notoriedade. Nas últimas décadas, advogados ganharam fama com cargos no governo, por encabeçarem movimentos cívicos ou por sua eloqüência. Causas rumorosas também rendem pontos no Ibope, que o digam os grandes criminalistas brasileiros.

É um tributarista, no entanto, o profissional que desfruta de maior projeção e prestígio entre os operadores do Direito e da Justiça. É bem verdade que a especialidade é apenas um detalhe, mesmo sendo ele um dos mais notáveis em sua área. Trata-se na verdade, apesar de suas múltiplas atividades, de um advogado, no sentido pleno da palavra e do ofício.

Ives Gandra da Silva Martins, aos 72 anos de idade, atingiu um patamar especial na sua profissão. No Google, a mais poderosa ferramenta de pesquisas da Internet, ele alcançou a marca extraordinária de 65.700 citações. São menções honrosas. Compõem uma biografia invejável, de fato.

Seu itinerário, suas idéias e seu estilo de operar oferecem um paradigma. Carreiras e personalidades não se imitam, por óbvio. Mas pode ser proveitoso examinar um exemplo de sucesso — seja para quem está no início, seja para quem já está na estrada.

Ives Gandra insiste num ponto: o respeito às próprias convicções é um aliado essencial do advogado em suas vitórias, a longo prazo. A seleção das causas e dos casos a serem defendidos proporciona maior dedicação dos profissionais, o que muitas vezes leva juízes e ministros a reverem posições já definidas.

A confiança que esses profissionais transmitem também pode ser o ponto de partida para a criação de novas teses, sobre questões ainda pouco debatidas, quando são chamados para se manifestar em pareceres. Eles são pagos para estudar. Privilégio de poucos, é claro. Mas pedagógico para quem quer planejar seu futuro profissional.

Quem atinge esse estágio, tem do que se gabar. É assim que Ives Gandra, com sua equipe de 13 profissionais, conduz a sociedade de advogados Advocacia Gandra Martins e Rezek. Aos 20 anos, o escritório é cada vez mais seletivo: metade dos pedidos de defesa não é aceita. Não importa se vem de um governador ou de uma grande empresa. “Temos que acreditar na tese”, diz Ives, com firmeza.

Mesmo assim, cerca de 1.300 processos estão sob responsabilidade do escritório. Noventa por cento deles discutem matéria tributária. A banca presta consultoria em Direito Constitucional, Tributário, Administrativo, Econômico e Societário. No contencioso, atende especialmente em questões que envolvam matéria tributária.

Além da produção de pareceres. Quase 900 deles foram elaborados pelo escritório: 600 escritos por Ives. Ele conta que cada um tem lá suas 70 páginas. A prolixidade não é tida como virtude, mas apenas como decorrência do pequeno poder de concisão do autor, que não costuma cobrar honorários quando a encomenda é do poder público. Não se trata de jogo de interesse, mas de exercício de cidadania. Acredita ser sua forma de contribuir com o país.

Personagem ímpar da advocacia, Ives é um apaixonado pelo que faz e pelo que tem. Não só na área jurídica. Aos 72 anos, ele é professor, poeta, apreciador da música e das artes plásticas, escritor prolífico, autor de mais de cem livros, político e pai de família dedicado. Além de religioso praticante e torcedor roxo de futebol.

Como jurista, tem sua marca registrada na jurisprudência das cortes brasileiras. No Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, é um dos autores e pareceristas mais citados nas decisões dos ministros. Algumas das suas sugestões ao Executivo e ao Legislativo foram convertidas em leis ou atos administrativos.

Poesias de amor

Por trás do jurista vigoroso e combativo existe um homem terno. Suas poesias são reconhecidas e admiradas. Dona Ruth, a mulher com quem está casado desde 1953, é sua musa inspiradora. No último dia dos namorados, Ives prestou-lhe uma homenagem. Organizou uma cerimônia, com a presença dos filhos. Ruth recebeu um embrulho dourado. Os filhos, prateado. Ao mesmo tempo, abriram a surpresa: uma compilação de cem sonetos dedicados a ela.

“Ofereço esta lembrança a Ruth, a quem desde 24 de dezembro de 1’953 amo, com a mesma intensidade e deslumbramento dos primeiros tempos, agradecendo a Deus tal presente imerecido”, escreveu ele na apresentação de Tempo de Lendas, livro de poemas publicado em 2002.

Ives é muito apegado também aos filhos. Rogério é o parceiro no dia-a-dia. Pai e filho trabalham juntos nos processos e na elaboração de pareceres. Como o pai, Rogério é tributarista e autor de vários livros. Ives Filho também seguiu o Direito, mas especializou-se em Trabalho. Na especialidade, é uma referência. Desde 1999, por indicação de Fernando Henrique Cardoso, é ministro do Tribunal Superior do Trabalho.


Ação Declaratória de Constitucionalidade

Quando presidente, Fernando Collor pretendeu aprovar emenda constitucional para que todas as ações que contestassem leis e atos federais, sob alegação de perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e às finanças públicas, fossem avocadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Ives publicou artigo no jornal O Estado de S. Paulo para contestar a idéia. Para ele, a avocação dos processos pelo Supremo viola o princípio do juiz natural, o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Além do que, dizia, transformaria a Corte em mero órgão consultivo dos Poderes Legislativo e Executivo. Propôs, então, a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade, para evitar que o controle da constitucionalidade ficasse restrito às ações contra normas por omissão ou vício de iniciativa.

Segundo a proposta de Ives, a competência para julgar a nova ação seria originária do STF e não decorrencial. Os motivos para a sua proposição seriam jurídicos e não meramente políticos. Não haveria interferência direta nas decisões de primeira instância para suspender a sua eficácia, mas decisão definitiva sobre a questão. A proposta defendida por Collor previa efeito erga omnes e vinculante.

Collor sofreu impeachment. Itamar Franco tornou-se presidente da República e a Emenda Constitucional 3/93 foi aprovada. Com ela, é criada a Ação Declaratória de Constitucionalidade, em termos completamente contrários aos propostos por Ives Gandra. As decisões em ADC teriam efeito erga omnes, seriam vinculante aos demais órgãos do Judiciário e do Executivo. Para a sua proposição, não foram estabelecidos requisitos como a existência de dúvida razoável quanto à constitucionalidade da lei.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) procurou a Advocacia Gandra Martins para contestar a nova emenda constitucional. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade foi ajuizada no STF, com todos os argumentos defendidos por Ives. Para ele, a ADC ia contra a Constituição por conta da existência da presunção de validade da lei ou ato administrativo. Isto é, deveria haver um processo questionando a aplicação prática da lei para que se questionasse a sua constitucionalidade.

A ADI não foi conhecida no todo. Por maioria, o Plenário do Supremo concluiu que era requisito necessário a existência de relação entre o objetivo social da entidade de classe que propôs a ação e o controle objetivo de constitucionalidade e norma questionada. No entanto, um dos pontos da ação foi acolhido pelos ministros.

Eles concordaram com o argumento de que o Supremo se tornaria um órgão de consulta do Legislativo se avocasse todos os processos que questionavam leis ou atos federais. O tribunal limitou o conhecimento de ADC à prévia demonstração de divergência jurisprudencial na interpretação da norma.

Ives não se contentou. Em parceria com o então advogado-geral da União, Gilmar Mendes (hoje, vice-presidente do STF), coordenou o livro Ação Declaratória de Constitucionalidade para se opor aos termos em que ela foi adicionada à Constituição Federal. No julgamento da primeira ação de constitucionalidade, o Plenário do STF decidiu adotar as mesmas regras processuais de uma ADI para a Ação Declaratória de Constitucionalidade. Ives comemorou.

Gênio genético

A genialidade que Ives revela como jurista pode muito bem ser um traço genético. Seus três irmãos são também geniais em suas respectivas áreas de atuação. João Carlos Martins é um músico de notável de prestigio internacional. Como pianista tornou-se um dos maiores especialistas em Bach, no mundo. Sua carreira ao piano foi interrompida por uma enfermidade que afetou o movimento das mãos. Prossegue, no entanto, a encantar platéias de fino gosto musical como maestro. Sua saga, contada no documentário franco-alemão Paixão segundo Martins, já foi visto por mais de um milhão e meio de pessoas na Europa.

José Eduardo Martins, outro irmão de Ives, também é pianista. Em vez de Bach, especializou-se em Debussy. É professor Catedrático da Universidade de São Paulo e doutor Honoris Causa pela Universidade Constantin Brancusi da Romênia, com uma vasta obra acadêmica internacional. Além de músico, é artista plástico e gosta de contar histórias da família e da vida em seu blog ( http://blog.joseeduardomartins.com ). Seus quadros, de traços retilíneos e figuras parecidas com origamis, costumam decorar os três andares do escritório do irmão advogado.

João Paulo, o quarto dos irmãos Martins, foi o único a seguir a carreira do pai: produz aromas e fragrâncias. Divide a vida entre São Paulo, Rio de Janeiro e as viagens que faz por todo o país e também internacionais para aprimorar seus conhecimentos na área. Ives Gandra trabalhou na empresa do pai até os 18 anos. Foi trabalhar em Grace, na França, a cidade onde mais se produz perfume no país. Até que decidiu ser advogado.


Quebra do sigilo bancário

Em 2001, foi publicada a Lei Complementar 105, que autorizava a quebra do sigilo bancário por meio de ato administrativo. À época, a jurisprudência predominante era a de que o sigilo só poderia ser violado depois da análise do Judiciário, por sua neutralidade e imparcialidade. Em 1994, o Superior Tribunal de Justiça já tinha se pronunciado nesse sentido.

Convocado pelo Congresso Nacional para manifestar sua posição, Ives sustentou que a quebra do sigilo, sem prévia consulta ao Judiciário, viola os incisos X e XII do artigo 5º da Constituição, que asseguram a inviolabilidade da vida privada e do sigilo bancário. Enfatizou ainda que o ordenamento pátrio nunca protegeu os sonegadores, mas apenas os bons contribuintes contra a voracidade fiscal.

“Nada me parece mais claro do que este caminho, razão pela qual entendo que a lei complementar 105/2001 não foi endereçada ao sonegador, mas exclusivamente contra o Poder Judiciário para afastá-lo como julgador moderado, abrindo campo para uma certa dose de arbítrio, que o governo deseja ter para cobrir sua incapacidade (…) e em que as autoridades não primam pela boa gestão da coisa pública”, disse em palestra.

Sua ênfase não foi suficiente para impedir a edição do Decreto 4.489/2002, que regulamentou a lei complementar e autorizou à Receita Federal o acesso às informações bancárias dos contribuintes que mantinham contas ou aplicações, que usavam cartões de crédito e movimentassem valores acima de R$ 5 mil.

Para a Receita, a quebra do sigilo se justificava pela necessidade de combater a sonegação. Na verdade, entendia mesmo que não se tratava propriamente de quebra de sigilo. Segundo o então secretário adjunto da Receita e atual titular da repartição, Jorge Rachid, “o sigilo bancário não está sendo quebrado, ele só está sendo transferido para a Receita Federal”.

A Ordem dos Advogados do Brasil convocou, então, Ives e o professor Miguel Reale para a elaboração de parecer sobre a inconstitucionalidade do decreto. No parecer, Ives e Reale afirmam que o decreto viola de forma manifesta e totalitária direitos fundamentais do cidadão. Para eles, “o decreto pune os bons contribuintes deles retirando qualquer garantia, visto que sempre dependerão de humores da fiscalização, pródiga em ofertar à lei distorcida interpretação”.

Seu ponto de vista venceu. Com base em sua argumentação, o presidente Fernando Henrique Cardoso revogou o decreto no final de 2002.

Homem de fé

Ives é um homem de fé. Católico praticante não perde missa aos domingos, reza depois das refeições e jejua na Quaresma. Leva a sério suas convicções e a doutrina da Igreja, com a mesma coerência que defende suas teses jurídicas.

Assim é que, fiel ao preceito da indissolubilidade do vínculo matrimonial pregado pela Igreja, não se permite a ir ao casamento de quem se casa em segundas núpcias. A crença nos valores católicos também o levou a se filiar à Opus Dei, organização conservadora da Igreja. A instituição que prega a busca da perfeição através do trabalho e das atividades do cotidiano, já teve entre seus aliados o cardeal alemão Joseph Ratzinger, antes de se tornar o papa Bento XVI.

Outra questão de fé na vida de Ives é o futebol e sua devoção ao São Paulo Futebol Clube. Torcedor de freqüentar estádios e discutir com paixão sobre a escalação do time de hoje e de sempre, Ives é membro do Conselho Consultivo do clube do qual já foi presidente. Mas seu maior troféu é a carteirinha de sócio número 46, a prova documental de que é são-paulino desde criancinha.

Em julgamento

O estado de Roraima vai completar 20 anos em 2008. Mas ainda não tem seu território definido. Ao menos oficialmente. Desde a criação do estado, com a Constituição Federal de 1988, a União não editou uma lei para definir o seu espaço. Na tentativa de desatar o nó, o governador Ottomar Pinto procurou o escritório de Ives.

O processo está nas mãos do ex-ministro das Relações Exteriores, duas vezes ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-membro da Corte Internacional de Haia Francisco Rezek. Ao voltar à advocacia, no ano passado, o ex-ministro se tornou um dos seis sócios e acrescentou seu sobrenome na razão social do escritório Advocacia Gandra Martins e Rezek.

Quando explica a situação de Roraima, Rezek diz que a ação não quer rediscutir o território concedido pela União aos índios que habitam no estado. Conta que quando o governo definiu o território Ianomâmi, 52% das terras de Roraima, houve reações dos que achavam que a atribuição era excessiva. Cinco mil índios têm um território equivalente a Portugal para viver.

A União argumenta que a definição expansionista das terras indígenas se deu para valorizar e prestigiar os primitivos habitantes do Brasil e também por conta da necessidade dessa população, que tem hábitos nômades. Para Rezek, “por um lado há um sentimento indianista. Por outro, é uma forma de assegurar aquelas terras como propriedade da União”.

Roraima é um estado sem terras. O processo ajuizado no Supremo Tribunal Federal trata da transferência da União para o estado dos 48% restantes do território. A Constituição determinou que a União repassasse ao estado as terras, mas com exceções: território de ocupação indígena e bordos das fronteiras e das rodovias federais, por motivo de segurança.

Até hoje, a União não definiu a largura desses territórios de fronteira. “Por não definir a exceção, não deixa funcionar a regra”, diz Rezek na sua defesa. Segundo ele, curiosamente, quem tem a atribuição para definir é o Incra. Mesmo que essas terras nada tenham a ver com Reforma Agrária. A Ação Cível Originária, com pedido de tutela antecipada, foi apresentada no final de junho no STF. Em breve, o tribunal deve se manifestar.

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