Proteção constitucional

Qualquer que seja o tipo de moradia, ela é inviolável

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30 de abril de 2007, 20h30

O conceito de casa para o fim da proteção jurídico-constitucional a que se refere o artigo 5º, XI, da Constituição, compreende qualquer compartimento habitado e qualquer aposento coletivo como, por exemplo, os quartos de hotel, pensão, motel e hospedaria ou, ainda, qualquer outro local privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

O entendimento é do ministro Celso de Mello ao acolher recurso ajuizado pela defesa de Sérgio Augusto Coimbra Vial, acusado por clonar cartões de créditos. Os advogados do acusado recorreram da decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que considerou lícita as provas trazidas aos autos para provar a suposta prática de estelionato cometida por ele.

As provas foram recolhidas do quarto do hotel que ele ocupava, sem sua autorização e sem mandado judicial. O ministro entendeu que os meios utilizados para consegui-las desrespeitaram o princípio que protege a inviolabilidade domiciliar. “Sabemos todos – e é sempre oportuno e necessário que esta Suprema Corte repita tal lição – que a cláusula constitucional da inviolabilidade domiciliar revela-se apta a amparar, também, qualquer “aposento ocupado de habitação coletiva”, sustenta o ministro.

Celso de Mello afirma ainda que a “proteção constitucional ao domicílio tem por fundamento norma revestida do mais elevado grau de positividade jurídica, que proclama, a propósito do tema em análise, que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”

Para o ministro é importante ressaltar que o conceito de “casa”, para efeitos da proteção constitucional, tem um sentido amplo “pois compreende, na abrangência de sua designação tutelar, (a) qualquer compartimento habitado, (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade”.

Para os desembargadores do Tribunal fluminense, o quarto de hotel não pode ser entendido como domicílio. Ressaltaram que o endereço informado pelo réu como domicílio não era o mesmo do hotel e que o quarto alugado era utilizado apenas como local para a prática das suas atividades ilícitas, não gozando, portanto, da proteção constitucional. Por esse motivo, a defesa de Sérgio Augusto recorreu ao Supremo para pedir a nulidade das provas e extinção de sua eficácia jurídica.

No Supremo, o ministro Celso de Mello utilizou a teoria da árvore dos frutos envenenados ao considerar o alicerce do processo, no caso as provas, contaminadas pelo ato ilícito dos policias. Segundo o ministro, a busca domiciliar sem mandado judicial, escuta telefônica sem autorização da autoridade judiciária competente, obtenção de confissões mediante toda sorte de violência, também são provas obtidas ilicitamente.

Assim, diante da fragilidade probatória, o ministro considerou que as provas deveriam ser abstraídas do mundo jurídico porque, segundo ele, “ilícitas, nada mais resta nos autos para tentar provar que o agente praticou os fatos genericamente mal descritos na denuncia”.

O ministro Celso de Mello determinou que o processo seja encaminhado novamente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para restabelecer a sentença penal absolutória dada nos autos do processo-crime que tramitou na 19ª Vara Criminal da comarca do estado.

Leia o voto

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 90.376-2 RIO DE JANEIRO

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

RECORRENTE(S): SÉRGIO AUGUSTO COIMBRA VIAL

ADVOGADO(A/S): FLÁVIO JORGE MARTINS

RECORRIDO(A/S): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

E M E N T A: PROVA PENALBANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) – ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR DERIVAÇÃO) – INADMISSIBILDADEBUSCA E APREENSÃO DE MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO JUDICIAL, EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADOIMPOSSIBLIDADEQUALIFICAÇÃO JURÍDICA DESSE ESPAÇO PRIVADO (QUARTO DE HOTEL, DESDE QUE OCUPADO) COMOCASA”, PARA EFEITO DA TUTELA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR – GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE PRÉ-PROCESSUAL – CONCEITO DE CASA PARA EFEITO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 5º, XI E CP, ART. 150, § 4º, II) – AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS APOSENTOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO, POR EXEMPLO, OS QUARTOS DE HOTEL, PENSÃO, MOTEL E HOSPEDARIA, DESDE QUE OCUPADOS): NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI). IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR – PROVA ILÍCITAINIDONEIDADE JURÍDICARECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.


BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL) – SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE OCUPADO, AO CONCEITO DE “CASA” – CONSEQÜENTE NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL.

Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de casa” revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer aposento de habitação coletiva, desde que ocupado (CP, art. 150, § 4º, II), compreende, observada essa específica limitação espacial, os quartos de hotel. Doutrina. Precedentes.

Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade de quem de direito (“invito domino”), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a prova resultante dessa diligência de busca e apreensão reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina. Precedentes (STF).

ILICITUDE DA PROVA INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) – INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DA TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS.

A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do “due process of law”, que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo.

A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”. Doutrina. Precedentes.

A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA (“FRUITS OF THE POISONOUS TREE”): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO.

Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subseqüente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária.


A exclusão da prova originariamente ilícita – ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivaçãorepresenta um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do “due process of lawe a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal. Doutrina. Precedentes.

A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos “frutos da árvore envenenada”) repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de anterior transgressão praticada, originariamente, pelos agentes da persecução penal, que desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar.

Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios a que os órgãos da persecução penal somente tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida como resultado da transgressão, por agentes estatais, de direitos e garantias constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos.

Se, no entanto, o órgão da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova – que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal -, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária.

A QUESTÃO DA FONTE AUTÔNOMA DE PROVA (“AN INDEPENDENT SOURCE”) E A SUA DESVINCULAÇÃO CAUSAL DA PROVA ILICITAMENTE OBTIDA – DOUTRINA – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – JURISPRUDÊNCIA COMPARADA (A EXPERIÊNCIA DA SUPREMA CORTE AMERICANA): CASOS SILVERTHORNE LUMBER CO. V. UNITED STATES (1920); SEGURA V. UNITED STATES (1984); NIX V. WILLIAMS (1984); MURRAY V. UNITED STATES (1988)”, v.g..

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto do Relator, para restabelecer a sentença penal absolutória proferida nos autos do Processo-crime nº 1998.001.082771-6 (19ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro/RJ). Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Senhor Ministro Gilmar Mendes.

Brasília, 03 de abril de 2007.

CELSO DE MELLO – PRESIDENTE E RELATOR

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): O presente recurso ordinário insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, encontra-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 166):


HABEAS CORPUS’. PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PARTICULAR (‘CLONAGEMDE CARTÕES DE CRÉDITO) E ESTELIONATO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. PEÇA ACUSATÓRIA QUE EXPÕE O FATO CRIMINOSO, POSSIBILITANDO AO RÉU O EXERCÍCIO DA AMPLA DEFESA. CONDENAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. PROVA ILÍCITA. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. AUSÊNCIA DE SUBSTRATO FÁTICO APTO A COMPROVAR A ALEGAÇÃO. ABSORÇÃO DO CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PARTICULAR PELO DELITO DE ESTELIONATO. IMPOSSIBILIDADE. POTENCIALIDADE LESIVA DA CONDUTA QUE PERDURA.

1. A denúncia, ao contrário do que se alega, expôs a dinâmica das atividades ilícitas do réu e, satisfatoriamente, amoldou os fatos narrados aos tipos penais correspondentes, viabilizando, também, sem qualquer dificuldade, o direito de defesa do paciente.

2. A insuficiência fática dos autos não auxilia a exata compreensão da alegação de violação de domicílio, pois não há qualquer documento capaz de esclarecer os termos do mandado de prisão cumprido em desfavor do paciente, como também a forma como foi realizada a diligência de busca e apreensão pelos policiais no quarto do hotel – que servia de base para a prática das atividades ilícitas -, mormente porque o réu se fazia presente no ato.

3. O maquinário utilizado pelo paciente para reproduzir cartões de crédito de terceiros, continuava apto a cometer novos crimes, ao reter informações de crédito e identificação particulares, persistindo assim a sua eficácia para atos futuros, não se aplicando, assim, o disposto no enunciado da Súmula n.º 17, do Superior Tribunal de Justiça.

4. Ordem denegada.

(HC 43.952/RJ, Rel. Min. LAURITA VAZ – grifei)

A parte ora recorrente, para justificar sua pretensão jurídica, apóia seus fundamentos (fls. 175/206), em síntese, na (1) inépcia da denúncia; e (2) na ilicitude da prova penal coligida, sem mandado judicial, no interior de quarto de hotel ocupado pelo paciente.

Postula-se, ainda, se vencidas tais questões, a absorção do delito de falso pelo de estelionato.

O Ministério Público Federal, em seu douto parecer (fls. 225/231), opinou pelo não-provimento do presente recurso, em manifestação de que se destacam as seguintes passagens (fls. 225/231):

RECURSO ORDINÁRIO EM ‘HABEAS CORPUS’. ARGÜIÇÃO DE NULIDADE DO PROCESSO DEVIDO À INÉPCIA DA DENÚNCIA E À ILICITUDE DA PROVA. CONCURSO MATERIAL ENTRE O CRIME DE FALSO E O DE ESTELIONATO. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DA ABSORÇÃO DE UM DELITO PELO OUTRO.

Não prosperam as preliminares de nulidade do processo pela suposta inépcia da denúncia e pela ilicitude da prova, uma vez atendidos os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal e afastada a natureza domiciliar de quarto de hotel utilizado apenas para a guarda de instrumentos utilizados em práticas ilícitas.

A absorção do crime de falso pelo de estelionato, além de consubstanciar tese não acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, exige reexame fático-probatório para seu reconhecimento, incabível na via eleita.

Parecer pelo conhecimento, mas pelo não-provimento do apelo.

……………………………………………

Aduziu o recorrentecondenado à pena de 10 anos de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática dos crimes previstos nos artigos 171 c/c 71 e 298 c/c 71 do Código Penal, em concurso material – que a reforma da sentença absolutória deu-se com base em denúncia inepta e prova ilícita, vez que obtida mediante invasão de domicílio.


No mérito, defendeu fosse a condenação fundada apenas no delito de estelionato, dada a absorção do delito de falso, nos moldes da Súmula n. 17 do Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido, postulou o provimento do apelo para que fosse declarada a nulidade do processo ou reduzida a pena em face da absolvição pelo crime de falso (fls. 175/206).

Contra-razões foram ofertadas às fls. 211/214.

O recurso foi admitido à fl. 216.

É o relatório.

O recurso deve ser conhecido, mas não provido.

…………………………………………..

De resto, não vislumbramos na leitura de fls. 30/32 a inépcia da exordial acusatória, que de forma bastante didática, narrou omodus operandi’ do recorrente quando do cometimento dos crimes pelos quais acabou sendo condenado em segunda instância.

Os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal foram devidamente preenchidos, sem que se possa extrair da denúncia qualquer impossibilidade ou dificuldade de exercício da ampla defesa.

No tocante à ilicitude da prova obtida por policiais no quarto de hotel ocupado pelo recorrente quando do cumprimento de mandado de prisão por condenação anterior, bem interpretou o tribunal ‘a quo’ o art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal, em conjunto com as disposições civis que regem a matéria, ao concluir:

O Impetrante alega, ainda, que a prova condenatória é ilícita.

Aduziu, para tanto, que o maquinário utilizado pelo paciente e os documentos falsos foram apreendidos pela polícia judiciária sem mandado judicial de busca e apreensão, violando-se, assim, o princípio da inviolabilidade de domicílio.

Ocorre, todavia, que o quarto de hotel ocupado pelo paciente, na cidade do Rio de Janeiro, não pode ser entendido como domicílio, à luz do princípio insculpido no art. 5º, inc. XI, da Constituição da República.

Primeiro, porque, como bem consignou o acórdão ora atacado, o paciente, ao ser inquirido extrajudicialmente, indicou, como seu endereço residencial: a Rua São Brás, n.º 14, Apto. 102, Méier, Rio de Janeiro; e profissional: a Rua Goiás, n.º 1116, Quintino, Rio de Janeiro. Para o Supremo Tribunal Federal, o conceito de domicílio, no direito constitucional, abrange não somente a residência (habitação com ânimo definitivo de estabelecimento), mas também o logradouro comercial ou o local onde a pessoa exerça sua atividade profissional (v.g. HC n.º 82.788/RJ, rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 02/06/2006).

Na hipótese, nenhum destes conceitos se amolda ao caso.

O quarto do hotel, portanto, era usado pelo réu apenas como local para a prática das suas atividades ilícitas, não gozando, portanto, da aludida proteção constitucional.

Segundo – ainda que assim não se entenda – porque a deficiência da impetração, consubstanciada na falta de prova pré-constituída, não esclarece com elementos concretos se a busca empreendida no dormitório do hotel foi realizada ou não com a aquiescência do paciente.

Nesse sentido, o próprio acórdão ora atacado, proferido em sede de apelação criminal, após a revisão fático-probatória dos autos, não foi capaz de verificar se a diligência foi realizada sem a anuência do réu, ‘litteris’:


‘Por derradeiro, restou demonstrado que os policiais foram ao quarto juntamente com o Apelado, podendo-se supor que a revista do cômodo tenha sido feita com a sua concordância, até porque, até ser ele levado preso, não há notícias de que saberiam eles que o quarto do hotel era a ‘base’ do Apelado para a prática dos seus inúmeros crimes.’ (fl. 113)’

No mérito, entendemos que a condenação pelos crimes continuados de falsificação de documento particular e de estelionato, em concurso material, deu-se em consonância com a jurisprudência desta Suprema Corte, que não acolhe a tese de absorção defendida pelo recorrente. Essa tese, mesmo que transmudada para a hipótese de concurso formal, dependeria de reexame fático-probatório para sua convalidação, a que não se presta a via eleita.

……………………………………………

Ante o exposto, opinamos pelo conhecimento, mas pelo não-provimento do recurso ordinário.” (grifei)

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Trata-se de recurso ordinário interposto contra decisão denegatória de “habeas corpusproferida pelo E. Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 102, II, “a”).

Cabe destacar, inicialmente, que considero sem consistência a alegação de inépcia da denúncia. É que a peça acusatória (fls. 30/32), formulada pelo Ministério Público, atendeu, integralmente, às exigências de ordem formal impostas pelo art. 41 do Código de Processo Penal, viabilizando, de maneira ampla, o pleno exercício, pelo acusado, ora recorrente, do direito de defesa.

É certo que o ilustre magistrado de primeiro grau julgou improcedente a pretensão punitiva deduzida contra o ora recorrente, por considerar a “(…) denúncia genérica (…) e(…) inepta (…)” (fls. 84).

Esse entendimento, contudo, não poderia subsistir, pois, como corretamente assinalado pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ao dar provimento ao recurso de apelação interposto pelo Ministério Público estadual, a peça acusatória em questão mostrava-se clara e objetiva quanto à descrição dos fatos e respectivos elementos circunstanciais, o que proporcionou, ao acusado, ora recorrente, o exercício, em plenitude, do direito de defesa e dos meios a ele correspondentes, tal como o revelou, em seu douto voto, o eminente Desembargador Antonio José Ferreira Carvalho, Relator, em sede recursal, da mencionada causa penal (fls. 110/118).

Essa mesma percepção foi revelada, no caso ora em exame, pelo E. Superior Tribunal de Justiça, quando da denegação do “writ” constitucional (fls. 166/167).

A simples leitura de trechos da denúncia ora questionada evidencia tratar-se de peça processual incensurável, eis que nela se contém, de modo preciso e objetivo, como anteriormente ressaltado, a correta descrição dos fatos delituosos (fls. 31/32).

Como se sabe a denúncia, quando contém todos os elementos essenciais à adequada configuração típica do delito e atende, integralmente, às exigências de ordem formal impostas pelo art. 41 do CPP, não apresenta o vício nulificador da inépcia, pois permite, ao réu, como sucedeu na espécie, a exata compreensão dos fatos expostos na peça acusatória, sem qualquer comprometimento ou limitação ao pleno exercício do direito de defesa, ajustando-se, desse modo, ao magistério jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte (HC 83.266/MT, v.g.):

1. Não é inepta a denúncia que, apesar de sucinta, descreve fatos enquadráveis no artigo 14 da Lei n. 6.368/76, atendendo a forma estabelecida no artigo 41 do Código Penal, além de estar instruída com documentos, tudo a possibilitar a ampla defesa.


(HC 86.755/RJ, Rel. Min. EROS GRAU – grifei)

Passo, agora, a examinar o fundamento concernente à alegada ilicitude da prova penal.

A parte ora recorrente, para sustentar suas razões quanto a esse ponto, destacou que “(…) o alicerce desta ação penal é, sem dúvida, o material arrecadado no interior do apartamento 201 do Hotel Ipanema Inn, onde supostamente estaria hospedado o acusado (…)” (fls. 181 – grifei) sem que, para efeito de tal diligência, os policiais que a realizaram estivessem autorizados por mandado judicial de busca e apreensão domiciliar.

O ilustre magistrado sentenciante, ao apreciar, em primeira instância, esse específico aspecto da questão, entendeu que a prova “foi obtida de forma afrontosa aos direitos e garantias individuais (…)”, sendo, portanto, “(…) absolutamente ilícita (…)” (fls. 85/86 – grifei).

Cumpre destacar, por isso mesmo, da sentença penal que absolveu o acusado, ora recorrente, a seguinte passagem, que reproduzoin extenso” (fls. 85/87):

Em seguida, já agora no campo probatório, devemos questionar como todos os documentos e apetrechos de fls. 5/6 surgiram.

Não existe a menor dúvida de que o acusado foi preso no dia 15 de agosto de 1997, vez que em seu desfavor existia um mandado de prisão para cumprimento de uma pena privativa de liberdade confirmada em segunda instância.

Quando da prisão os policiais conseguiram arrecadar no apartamento do hotel em que o imputado estava hospedado os objetos de fls. 5 e 6.

Exatamente para tentar descobrir como tais bens foram arrecadados é que este julgador converteu o julgamento em diligência para sanar tal dúvida.

As oitivas de fls. 474, 476, 514 e 516, esclareceram o que o julgador já estava desconfiando. A prova foi obtida de forma afrontosa aos direitos e garantias individuais.

Os policiais foram até o Hotel Ipanema In para prender o imputado, sendo que ele foi preso fora do quarto, mais precisamente quando chegava ao hotel, fls. 474, 476 e 514. Um dos autores da prisão, Sr. Mário Augusto Azevedo de Oliveira, fls. 514, disse que o réu foi preso quando pegava as chaves do apartamento.

Em seguida ele foi levado para a delegacia e somente depois a polícia retornou ao hotel.

A testemunha Mauro Ricardo, fls. 516, revelou que o retorno foi determinado verbalmente pela autoridade policial.

Ao retornar, e ingressando no imóvel, foi encontrado o material apreendido.

A prova obtida pela autoridade policial para instaurar o inquérito policial, passando a apurar os fatos, é absolutamente ilícita, eis que obtida através de incursão em aposento ainda ocupado (quarto de hotel), sendo necessária ordem judicial de busca a apreensão, esta inexistente.

Todas as demais oitivas estão impregnadas pela ilicitude por derivação, eis que as provas foram obtidas após, e por derivação, do encontro do material apreendido, sendo aplicável a conhecida teoria dos ‘frutos da árvore envenenada’, cunhada pela Suprema Corte americana, segundo a qual o vício da planta se transmite a todos os seus frutos.

Enfim, podemos resumir o seguinte: Um ingresso em local habitado, não autorizado judicialmente, resultou na apreensão de ‘vários documentos (fls. 5/6), sendo que a partir de tal ponto declarações foram tomadas, mas sempre colhidas em razão do encontro de todos os documentos e petrechos apreendidos no quarto de hotel.


Abstraídas tais provas do mundo jurídico, porque ilícitas, nada mais resta nos autos para tentar provar que o agente praticou os fatos genericamente mal descritos na denuncia.

Posto Isto, diante da fragilidade probatória existente nos autos, JULGO IMPROCEDENTE A PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL E ABSOLVO SÉRGIO AUGUSTO COIMBRA VIAL, das imputações descritas na exordial, com fulcro no artigo 386, inciso VI, do C.P.P.” (grifei)

O E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no entanto, ao reformar a sentença absolutória proferida em favor do ora recorrente, entendeu legítimo o comportamento dos agentes policiais, vindo a qualificar, por isso mesmo, como lícita, a prova resultante da diligência realizada sem ordem judicial, eis que – segundo aquela colenda Corte judiciária – “o apartamento ou quarto do ‘Hotel Ipanema Inn’ não era a casa do Apelado, como conceituado no art. 5º, XI, da Constituição Federal” (fls. 113 – grifei).

O E. Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, ao indeferir a ordem de “habeas corpusimpetrada em favor do acusado, ora recorrente, entendeu, no ponto, que “A insuficiência fática dos autos não auxilia a exata compreensão da alegação de violação de domicílio, pois não há qualquer documento capaz de esclarecer os termos do mandado de prisão cumprido em desfavor do paciente, como também a forma como foi realizada a diligência de busca e apreensão pelos policiais no quarto do hotel – que servia de base para a prática das atividades ilícitas -, mormente porque o réu se fazia presente no ato” (fls. 166 – grifei).

Entendo, não obstante esses doutos pronunciamentos emanados dos Egrégios Tribunais mencionados, que há elementos suficientes, nestes autos, que permitem a exata compreensão e que viabilizam, por tal motivo, a conseqüente análise da alegada transgressão, por agentes policiais, da garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, considerados notadamente, para tanto, os fundamentos expostos pelo magistrado sentenciante de primeira instância (fls. 85/87).

Isso significa, portanto, que a questão a ser enfrentada, neste processo, consiste em saber se agentes policiais, podem, ou não, sem autorização judicial, ingressar, de modo legítimo, em aposento ocupado de hotel, contra a vontade de seu ocupante, com o objetivo de proceder à busca e apreensão, em tal aposento, de materiais supostamente utilizados para práticas criminosas.

Cabe indagar, ainda, se se reveste, ou não, de legitimidade jurídica, para efeito de válida instauração de “persecutio criminis”, por suposta prática de delitos de estelionato (CP, art. 171) e de falsificação de documento particular (CP, art. 298), o material probatório resultante de diligência policial executada, sem mandado judicial, no interior de quarto de hotel, que, embora não fosse a residência permanente do ora recorrente, ainda se achava por este ocupado.

Impende analisar, portanto, presente o contexto em exame, se se revelava juridicamente possível, ou não, a utilização, pelo Poder Público, contra o ora recorrente, de acervo documental apreendido por agentes policiais, sem mandado judicial, em diligência realizada no interior quarto de hotel, contra a vontade presumida do hóspede.


Posta a questão nesses termos, reconheço que não são absolutos, mesmo porque não o são, os poderes de que se acham investidos os órgãos e agentes da polícia judiciária, cabendo assinalar, por relevante, Senhores Ministros, presente o contexto veiculado nesta impetração, que o Estado, em tema de investigação policial ou de persecução penal, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional.

A circunstância de a polícia judiciária achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem investigar eventuais práticas delituosas não a exonera do dever de observar, para efeito do correto desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de esses órgãos incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral.

O exame dos fundamentos em que se apóia esta impetração, de um lado, e a análise dos elementos produzidos neste processo, de outro, convencem-me, presente o contexto em causa, não obstante parecer em sentido contrário da douta Procuradoria-Geral da República (fls. 225/231), que os agentes policiais – que não realizaram a diligência de busca e apreensão ora questionada no curso da execução de mandado de prisão expedido contra o paciente, ora recorrente, tal como enfatizado pelo próprio magistrado sentenciante de primeira instância (fls. 85/87) – transgrediram a garantia individual pertinente à inviolabilidade domiciliar, tal como instituída e assegurada pelo inciso XI do art. 5º da Carta Política, que representa expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, oponível, por isso mesmo, aos próprios órgãos da Administração Pública.

A parte recorrente sustentou, com absoluta correção, que a apreensão de documentos e cartões magnéticos, por agentes policiais, sem prévia autorização judicial, no interior de um quarto de hotel ainda ocupado, configurou desrespeito à cláusula constitucional da inviolabilidade domiciliar (CF, art. 5º, XI) – que também ampara qualquer “aposento ocupado de habitação coletiva” (CP, art. 150, § 4º, II) -, daí resultando a conseqüente ilicitude material da prova penal colhida na questionada diligência policial (fls. 175/205).

Sabemos todos – e é sempre oportuno e necessário que esta Suprema Corte repita tal lição – que a cláusula constitucional da inviolabilidade domiciliar (CF, art. 5º, XI) revela-se apta a amparar, também, qualqueraposento ocupado de habitação coletiva” (CP, art. 150, § 4º, II).

Entendo, por isso mesmo, assistir razão à parte recorrente no ponto em que sustenta a ilicitude da referida diligência policial, pois a atividade probatória do Poder Público, no caso, decorreu de procedimento de agentes estatais que infringiram, porque desvestidos de qualquer autorização judicial (CF, art. 5º, XI), a proteção constitucional dispensada ao domicílio, cuja noção conceitual – que é ampla – estende-se, dentre outros espaços privados, “a aposento ocupado de habitação coletiva” (como um simples quarto de hotel, p. ex.).

Tal orientaçãoigualmente perfilhada pelo magistério da doutrina (GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código Penal Comentado”, p. 634, item n. 73, 6ª ed., 2006, RT; RUBENS GERALDI BERTOLO, “Inviolabilidade do Domicílio”, p. 60/61, item n. 3.1, Editora Método; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código Penal Anotado”, p. 529/530, 15ª ed., 2004, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal”, p. 614/615, item n. 1.2, 2005, Saraiva; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Direito Penal – Parte Especial”, vol. 2/309, item n. 2.3, 3ª ed., 2004, Saraiva; CELSO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JUNIOR e FABIO MACHADO DE ALMEIDA DELMANTO, “Código Penal Comentado”, p. 300, 5ª ed., 2000, Renovar; LUIZ REGIS PRADO, “Comentários ao Código Penal”, p. 510, item n. 8, 2002, RT) – é também acolhida pela jurisprudência dos Tribunais em geral (RT 635/341 – RT 689/366 – RT 728/588 – Julgados do TACRIM/SP, vol. 20/322 – RT 416/393 – RT 557/353 – RT 559/341 – RT 668/297 – Julgados do TACRIM/SP, vol. 93/273), inclusive pelo magistério jurisprudencial desta Suprema Corte:


(…). A GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR COMO LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO (…) – CONCEITO DE CASA PARA EFEITO DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS ESPAÇOS PRIVADOS NÃO ABERTOS AO PÚBLICO, ONDE ALGUÉM EXERCE ATIVIDADE PROFISSIONAL: NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI).

Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo decasa’ revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4º, III), compreende, observada essa específica limitação espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, ‘embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita’ (NELSON HUNGRIA). Doutrina. Precedentes.

Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público, ainda que vinculado à administração tributária do Estado, poderá, contra a vontade de quem de direito (‘invito domino’), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em espaço privado não aberto ao público, onde alguém exerce sua atividade profissional, sob pena de a prova resultante da diligência de busca e apreensão assim executada reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude material. Doutrina. Precedentes específicos, em tema de fiscalização tributária, a propósito de escritórios de contabilidade (STF).

O atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos, que traduz expressão concretizadora do ‘privilège du preálable’, não prevalece sobre a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, ainda que se cuide de atividade exercida pelo Poder Público em sede de fiscalização tributária. Doutrina. Precedentes. (…).

(HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma)

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, Senhores Ministros, qualquer que seja a natureza da atividade desenvolvida por agentes do Poder Público, em tema de repressão penal, que a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar atua como fator de restrição às diligências empreendidas pelos órgãos do Estado, que não poderão desrespeitá-la, sob pena de o ato transgressor infirmar a própria validade jurídica da prova resultante de tal ilícito comportamento.

É imperioso, portanto, que as autoridades e agentes do Estado não desconheçam que a proteção constitucional ao domicílio – que emerge, com inquestionável nitidez, da regra inscrita no art. 5º, XI, da Carta Política – tem por fundamento norma revestida do mais elevado grau de positividade jurídica, que proclama, a propósito do tema em análise, que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (grifei).

Vê-se, pois, que a Carta Federal, em cláusula que tornou juridicamente mais intenso o coeficiente de tutela dessa particular esfera de liberdade individual, assegurou, em benefício de todos, a prerrogativa da inviolabilidade domiciliar. Sendo assim, ninguém, especialmente a autoridade pública, pode penetrar em casa alheia, exceto (a) nas hipóteses taxativamente previstas no texto constitucional ou, então, (b) com o consentimento de seu morador, que se qualifica, para efeito de ingresso de terceiros no recinto privado, como o único titular do direito de inclusão e de exclusão.


Impõe-se enfatizar, por necessário, como previamente já destacado, que o conceito decasa”, para o fim da proteção jurídico-constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Lei Fundamental, reveste-se de caráter amplo (HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO), pois compreende, na abrangência de sua designação tutelar, (a) qualquer compartimento habitado, (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

Esse amplo sentido conceitual da noção jurídica decasa” revela-se plenamente consentâneo com a exigência constitucional de proteção à esfera de liberdade individual e de privacidade pessoal (RT 214/409 – RT 277/576 – RT 467/385 – RT 635/341).

Sendo assim, Senhores Ministros, é preciso advertir – e advertir sempre – que nem a Polícia Judiciária, nem o Ministério Público, nem a administração tributária, nem quaisquer outros agentes públicos podem ingressar em domicílio alheio, sem ordem judicial, ou sem o consentimento de seu titular, ou, ainda, fora das hipóteses autorizadas pelo texto constitucional, com o objetivo de proceder a qualquer tipo de diligência, como a execução de busca e apreensão domiciliar (sem mandado judicial), tal como ocorrido, de modo inteiramente ilegítimo, na espécie em exame.

A essencialidade da ordem judicial, para efeito de realização de qualquer diligência de caráter probatório, em área juridicamente compreendida no conceito de domicílio, nada mais representa senão a plena concretização da garantia constitucional pertinente à inviolabilidade domiciliar.

Daí a advertênciaque cumpre ter presente – feita por CELSO RIBEIRO BASTOS (“Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/68, 1989, Saraiva), no sentido de que, tratando-se do ingresso de agentes estatais (como os agentes policiais), em domicílio alheio, sem o consentimento do morador, “é forçoso reconhecer que deixou de existir a possibilidade de invasão por decisão de autoridade administrativa, de natureza policial ou não. Perdeu, portanto, a Administração a possibilidade da auto- -executoriedade administrativa” (grifei).

Note-se, portanto, seja com apoio no magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, seja com fundamento nas lições da doutrina, que a transgressão, pelo Poder Público, das restrições e das garantias constitucionalmente estabelecidas em favor dos cidadãos – inclusive daqueles a quem se atribuiu suposta prática delituosa – culmina por gerar a ilicitude da prova eventualmente obtida no curso das diligências estatais, o que provoca, como direta conseqüência desse gesto de infidelidade às limitações impostas pela Lei Fundamental, a própria inadmissibilidade processual dos elementos probatórios assim coligidos.

Impõe-se relembrar, bem por isso, Senhores Ministros, até mesmo como fator de expressiva conquista (e preservação) dos direitos instituídos em favor daqueles que sofrem a ação persecutória do Estado, a inquestionável hostilidade do ordenamento constitucional brasileiro às provas ilegítimas e às provas ilícitas. A Constituição da República tornou inadmissíveis, no processo, as provas inquinadas de ilegitimidade ou de ilicitude.


A norma inscrita no art. 5º, LVI, da vigente Lei Fundamental consagrou, entre nós, o postulado de que a prova obtida por meios ilícitos deve ser repudiada – e repudiada sempre (MAURO CAPPELLETTI, “Efficacia di prove illegittimamente ammesse e comportamento della parte”, “in” Rivista di Diritto Civile, p. 112, 1961; VICENZO VIGORITI, “Prove illecite e Costituzione”, “in” Rivista di Diritto Processuale, p. 64 e 70, 1968) – pelos juízes e Tribunais, “por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados, uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade…” (ADA PELLEGRINI GRINOVER, “Novas Tendências do Direito Processual” p. 62, 1990, Forense Universitária).

A cláusula constitucional do “due process of law” – que se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Público – tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas, na medida em que o réu (contra quem jamais se presume provada qualquer alusão penal) tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com apoio em elementos instrutórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites impostos, pelo ordenamento jurídico, ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado.

A absoluta nulidade da prova ilícita qualifica-se como causa de radical invalidação de sua eficácia jurídica, destituindo-a de qualquer aptidão para revelar, legitimamente, os fatos e eventos cuja realidade material ela pretendia evidenciar. Trata-se, presente tal contexto, de conseqüência que deriva, necessariamente, da garantia constitucional que tutela a situação jurídica dos acusados em juízo (notadamente em juízo penal) e que exclui, de modo peremptório, a possibilidade de uso, em sede processual, da prova – de qualquer provacuja ilicitude venha a ser reconhecida pelo Poder Judiciário.

A prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso, prova ilícita é prova imprestável. Não se reveste, por essa explícita razão, de qualquer aptidão jurídico-material. A prova ilícita, qualificando-se como providência instrutória repelida pelo ordenamento constitucional, apresenta-se destituída de qualquer grau, por mínimo que seja, de eficácia jurídica como esta Suprema Corte tem reiteradamente proclamado (RTJ 163/682 – RTJ 163/709 – HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Tenho tido a oportunidade de enfatizar, por isso mesmo, neste Tribunal, que aexclusionary rule” – considerada essencial, pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, na definição dos limites da atividade probatória desenvolvida pelo Estado – destina-se a proteger os réus, em sede processual penal, contra a ilegítima produção ou a ilegal colheita de prova incriminadora (Weeks v. United States, 232 U.S. 383, 1914 – Garrity v. New Jersey, 385 U.S. 493, 1967 – Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643, 1961 – Wong Sun v. United States, 371 U.S. 471, 1963, v.g.), impondo, em atenção ao princípio do “due process of law”, o banimento processual de quaisquer evidências que tenham sido ilicitamente coligidas pelo Poder Público.

No contexto do sistema constitucional brasileiro, no qual prevalece a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o sentido e o alcance do art. 5º, LVI, da Carta Política, tem repudiado quaisquer elementos de informação, desautorizando-lhes o valor probante, sempre que a obtenção dos dados probatórios resultar de transgressão, pelo Poder Público, do ordenamento positivo (RTJ 163/682 – RTJ 163/709), ainda que se cuide de hipótese configuradora de ilicitude por derivação (RTJ 155/508).


Foi por tal razão que esta Corte Suprema, quando do julgamento plenário da Ação Penal 307/DF, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, desqualificou, por ilícita, prova cuja obtenção decorrera do desrespeito, por parte de autoridades públicas, da garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar (RTJ 162/4, item n. 1.1).

Cabe referir, neste ponto, o magistério de ADA PELLEGRINI GRINOVER (“Liberdades Públicas e Processo Penal”, p. 151, itens ns. 7 e 8, 2ª ed., 1982, RT), para quem – tratando-se de prova ilícita, especialmente daquela cuja produção derive de ofensa a cláusulas de ordem constitucional – não se revelará aceitável, para efeito de sua admissibilidade, a invocação do critério de razoabilidade do direito norte-americano, que corresponde ao princípio da proporcionalidade do direito germânico, mostrando-se indiferente a indagação sobre quem praticou o ato ilícito de que se originou o dado probatório questionado:

A inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta, sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma constitucional, em prejuízo das partes ou de terceiros.

Nesses casos, é irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente público ou por particulares, porque, em ambos os casos, a prova terá sido obtida com infringência aos princípios constitucionais que garantem os direitos da personalidade. Será também irrelevante indagar-se a respeito do momento em que a ilicitude se caracterizou (antes e fora do processo ou no curso do mesmo); será irrelevante indagar-se se o ato ilícito foi cumprido contra a parte ou contra terceiro, desde que tenha importado em violação a direitos fundamentais; e será, por fim, irrelevante indagar-se se o processo no qual se utilizaria prova ilícita deste jaez é de natureza penal ou civil.

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Nesta colocação, não parece aceitável (embora sugestivo) o critério derazoabilidade’ do direito norte-americano, correspondente ao princípio deproporcionalidade’ do direito alemão, por tratar-se de critérios subjetivos, que podem induzir a interpretações perigosas, fugindo dos parâmetros de proteção da inviolabilidade da pessoa humana.

A mitigação do rigor da admissibilidade das provas ilícitas deve ser feita através da análise da própria norma material violada: (…) sempre que a violação se der com relação aos direitos fundamentais e a suas garantias, não haverá como invocar-se o princípio da proporcionalidade.” (grifei)

Essa mesma orientação é registrada por VÂNIA SICILIANO AIETA (“A Garantia da Intimidade como Direito Fundamental”, p. 191, item n. 4.4.6.4, 1999, Lumen Juris), cujo lúcido magistério também reconhece que,Atualmente, a teoria majoritariamente aceita é a da inadmissibilidade processual das provas ilícitas (colhidas com lesões a princípios constitucionais), sendo irrelevante a averiguação, se o ilícito foi cometido por agente público, ou por agente particular, porque, em ambos os casos, lesa princípios constitucionais” (grifei).

Por isso mesmo, Senhores Ministros, assume inegável relevo, na repulsa à “crescente predisposição para flexibilização dos comandos constitucionais aplicáveis na matéria”, a advertência de LUIS ROBERTO BARROSO, que, em texto escrito com a colaboração de ANA PAULA DE BARCELLOS (“A Viagem Redonda: Habeas Data, Direitos Constitucionais e as Provas Ilícitas” “inRDA 213/149-163), rejeita, com absoluta correção, qualquer tipo de prova obtida por meio ilícito, demonstrando, ainda, o gravíssimo risco de se admitir essa espécie de evidência com apoio no princípio da proporcionalidade:


O entendimento flexibilizador dos dispositivos constitucionais citados, além de violar a dicção claríssima da Carta Constitucional, é de todo inconveniente em se considerando a realidade político-institucional do País.

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Embora a idéia da proporcionalidade possa parecer atraente, deve-se ter em linha de conta os antecedentes de País, onde as exceções viram regra desde sua criação (vejam-se, por exemplo, as medidas provisórias). À vista da trajetória inconsistente do respeito aos direitos individuais e da ausência de um sentimento constitucional consolidado, não é nem conveniente nem oportuno, sequer delege ferenda’, enveredar por flexibilizações arriscadas.” (grifei)

Também corretamente sustentando a tese de que o Estado não pode, especialmente em sede processual penal, valer-se de provas ilícitas contra o acusado, mesmo que sob invocação do princípio da proporcionalidade, impõe-se relembrar o entendimento de EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO (“O Direito à Defesa na Constituição”, p. 54/56, item n. 5.9, 1994, Saraiva) e de GUILHERME SILVA BARBOSA FREGAPANI (“Prova Ilícita no Direito Pátrio e no Direito Comparado”, “in” Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios nº 6/231-235).

Cabe ter presente, também, por necessário, que o princípio da proporcionalidade, em sendo alegado pelo Poder Público, não pode converter-se em instrumento de frustração da norma constitucional que repudia a utilização, no processo, de provas obtidas por meios ilícitos.

Esse postulado, portanto, não deve ser invocado nem aplicado indiscriminadamente pelos órgãos do Estado, ainda mais quando se acharem expostos, a uma nítida situação de risco, como sucedeu na espécie, direitos fundamentais assegurados pela Constituição.

Sob tal perspectiva, portanto, Senhores Ministros, tenho como incensurável a advertência feita por ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO (“Proibição das Provas Ilícitas na Constituição de 1988, p. 249/266, “in” “Os 10 Anos da Constituição Federal”, coordenação de ALEXANDRE DE MORAES, 1999, Atlas):

Após dez anos de vigência do texto constitucional, persistem as resistências doutrinárias e dos tribunais à proibição categórica e absoluta do ingresso, no processo, das provas obtidas com violação do direito material.

Isso decorre, a nosso ver, em primeiro lugar, de uma equivocada compreensão do princípio do livre convencimento do juiz, que não pode significar liberdade absoluta na condução do procedimento probatório nem julgamento desvinculado de regras legais. Tal princípio tem seu âmbito de operatividade restrito ao momento da valoração das provas, que deve incidir sobre material constituído por elementos admissíveis e regularmente incorporados ao processo.

De outro lado, a preocupação em fornecer respostas prontas e eficazes às formas mais graves de criminalidade tem igualmente levado à admissão de provas maculadas pela ilicitude, sob a justificativa da proporcionalidade ou razoabilidade. Conquanto não se possa descartar a necessidade de ponderação de interesses nos casos concretos, tal critério não pode ser erigido à condição de regra capaz de tornar letra morta a disposição constitucional. Ademais, certamente não será com o incentivo às práticas ilegais que se poderá alcançar resultado positivo na repressão da criminalidade.” (grifei)

Torna-se importante rememorar, neste ponto, consideradas as razões que venho de expor, a passagem da sentença absolutória, na qual o ilustre magistrado de primeiro grau, ao registrar a ilicitude originária da prova penal coligida contra o ora recorrente, salientou que os demais elementos de informação produzidos ao longo do processo penal de conhecimento somente o foram com apoio e a partir dos dados obtidos mediante a ilícita diligência policial de busca e apreensão, cuja realização deu-se com evidente transgressão à garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar (fls. 86/87):


A prova obtida pela autoridade policial para instaurar o inquérito policial, passando a apurar os fatos, é absolutamente ilícita, eis que obtida através de incursão em aposento ainda ocupado (quarto de hotel), sendo necessária ordem judicial de busca e apreensão, esta inexistente.

Todas as demais oitivas estão impregnadas pela ilicitude por derivação, eis que as provas foram obtidas após, e por derivação, o encontro do material apreendido, sendo aplicável a conhecida teoria dos ‘frutos da árvore envenenada’, cunhada pela Suprema Corte americana, segundo a qual o vício da planta se transmite a todos os seus frutos.

Enfim, podemos resumir o seguinte: Um ingresso em local habitado, não autorizado judicialmente, resultou na apreensão de ‘vários documentos (fls. 5/6), sendo que, a partir de tal ponto, declarações foram tomadas, mas sempre colhidas em razão do encontro de todos os documentos e petrechos apreendidos no quarto de hotel.

Abstraídas tais provas do mundo jurídico, porque ilícitas, nada mais resta nos autos para tentar provar que o agente praticou os fatos genericamente mal descritos na denúncia.” (grifei)

Isso significa, considerada a liquidez dos fatos expostos pelo ilustre magistrado de primeira instância, que a prova penal ulteriormente colhida apresentava-se impregnada, ela também, de ilicitude, embora se cuidasse de ilicitude por derivação, eis que o Poder Público somente conseguiu produzi-la em decorrência causal dos elementos resultantes da diligência policial tisnada pelo vício da ilicitude originária.

Na realidade, o defeito inquinador da validade jurídica da prova penal em questão, surgido com desrespeito à garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, projetou-se, com evidente repercussão causal, sobre os demais elementos probatórios, que, não obstante produzidos, em momento superveniente, de modo (aparentemente) legítimo, achavam-se contaminados pelo vício da ilicitude de origem, não havendo que se cogitar, desse modo, na espécie, da existência de fontes autônomas de revelação da prova e que, sem qualquer relação causal com a prova originariamente ilícita, pudessem dar suporte independente e legitimador à formulação de um juízo condenatório.

É indisputável, portanto, examinada a questão sob tal perspectiva, que a prova ilícita, no caso, por constituir prova juridicamente inidônea, contaminou todos os demais elementos de informação que dela resultaram, e que foram – tal como o reconheceu o ilustre magistrado de primeiro grau – coligidos em momento ulterior, de maneira aparentemente válida, pelos órgãos da persecução penal.

A ilicitude originária da prova, nesse particular contexto, transmitiu-se, por repercussão, a outros dados probatórios que nela se apoiaram, ou que dela derivaram, ou que nela encontraram o seu fundamento causal.

ADA PELLEGRINI GRINOVER (“A Eficácia dos Atos Processuais à luz da Constituição Federal”, vol. 37/46-47, 1992, “in” RPGESP), ao versar o tema das limitações que, fundadas em regra de exclusão, incidem sobre o direito à prova, analisa a questão da ilicitudemesmo da ilicitude por derivação – dos elementos instrutórios produzidos em sede processual, em lição da qual destaco:

A Constituição brasileira toma posição firme, aparentemente absoluta, no sentido da proibição de admissibilidade das provas ilícitas. Mas, nesse ponto, é necessário levantar alguns aspectos: quase todos os ordenamentos afastam a admissibilidade processual das provas ilícitas. Mas ainda existem dois pontos de grande divergência: o primeiro deles é o de se saber se inadmissível no processo é somente a prova, obtida por meios ilícitos, ou se é também inadmissível a prova, licitamente colhida, mas a cujo conhecimento se chegou por intermédio da prova ilícita.


Imagine-se uma confissão extorquida sob tortura, na qual o acusado ou indiciado indica o nome do comparsa ou da testemunha que, ouvidos sem nenhuma coação, venham a corroborar aquele depoimento.

Imaginem uma interceptação telefônica clandestina, portanto ilícita, pela qual se venham a conhecer circunstâncias que, licitamente colhidas, levem à apuração dos fatos. Essas provas sãoilícitas por derivação’, porque, em si mesmas lícitas, são oriundas e obtidas por intermédio da ilícita. A jurisprudência norte-americana utilizou a imagem dos frutos da árvore envenenada, que comunica o seu veneno a todos os frutos. (…).” (grifei)

Incensurável a análise que, deste tema, fez o eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, em voto proferido, como Relator, no julgamento do HC 69.912/RS (RTJ 155/508, 515):

Estou convencido de que essa doutrina da invalidade probatória dofruit of the poisonous treeé a única capaz de dar eficácia à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita.

De fato, vedar que se possa trazer ao processo a própria ‘degravação’ das conversas telefônicas, mas admitir que as informações nela colhidas possam ser aproveitadas pela autoridade, que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas, que, sem tais informações, não colheria, evidentemente, é estimular e, não, reprimir a atividade ilícita da escuta e da gravação clandestina de conversas privadas.

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Na espécie, é inegável que só as informações extraídas da escuta telefônica indevidamente autorizada é que viabilizaram o flagrante e a apreensão da droga, elementos também decisivos, de sua vez, na construção lógica da imputação formulada na denúncia, assim como na fundamentação nas decisões condenatórias.

Dada essa patente relação genética entre os resultados da interceptação telefônica e as provas subseqüentemente colhidas, não é possível apegar-se a essas últimasfrutos da operação ilícita inicialsem, de fato, emprestar relevância probatória à escuta vedada.” (grifei)

Nem cabe considerar, ainda, na espécie, como precedentemente acentuado pelo ilustre magistrado de primeira instância (fls. 86/87), a questão da autonomia das fontes probatórias, pois os novos elementos de informação produzidos nos autos resultaram, diretamente, da prova penal afetada pelo vício originário da ilicitude, expondo-se, em conseqüência, à censura da jurisprudência constitucional desta Suprema Corte.

Irrecusável, por isso mesmo, que a absoluta ineficácia probatória dos elementos de convicção – cuja apuração decorreu, em sua própria origem, de comportamento ilícito dos agentes estatais – torna imprestável a prova penal em questão, inibindo-lhe, assim, a possibilidade de atuar como suporte legitimador de qualquer decreto judicial de condenação penal, que, também, por sua vez, não poderá apoiar-se em outros elementos de convicção dela decorrentes.

Esse entendimento, Senhores Ministros, que constitui a expressão mesma da teoria dosfrutos da árvore envenenada” (“fruits of the poisonous tree”) – firmada e desenvolvida na prática jurisprudencial da Suprema Corte dos Estados Unidos da América (Nardone v. United States, 308 U.S. 338 (1939); Wong Sun v. United States, 371 U.S. 471 (1963); Weeks v. United States, 232 U.S. 383 (1914); Payton v. New York, 445 U.S. 573 (1980)”), atenuada, porém, quando o Poder Público, não obstante a ilicitude originária de determinada prova, consegue demonstrar que obteve, legitimamente, os novos elementos de informação a partir de uma “independent sourceou fonte autônoma de prova (“Silverthorne Lumber Co. v. United States, 251 U.S. 385 (1920); Segura v. United States, 468 U.S. 796 (1984); Nix v. Williams, 467 U.S. 431 (1984); Murray v. United States, 487 U.S. 533 (1988)”, v.g.) – encontra pleno suporte na jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal (RTJ 155/508, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 164/950, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RTJ 168/543-544, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RTJ 176/735-736, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 74.116/SP, Rel. p/ o acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA – HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):


(…) 3. As provas obtidas por meios ilícitos contaminam as que sãoexclusivamentedelas decorrentes; tornam-se inadmissíveis no processo e não podem ensejar a investigação criminal e, com mais razão, a denúncia, a instrução e o julgamento (CF, art. 5º, LVI), ainda que tenha restado sobejamente comprovado, por meio delas, que o Juiz foi vítima das contumélias do paciente.

4. Inexistência, nos autos do processo-crime, de prova autônoma e não decorrente de prova ilícita, que permita o prosseguimento do processo.

5.Habeas-corpus’ conhecido e provido para trancar a ação penal instaurada contra o paciente, por maioria de 6 votos contra 5.

(HC 72.588/PB, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – grifei)

Tal orientação, Senhores Ministros, é também acolhida pelo magistério da doutrina (ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional”, p. 386, item n. 5.102, 6ª ed., 2006, Atlas; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Processo Penal”, p. 304, item n. 17.2.4.5, 13ª ed., 2006, Saraiva; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 401, item n. 155.4, 7ª ed., 2000, Atlas; RACHEL PINHEIRO DE ANDRADE MENDONÇA, “Provas Ilícitas: Limites à Licitude Probatória”, p. 78, item n. 3.1, 2ª ed., 2004, Lumen Juris; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código de Processo Penal Comentado”, p. 340/341, item n. 5, 4ª ed., 2005, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Ordem Judicial de Busca Apreensão e Ilicitude da Prova dela Extrapolante”, “inRT 848/457-470, 468-469; LENIO LUIZ STRECK, “As Interceptações Telefônicas e os Direitos Fundamentais”, p. 92, item n. 13.2, 1997, Livraria do Advogado), valendo referir, ante o relevo de suas observações, a lição de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (“Código de Processo Penal Comentado”, vol. 1/474-476, 9ª ed., 2005, Saraiva):

Não só as provas obtidas ilicitamente são proibidas (busca domiciliar sem mandado judicial, escuta telefônica sem autorização da autoridade judiciária competente, obtenção de confissões mediante toda sorte de violência etc.), como também as denominadas ‘provas ilícitas por derivação’.

Na verdade, ao lado das provas ilícitas, há a doutrina dofruit of the poisonous tree’, ou simplesmente ‘fruit doctrine’ – ‘fruto da árvore envenenada’ -, adotada nos Estados Unidos desde 1914 para os Tribunais Federais, e, nos Estados, por imperativo constitucional, desde 1961, e que teve sua maior repercussão no caso ‘Silverthorne Lumber Co. v. United States, 251 US 385 (1920)’, quando a Corte decidiu que o Estado não podia intimar uma pessoa a entregar documentos cuja existência fora descoberta pela polícia por meio de uma prisão ilegal. Mediante tortura (conduta ilícita), obtém-se informação da localização da ‘res furtiva’, que é apreendida regularmente. Mediante escuta telefônica (prova ilícita), obtém-se informação do lugar em que se encontra o entorpecente, que, a seguir, é apreendido com todas as formalidades legaisAssim, a obtenção ilícita daquela informação se projeta sobre a diligência de busca e apreensão, aparentemente legal, mareando-a, nela transfundindo o estigma da ilicitude penal. Nisso consiste a doutrina do ‘fruto da árvore envenenada’. Os Tribunais norte-americanos têm se valido dessa doutrina ‘com a finalidade de reafirmar os fundamentos éticos e dissuasivos da ilegalidade estatal em que se baseia aquela regra’. Aliás, a Suprema Corte tem sufragado a tese da inadmissibilidade das provas ilícitas por derivação, ou da doutrina denominada ‘fruits of the poisonous tree’. No HC 69.912-RS, o Ministro Sepúlveda Pertence, como Relator, observou: ‘Vedar que se possa trazer ao processo a própria ‘degravação’ das conversas telefônicas, mas admitir que as informações nela colhidas possam ser aproveitadas pela autoridade, que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas, que sem tais informações não colheria, evidentemente, é estimular, e não reprimir a atividade ilícita da escuta e da gravação clandestina de conversas privadas… E finalizando: ou se leva às últimas conseqüências a garantia constitucional ou ela será facilmente contornada pelos frutos da informação ilicitamente obtida’ (‘Informativo STF’ n. 36, de 21-6-1996). No HC 73.351/SP, o STF, concedendo o ‘writ’, observou que ‘a prova ilícita contaminou as provas obtidas a partir dela. A apreensão dos 80 quilos de cocaína só foi possível em virtude de interceptação telefônica…’ (‘Informativo STF’ n. 30, de 15-5-1996).


E a sanção processual para as provas inadmissíveis é a sua imprestabilidade ou, na linguagem do novo ‘Codice de Procedura Penale’, art. 191, suanon utilizzabilità’ (art. 191, 1: ‘Le prove acquisite in violazione dei divieti stabiliti dalla legge non possono essere utilizzate. 2. L’inutilizzabilità è rilevabile anche di ufficio in ogni stato e grado del procedimento’).

Ninguém pode ser acusado ou julgado com base em provas ilícitas. Ressalte-se que a exigência do ‘due process of law’ destina-se a garantir a pessoa contra a ação arbitrária do Estado e a colocá-la sob a imediata proteção das leis.

Aliás o Pretório Excelso já decidiu que, ‘…os meios de prova ilícitos não podem servir de sustentação ao inquérito ou à ação penal…’ (RTJ, 122/47)

E se, por acaso, em decorrência de prova obtida ilicitamente, por exemplo, um depoimento conseguido mediante tortura, a Polícia se dirige ao verdadeiro culpado, e este, sem a menor resistência, confessa o crime? E se durante busca domiciliar realizada sem mandado judicial, uma empregada da casa, sem qualquer atitude agressiva da Policia, delata o criminoso ou indica o lugar onde se encontra o entorpecente procurado? E, uma vez procurado o criminoso, este, sem qualquer coação, reconhece a sua culpa ou, no outro exemplo, indo a Polícia ao local onde o objeto procurado deveria estar, é encontrado e apreendido? ‘Quid inde’? Será que a ilegalidade inicial (tortura da testemunha, busca domiciliar ao arrepio da lei), se projeta sobre outras provas obtidas a partir daquela ilegalidade ou em decorrência dela? Dir-se-á que a confissão do criminoso e o depoimento da testemunha foram prestados com inteira liberdade, e, por isso mesmo, constituíram fontes independentes. Mas, se houver outras provas consideradas autônomas, isto é, colhidas sem necessidade dos elementos informativos, revelados pela prova ilícita, não haverá invalidade do processo. Disse-o o STF no HC 76.231-RJ (‘Informativo’, STF n. 115).” (grifei)

Não se desconhece, como previamente salientado, que, tratando-se de elementos probatórios absolutamente desvinculados da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo qualquer relação de dependência, revelando-se, ao contrário, impregnados de plena autonomia, não se aplica, quanto a eles, a doutrina da ilicitude por derivação, por se cuidar, na espécie, de evidência fundada em uma fonte autônoma de conhecimento (“an independent source”), como o demonstram julgados de outras Cortes judiciárias (HC 40.089-AgR/MG, Rel. Min. FELIX FISCHER – HC 43.944/SP, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA – HC 60.584/RN, Rel. Min. GILSON DIPP, v.g.), inclusive decisões emanadas desta Suprema Corte (HC 74.116/SP, Rel. p/ o acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA – HC 75.497/SP, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – RHC 85.254/RJ, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RHC 85.286/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA):

HABEAS-CORPUS’ SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO NA FASE INQUISITORIAL. INOBSERVÂNCIA DE FORMALIDADES. TEORIA DA ÁRVORE DOS FRUTOS ENVENENADOS. CONTAMINAÇÃO DAS PROVAS SUBSEQÜENTES. INOCORRÊNCIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. PROVA AUTÔNOMA.

1. Eventuais vícios do inquérito policial não contaminam a ação penal. O reconhecimento fotográfico, procedido na fase inquisitorial, em desconformidade com o artigo 226, I, do Código de Processo Penal, não tem a virtude de contaminar o acervo probatório coligido na fase judicial, sob o crivo do contraditório. Inaplicabilidade da teoria da árvore dos frutos envenenados (‘fruits of the poisonous tree’). Sentença condenatória embasada em provas autônomas produzidas em juízo.


2. Pretensão de reexame da matéria fático-probatória. Inviabilidade do ‘writ’.

Ordem denegada.

(RTJ 191/598, Rel. Min. EROS GRAU – grifei)

Ocorre, no entanto, como anteriormente referido (e enfatizado), que os novos elementos de prova produzidos na causa penal não possuem autonomia em face da prova originariamente comprometida pelo vício da inconstitucionalidade. É que tais novos meios de prova guardam direta, estreita e imediata vinculação causal com os elementos de informação que somente foram obtidos em virtude do desrespeito ao princípio que protege a inviolabilidade domiciliar (CF, art. 5º, XI).

Inteiramente aplicável, desse modo, ao caso ora em exame, a doutrina da ilicitude por derivação, que repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, por efeito de repercussão causal, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os de modo irremissível.

Em suma: a Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”.

Cabe referir, finalmente, ante sua extrema pertinência ao tema versado na presente causa, a decisão que esta colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal proferiu nos autos do HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO:

(…). ILICITUDE DA PROVAINADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) – INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DE TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS.

A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do ‘due process of law’, que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. A Exclusionary Ruleconsagrada pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América como limitação ao poder do Estado de produzir prova em sede processual penal.

A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do ‘male captum, bene retentum’. Doutrina. Precedentes. (…).

Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, dou provimento ao presente recurso ordinário em “habeas corpus”, em ordem a restabelecer a sentença penal absolutória proferida nos autos do Processo–crime nº 1998.001.082771-6 (fls. 55), que tramitou perante a 19ª Vara Criminal da comarca do Rio de Janeiro/RJ.

O teor do presente julgamento deverá ser comunicado, ainda, à colenda Segunda Câmara Criminal do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Apelação Criminal nº 2004.050.05509 – fls. 110/114) e ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 43.952/RJ, Rel. Min. LAURITA VAZ – fls. 165/172).

É o meu voto.

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