Ministério policial

MP é titular da ação, não da investigação, afirma juiz

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1 de agosto de 2007, 20h10

A titularidade da ação penal não equivale à titularidade da investigação criminal. Com esse esclarecimento, o juiz Marcelo Semer, da 15ª Vara Criminal de São Paulo, rejeitou denúncia do Ministério Público paulista contra o presidente do Corinthians Alberto Dualib e outros dirigentes do clube. Segundo ele, os indícios de crimes apurados pelo próprio MP contra o grupo não têm validade.

“A denúncia deve ser rejeitada por falta de justa causa. Não porque existam elementos indiciários que afastem, de plano, a ocorrência de eventuais crimes. Mas por não existir procedimento investigatório válido que dê suporte às acusações formuladas pelos representantes do Ministério Público”, decidiu.

O Ministério Público acusava Alberto Dualib e outros quatro membros da direção do clube de formação de quadrilha e estelionato. De acordo com a denúncia, com notas fiscais frias, eles obtiveram vantagens ilícitas no valor de R$ 436,5 mil, em dinheiro e cheques, num período de cinco anos.

As investigações foram feitas por membros do Ministério Público. O juiz Marcelo Semer observou que o órgão deveria ter pedido a instauração de um inquérito policial “como lhes competia fazer” e não ter corrido atrás das provas.

“Não há dentre as atribuições constitucionalmente outorgadas ao Ministério Público a de presidir inquéritos policiais. Ao revés, a disciplina é outorgada justamente às autoridades policiais”, explica. Semer também ressaltou que não cabe fundamentar a legitimidade de investigação do MP na existência de “poderes implícitos”.

Para concluir, citou decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Ordinário 81.326-DF: “A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, III). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime”. O Plenário da Corte ainda vai decidir sobre a constitucionalidade de o Ministério Público investigar.

Leia a sentença

VISTOS.

Trata-se de denúncia oferecida contra ALBERTO DUALIB, JURACI BENEDITO, MARCOS ROBERTO FERNANDES, NESI CURI e DANIEL ESPÍNDOLA DA CUNHA, dando-os como incursos nas sanções dos arts. 288 e 171 (por oitenta vezes), c.c. arts. 29 e 69, todos do Código Penal, porque, em datas e horários incertos, no período compreendido entre 1º de fevereiro de 2000 e 1º de setembro de 2005, nas dependências do Parque São Jorge, nesta Capital, teriam se associado em quadrilha para cometer crimes de estelionato e, em concurso de ação, obtido vantagens ilícitas no valor de R$ 436.547,73, em dinheiro e cheques, em prejuízo do Sport Clube Corinthians Paulista, mantendo os demais diretores do clube em erro, mediante o meio fraudulento consistente em fazer supor, na contabilidade de notas fiscais sucessivas, que os pagamentos se davam em contraprestação de serviços de assessoria contábil, a cargo da empresa NBL Serviços Contábeis, Consultoria e Assessoria Empresarial S.C. Ltda.

Segundo a denúncia, fundamentada em investigação criminal realizada pelos próprios membros do Ministério Público, os estelionatos teriam sido realizados mediante pagamentos à empresa NBL, pertencente ao acusado JURACI, por serviços não prestados de contabilidade, com notas fiscais frias. As notas seriam lançadas por MARCOS ROBERTO, autorizando seu pagamento no clube, preparando os cheques que seriam subscritos por ALBERTO e NESI (presidente e vice-presidente da agremiação), participando, ainda, da trama, o conselheiro DANIEL, a quem cabia o gerenciamento das questões financeiras do clube. As vantagens ilícitas seriam divididas proporcionalmente entre os acusados, que mantiveram neste período associação estável e permanente para a prática dos delitos, com evolução patrimonial superior aos ganhos anuais, constatadas, em tese, após procedimento cautelar de quebra de sigilo fiscal.

É o relatório.


DECIDO.

A denúncia deve ser rejeitada por falta de justa causa. Não porque existam elementos indiciários que afastem, de plano, a ocorrência de eventuais crimes. Mas por não existir procedimento investigatório válido que dê suporte às acusações formuladas pelos representantes do Ministério Público.

Dentro do sistema processual penal brasileiro, o Ministério Público não tem legitimidade para proceder investigações criminais. E, no caso em tela, em que pese existir há quase um ano, a notícia da prática de crimes de ação penal pública, representantes do Ministério Público não requisitaram a instauração do competente inquérito policial, que viabilizasse a persecução penal, como lhes competia fazer.

Não há dentre as atribuições constitucionalmente outorgadas ao Ministério Público a de presidir inquéritos policiais. Ao revés, a disciplina é outorgada justamente às autoridades policiais.

A legitimidade para a realização de investigação criminal não se encontra entre as funções institucionais do Ministério Público, encartadas no art. 129, da Constituição Federal. Nenhum dos incisos deste rol, que estampa as competências constitucionais do Ministério Público, permite a condução da investigação criminal pelos membros do parquet, nem mesmo aqueles indicados pelos promotores subscritores na instauração da portaria de seu procedimento. O inciso I do referido artigo consagra a titularidade exclusiva da ação penal pública; o inciso VI, a previsão da possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência; o inciso VIII, o de requisitar diligências investigatórias e de requisitar a instauração de inquérito policial.

A titularidade da ação penal não equivale à titularidade da investigação criminal. A repartição de competências administrativas imposta pela Constituição ao invés de implicar mutuamente a titularidade da ação e da investigação, as distinguiu em dois órgãos distintos: a Polícia e o Ministério Público. Não vale aqui a regra interpretativa que se costuma empregar no abono à tese permissiva: quem pode o mais, pode o menos. No âmbito das competências administrativas, não há o mais ou o menos. Ajuizar ação penal não é mais do investigar, como julgar tampouco é mais do que denunciar. São competências distintas que o legislador constituinte optou por manter em órgãos separados, justamente para preservar o equilíbrio no processo penal. Observe-se, ademais, que nenhum outro legislador na história do direito brasileiro, antes ou depois da Constituição de 1988, concedeu legitimidade de investigação criminal aos membros do Ministério Público.

A possibilidade de expedir notificações em procedimentos administrativos também não confere ao Ministério Público a legitimidade para conduzir investigações criminais. Tanto mais que no inciso VIII, do mesmo artigo 129, o constituinte autoriza o membro do Ministério Público a requisitar a instauração de inquérito policial ou quaisquer diligências investigatórias. Havendo autorização para a requisição de instauração de inquérito policial, fica claro não ser da competência do MP a própria instauração ou a condução da investigação criminal, mas sim de quem recebe a requisição, no caso, a autoridade policial.

Ao contrário do inquérito policial a que não se faz referência em nenhum momento, a Carta explicita ser função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil (art. 129, inciso III). O mesmo se pode dizer do disposto na Lei Orgânica do Ministério Público: conquanto preveja expressamente a competência para instaurar inquérito civil (art. 26, I, da Lei 8625/93), não há previsão alguma para a atribuição do Ministério Público na instauração de inquérito policial ou qualquer outro procedimento investigatório de natureza criminal.

O princípio da legalidade tem diferentes dimensões quando se trata do cidadão ou do administrador. Para o cidadão, a legalidade funciona como salvaguarda: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, salvo por determinação de lei. Para o agente público, o princípio da legalidade é o limitador de sua própria competência: no âmbito administrativo, só é possível fazer o que a lei determina.


Por isso, tampouco se pode fundamentar a legitimidade da investigação na existência de poderes implícitos. Não há imposição de poder estatal ao cidadão que não esteja previsto no ordenamento constitucional. Neste sentido, o processo penal, que é garantia de direitos fundamentais, por tratar-se de instrumento de limitação da ação do Estado, também se perfaz numa adequação típica: não há procedimento capaz de vulnerar a liberdade do cidadão, para o qual não exista expressa previsão legal.

A falta de legitimidade do Ministério Público para conduzir investigação criminal, que se substitua a um inquérito policial, como o que vem trazido pela denúncia dos autos, não decorre apenas da ausência de previsão legal, mas da própria atribuição constitucional desta competência a outro órgão administrativo, com exclusividade.

O art. 144, da Constituição Federal, preceitua ser da competência exclusiva da Polícia Federal, o exercício da polícia judiciária da União (apuração de infrações penais da esfera de competência que define, contra bens ou serviços federais), ao mesmo tempo em que confere tal atribuição nos demais crimes, à Polícia Civil, ressalvadas apenas à apuração de infrações penais militares. Exceção a esta regra está prevista na própria Constituição Federal, como a legitimidade para as investigações por parte das Comissões Parlamentares de Inquérito.

Pode-se discutir a conveniência da legislação constitucional brasileira vir a auferir legitimidade ao Ministério Público para a realização de investigações criminais, como ocorre em outros países, que têm previsão legal neste sentido. Mas a alteração constitucional não pode ser substituída pela usurpação de competências.

Poucos órgãos foram aquinhoados com tamanha grandeza institucional como o Ministério Público após a Constituição de 1988, e não se nega que seus membros têm realizado importantes funções para o aprofundamento do Estado Democrático de Direito, notadamente no âmbito de ações civis e em ações de improbidade. Não cabe, no entanto, àquele que é justamente constituído como fiscal da lei, afastar-se dela para a realização de tarefas que não lhe foram cometidas, em franca contraposição ao sistema de garantias fundamentais do cidadão.

Não é verdadeira, ademais, a afirmação de que sem a investigação criminal o Ministério Público não teria instrumentos para exercer a sua atribuição.

O MP atua obrigatoriamente em todos os inquéritos criminais, tem legitimidade para requisitar a sua instauração junto à autoridade policial, e requisitar, no inquérito policial, quaisquer diligências que entenda necessárias para apuração dos fatos. Pode propor medidas cautelares judiciais penais e tem, entre suas competências, o controle externo da polícia. É competente, ainda, para ajuizar ações civis (caso em que excepcionalmente lhe compete também a promoção e condução do respectivo inquérito), instrumentos suficientes para uma atuação eficiente, em especial na preservação da probidade administrativa.

Não tem, no entanto, legitimidade para substituir-se à polícia judiciária na investigação criminal. O que, aliás, já foi decidido pelo próprio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Recurso Ordinário 81.326-DF: “A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, III). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime”. Atualmente, a Suprema Corte aprecia, agora em plenário, a constitucionalidade da investigação do Ministério Público, com votos divergentes.

Se mais não fossem pelos argumentos que aqui se expõem, pela ilegalidade da investigação empreendida, só a dúvida fundada na jurisprudência do Pretório Excelso já recomendaria, pela prudência, a não instauração de uma ação penal com tamanho vício, fadada ao insucesso, quando não há nenhum impedimento para a realização de uma investigação policial. A instauração da ação penal nas condições propostas significaria jogar a apuração de um relevante fato criminal à própria sorte.

Uma vez que todos os elementos dos autos decorrem da investigação do Ministério Público, na ausência de indícios válidos de apuração penal para dar suporte à acusação formulada, REJEITO A DENÚNCIA por falta de justa causa, nos termos do art. 43, inciso I, do Código de Processo Penal.

Ante a notícia da ocorrência de crime de ação penal pública, extraiam-se cópias do protocolado, remetendo à autoridade policial para a devida instauração de inquérito.

P.R.I.C.

São Paulo, 27 de julho de 2007

Marcelo Semer

Juiz de Direito

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