Despacho dos iguais

É a Constituição que garante foro privilegiado aos juízes

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27 de abril de 2007, 12h57

Ouço, daqui de Roma, o alarido, em torno da decisão do ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, no “caso dos bingos”. Logo agora, quando pensava escrever algo sobre a exuberância das flores na escadaria da Trinità dei Monti, onde se sentam pessoas de todos os tipos, especialmente jovens, curtindo o tempo ainda estival; sobre a Capela Sistina restaurada, novinha em folha; sobre a limpeza das ruas das vizinhanças da Piazza di Spagna, onde se espalham as lojas das melhores marcas com os seus preços em euros afugentadores, fraquinho o dólar, medida monetária de troca para os brasileiros, apegados a ele, inclusive pelo costume, e até razões psicológicas.

Terminaria aludindo à seca, que esturrica o leito do Pó e esvazia o Tibre. Já se fala da possível decretação de um “estado de crise”. Na ponta da língua, ou da caneta, uma referência à “Enciclopédia dos Papas”, recém comprada a peso de euros, sem a qual não se pode escrever a sério sobre a história romana, como fez Afonso Arinos, no seu “Amor a Roma”.

Cumpre, entretanto, sair de Roma para dizer alguma coisa sobre a ordem do dia, nesta coluna, criada para abordar temas jurídicos, embora freqüentemente deles se desvie pela índole do seu autor. Há, no Brasil, o STF. Houve a decisão de um dos seus ministros sobre assunto tornado polêmico por um debate açodado e vulgar, se se permite à qualificação exigida pela falta de seriedade com que se vem cuidando de tema técnico, evolvente da ciência jurídica e dos seus princípios, refletidos na legislação que os juízes devem impositivamente aplicar.

Ainda nos tempos de faculdade, levávamos na galhofa o dito de um político que, ao reclamar a criação de cursos superiores no seu reduto, afirmava que se podia começar por uma faculdade de direito, que requeria apenas duas coisas: “giz e cuspe”.

Costumo dizer que se os postulantes da administração da justiça e os prestadores dela usassem gorro, máscara, avental e luvas, talvez convencessem de que também desempenham uma atividade científica. Fazem ciência mediante a aplicação de regras e princípios de compreensão inacessível ao homem comum. Não se ouvem críticas à incisão do médico operador, que abriu o paciente assim e não assado. Não se reprova o engenheiro que se recusou a manter um vão concebido no projeto, porém, insustentável. Muito menos se censura o químico pela inclusão de certos elementos e pela exclusão de outros, nas suas composições.

Como essas pessoas lidam com a ciência, só se divergirá delas depois de indagar-se acerca da sua compreensão e dos seus motivos. Na área das ciências sociais, entretanto, muita gente não hesita em meter o bedelho, e vai deitando falação sobre o que não compreende, ou pior, acerca do que não procurou compreender, ainda quando não lhe faltassem condições para isso.

Não coincidem a ciência, ou a técnica com a intuição, as crenças e, muitas vezes, a vontade do homem comum. Para ficar num exemplo só, aliás já dado aqui: José propõe contra Marta uma ação, visando a compeli-la ao cumprimento de obrigação, assumida numa cláusula de certo contrato. Marta contesta, afirmando a inexistência da obrigação porque é nulo o contrato. O juiz decide a favor dela, dispensando-a da obrigação por entender que o contrato, efetivamente, é nulo. Depois disso, nada impede que José proponha contra Marta outra ação, buscando forçá-la a cumprir uma obrigação constante de outra cláusula do mesmíssimo contrato, e vença a demanda.

“Como assim ― se espantará o leigo ― se o juiz, na sentença da causa anterior entre as mesmas partes, já declarou a nulidade do contrato?” Sem se conhecer a ciência, refletida na norma do art. 469, I, do Código de Processo Civil, sempre se concordará com a estranheza da pergunta.

A ciência jurídica, nas suas leis e princípios, e o direito vigente dirão impecável a decisão do ministro Cezar Peluso, alvo de críticas de diferente procedência, que cindiu o “caso dos bingos”, mandou à Justiça Federal a parte na qual se indaga da implicação de pessoas comuns, e manteve no Supremo Tribunal a parte relativa à alegada conduta de um membro do Superior Tribunal de Justiça junto com dois outros, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, relaxando a prisão dos detidos.

Falta ao STF o poder de julgar pessoas postas fora do âmbito da sua jurisdição (tomada esta palavra no sentido de competência, isto é, poder de processar e julgar). O despacho de Peluso desagradou a parte da opinião pública e da mídia, e mesmo a instâncias que, qualificadas embora, não quiseram, ou ainda não tiveram tempo de examiná-lo à luz do direito e da lei.

Esse descontentamento revela que os inconformados já julgaram os envolvidos e os condenaram. Querem vê-los desde logo nas prisões, contra a presunção de inocência, garantida pelo inciso LVII do artigo 5º da Constituição em favor de réprobos e de homens de bem, indistintamente, pois o direito, na abstração e generalidade das suas normas, não consegue distinguir, de pronto, sem o processo devido, culpados e inocentes. Inevitavelmente, beneficia os poucos culpados pela necessidade de assegurar a liberdade dos muitos inocentes.

A ciência jurídica e o adequado conhecimento da lei mostrarão que é perfeito o despacho do Ministro Cezar Peluso, no ponto em que mandou desmembrar a investigação. Com esse pronunciamento, Peluso contribuiu para apressar os resultados. Impediu que a quantidade de indigitados termine por tumultuar o caso com prejuízo da finalidade e dos desígnios do processo judicial. Não se pode esquecer de que cumpre ao juiz, não importa se da primeira instância, ou da mais alta, agir com presteza, zelando pelo rápido desfecho da questão.

O direito vigente impõe-lhe esse dever como se lê, só para exemplificar com uma norma conhecida, no artigo 125, II, do Código de Processo Civil. Cumpre também ao juiz, quando possível, descomplicar o processo, inclusive pela limitação do número de partes, conforme o princípio que se lê também no parágrafo único do artigo 46 do mesmo Código. A decisão do ministro é modelar, no tocante à observância de princípios processuais inafastáveis, como os que visam a assegurar a razoável duração do processo, garantida no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição.

E não passa de afirmação oca e insustentável a de que houve corporativismo na decisão do ministro Peluso. Deixando no Supremo a parte do caso relativa a magistrados do STJ e de tribunais federais, ele cumpriu a Constituição, resultante da vontade do povo, que atribui, ela sim, foro privilegiado às mais altas autoridades da República para que elas não sejam julgadas em juízos e tribunais de algum modo, até imperceptivelmente, influenciáveis pela relevância das funções que exercem.

Nem é corporativista a norma do artigo 102, I, c, da Constituição Federal, que assegura aos ministros dos tribunais superiores o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns. Não foi corporativista a decisão que a cumpriu à risca, remetendo às instâncias inferiores o caso das pessoas que não dispõem de foro especial

O maior dos erros das críticas à decisão do ministro é pretender que ela equiparasse pessoas de posições diferentes, que merecem tratamento distinto da própria Constituição. A igualdade constitucional não é cega. Trata situações diferentes de modo diferente, exigido pela natureza das funções exercidas. Não há privilégio para elas porque, para repetir Rui Barbosa, que mergulhou fundo no seu sentido, a regra suprema da igualdade consiste em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam.

[Artigo publicado originalmente pelo site no mínimo, nesta sexta-feira, 27/04/2007].

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