Direitos autorais

Download digital não pode ser considerado execução pública

Autor

  • Nehemias Gueiros Jr

    é advogado especializado em Direito Autoral Show Business e Internet professor da Fundação Getúlio Vargas-RJ e da Escola Superior de Advocacia — ESA-OAB/RJ consultor de Direito Autoral da ConJur membro da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos e da Federação Interamericana dos Advogados – Washington D.C. e do escritório Nelson Schver Advogados no Rio de Janeiro.

1 de agosto de 2007, 14h52

Muito se tem falado a respeito do impacto do advento da rede mundial de computadores sobre o Direito. O fim da territorialidade, a subversão da jurisdição e a pulverização dos direitos autorais, são alguns dos problemas mais imediatos que vêm sendo enfrentados pelos operadores do Direito nestes tempos digitais. Dentre os aspectos mais importantes da pluralidade de desdobramentos trazidos à luz com a chegada da Internet, está, sem dúvida, o download digital de arquivos musicais e audiovisuais, que tanta celeuma causou desde o célebre caso Napster, na virada do milênio, quando o jovem americano Shawn Fanning revolucionou o mundo com seu site capaz de realizar a troca de arquivos pelo sistema P2P (peer-to-peer).

Através desse sistema, usuários do mundo inteiro disponibilizavam músicas uns para os outros, inicialmente sem necessidade de um servidor central e sem precisar pagar royalties aos titulares dos direitos autorais, permitindo a qualquer pessoa com um computador baixar músicas sem pagar um centavo de direitos. O negócio chegou a atrair mais de 60 milhões de usuários ao redor do mundo e o caso foi parar na justiça americana, que acabou por fechar a empresa, condenando-a pelo não-pagamento de direitos autorais às grandes gravadoras do mercado, as chamadas majors.

Estava lançado o grande divisor de águas. Dezenas de sites similares surgiram, como E-Mule e Kazaa, oferecendo downloads de obras musicais grátis e até filmes, como o Scour. Recentemente o Napster retornou ao mercado, agora cobrando pelas músicas, mas não conseguiu mais atrair tantos usuários como antes. Todavia, a prática do download proliferou e a indústria, abalada pela queda de 30% nas vendas de CDs e DVDs nos últimos dois anos, adotou medidas severas para restringir a baixa gratuita e passou a estudar a possibilidade de novas receitas através da cobrança de direitos conexos de execução pública, que, na opinião de alguns, devem incidir sobre os downloads de arquivos, principalmente musicais.

Nos Estados Unidos, desde 1998 que a DIMA (Digital Media Association) entidade sem fins lucrativos criada para discutir e oferecer soluções para o mundo digital, contesta a idéia de que os downloads — que já são distribuições e reproduções licenciadas e sobre os quais se deve pagar royalties – sejam também execuções públicas. Isto equivaleria a uma espécie de bi-tributação. A baixa de arquivos embute uma transferência de posse tanto quanto o CD e o DVD e por isso já determina o pagamento de direitos autorais sobre a comercialização.

A ASCAP e a BMI, sociedades arrecadadoras americanas, insistem que os ringtones de telefones celulares constituem execuções públicas e a pressão que exercem sobre o mercado tem sido bem-sucedida: temerosas de ações judiciais, as empresas do setor aceitaram pagar fees regulares mesmo não concordando com a teoria jurídica. Esses valores chegam a 4% ou mais incidentes sobre o valor da licença. E isso, mesmo depois de o Escritório de Direitos Autorais americano (U.S. Copyright Office) ter regulamentado a matéria, atestando que ringtones são apenas distribuições de conteúdo. A questão está sub-judice perante uma corte federal, que deverá decidir brevemente esta controvérsia de modo definitivo.

Essa polêmica dos direitos conexos de execução pública, que são os direitos do espectro autoral cobrados pela comunicação, em locais de freqüência coletiva, de fonogramas musicais, lítero-musicais e peças audiovisuais, também já chegou ao Brasil. Entre nós, a legislação autoral criou o Ecad — Escritório Central de Arrecadação e Distribuição1, para arrecadar e distribuir esses direitos em todo o território nacional, e o órgão interpreta que o ato de “baixar” da Web um arquivo musical digital, seja através de computadores ou telefones celulares, configura uma execução pública de fonograma e já vem adotando agressiva tática judicial para receber os supostos direitos conexos decorrentes.

Aqui cabe uma reflexão mais profunda, de forma que se possa compreender melhor a extensão da legislação autoral existente em relação à nova tecnologia. O download é, na realidade, uma mera distribuição de obras intelectuais, pois não configura uma performance pública do conteúdo, limitando-se às reproduções feitas nas máquinas ou aparelhos telefônicos dos usuários. Esta distribuição é feita eletronicamente, através da difusão de sons ou de sons e imagens e pode ser subsumida pelos incisos II, IV V e VI do artigo 5º da lei autoral brasileira em vigor (lei 9.610/98 ou LDA). Entretanto, o dispositivo que melhor define a natureza dos downloads, é, sem dúvida, o inciso IV – distribuição: “a colocação à disposição do público, do original ou cópia de obras literárias, artísticas ou científicas, interpretações ou execuções fixadas e fonogramas, mediante a venda, locação ou qualquer outra forma de transferência de propriedade ou posse”.

Execução pública significa transmitir ou comunicar uma obra ao público, através de qualquer meio ou processo, quer os integrantes desse público recebam essa obra no mesmo lugar ou em locais separados, ao mesmo tempo ou em tempos diferentes. Alegar que outras pessoas possam estar próximas do computador ou à volta do aparelho telefônico para enquadrar o download como execução pública é, no mínimo, pueril.

Se assim fosse, o simples ato de audição de CDs e DVDs implicaria numa execução pública, pois sempre há mais de uma pessoa próxima do aparelho reprodutor. Se a mera distribuição de conteúdo for considerada uma execução pública, qual seria a diferença entre a baixa do arquivo digital e o envio de um CD embalado, do revendedor para o consumidor? Isto seria o mesmo que considerar que uma execução pública ocorre mesmo em ambientes restritos, como o recesso doméstico.

A indústria musical, de telefonia celular e de videogames compartilha um raciocínio muito simples com relação a essa discussão: para poder ser enquadrada como execução pública, a baixa de arquivos da Internet precisa ser efetivamente percebida por ouvidos e olhos humanos em locais de freqüência coletiva. Se houver a audição ou visualização de qualquer conteúdo musical ou audiovisual em um logradouro público, então não resta dúvida de que se trata de uma execução pública, mas baixamos os arquivos na intimidade dos nossos lares, em nossos telefones móveis ou nas dependências de escritórios comerciais.

A RIAA (Recording Industry Association of America), entidade que reúne as gravadoras americanas, apóia os serviços digitais de provisão de conteúdo, que não consideram os downloads uma execução, mas sim uma entrega (delivery) do arquivo de conteúdo, portanto, uma distribuição.

É uma polêmica muito interessante, especialmente diante da queda crescente nas vendas de suportes musicais e audiovisuais físicos e o novo e vibrante mercado de downloading e streaming. Não cremos que o Ecad queira “largar o osso”, afinal, já somos 37 milhões de brasileiros conectados à Internet, este número não pára de crescer e a questão ainda não chegou aos tribunais para interpretação jurisprudencial.

Nota de rodapé

1. Art. 115 da lei autoral anterior, 5.988 de 14.12.1973

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  • é advogado especializado em Direito Autoral, Show Business e Internet, professor da Fundação Getúlio Vargas-RJ e da Escola Superior de Advocacia — ESA-OAB/RJ , consultor de Direito Autoral da ConJur, membro da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos e da Federação Interamericana dos Advogados – Washington D.C. e do escritório Nelson Schver Advogados no Rio de Janeiro.

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