Névoa mal-querida

Investigação da Polícia é transparente; do MP, blindada

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24 de abril de 2007, 16h05

Os membros do Ministério Público que se arvoraram do mister de promover investigações sempre souberam ou presumiram as conseqüências dessa ousadia insana em que se atiraram: tentar investigar. Tanto sabiam que seus representantes de classe nunca abandonaram os corredores do Congresso, tentando aprovar projetos de leis que lhes garantissem essa prerrogativa.

Estariam movidos, por certo, na afirmação feita em dezembro de 1998 pelo ministro Carlos Velloso, no sentido de que “não existe ofensa ao artigo 129, VIII, Constituição Federal, no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial”.

Endossando aquela posição, o Supremo Tribunal Federal, em votação unânime, proclamou que “o MP não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos, nem competência para produzir inquérito policial sob o argumento de que tenha possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos, e pode propor ação penal sem inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Mas os elementos suficientes não podem ser auto-produzidos pelo MP, instaurando ele inquérito policial”.

Disse, portanto, por várias vezes a mais alta corte judicial do país, não ser atribuição do Ministério Público promover investigações. Não sem razão. Após anos de ditadura, a Constituição cidadã veio para, entre outras finalidades, colocar cada coisa no seu devido lugar, definindo quem é quem e as atribuições de cada instituição.

Redefiniu o papel daquela instituição, reservando às polícias o papel investigatório, separando, desta forma, o processo de coleta de dados e provas, de apreensão preliminar dos fatos, para finalmente submetê-lo ao Judiciário, com as oportunas intervenções do Ministério Público e da defesa. Quis, com isso, o constituinte, garantir que o quadro caracterizador da quebra de regras e o delineamento do pretenso violador transcorresse numa outra instância. Tudo isso para dizer que, após anos de arbitrariedades, a nova carta tinha um viés cidadão e que o tripé da promoção da Justiça se consolidaria em condições de igualdade entre os atuantes.

As polícias, no exercício de suas funções constitucionais, enquanto titulares das investigações, têm mostrado sua indiscutível eficiência. Seus eventuais vícios, tão martelados pelo MP, não justificam a supressão de suas atividades e sim a punição exemplar dos responsáveis. Ninguém fala em supressão de prerrogativas de juizes ou de membros do Ministério Público, quando da constatação de suas faltas, falhas e crimes.

Aliás, quem sabe se elas existem diante da névoa ou da caixa blindada que circunda o todo poderoso Ministério Público? Quem os fiscaliza? Quem os pune? Ou seriam os representantes do Ministério Público uma legião de congregados marianos puros e intocáveis, acima do bem e do mal, a ponto de autoderminar-se no que faz, não faz, contra quem investem e diante de seus próprios erros se auto-julgar-inocentar? Seriam eles, assim como faz a Polícia Federal, por exemplo, capazes de publicamente cortarem a própria carne e arranharem sua presumível credibilidade?

Enquanto sobre eles paira a névoa e a blindagem, nas polícias as investigações são transparentes, com as reservas permitidas por lei. Mas, em suas repartições ingressam advogados, juizes, promotores, representantes de organizações não governamentais, a anistia internacional e tudo que nela se constata é debatido, refletido e objeto de punição. O mesmo não se pode dizer do Ministério Público.

Sem embargo, não existe a menor probabilidade matemática, lógica ou jurídica a indicar que, se os crimes tidos como não esclarecidos teriam final diferente se fossem investigados pelo Ministério Público. Constata-se, com isso, que se utiliza uma verdade para vender uma mentira. A verdade é representada pelos desacertos das policiais, pela realidade dos maus policiais, pelas estatísticas assombrosas, por números muito mais associados à miséria e à corrupção crônicas do país, do que mesmo a uma ineficiência do aparelho policial. Já a mentira, destaque-se, reside justamente em querer impor à sociedade, que tudo seria diferente, se, finalmente, o Ministério Público Federal ou Estadual, assumissem os trabalhos investigatórios de uma vez por todas.

Mas aí dizem: não é bem assim. Não se deseja investigar tudo, serão apenas em alguns casos, determinadas investigações, provavelmente inspirados no espetáculo jornalístico patrocinado pelos promotores italianos na denominada Operação Mãos Limpas, hoje cada mais turvas. Os certos casos estão evidentes. É público e sabido, é notório que o Ministério Público não quer apurar os crimes famélicos, o aborto clandestino, os pequenos assaltos nos sinais, as arengas conjugais, brigas de bar, furtos em supermercados, truculência de seguranças em casas noturnas, arruaças de trânsito ou furto do perfume da patroa. Quer sim investigar os pretensos grandes casos, os que vão para o Jornal Nacional. Para as polícias, ficariam os casos do Brasil Urgente (programa sensacionalista de televisão) ou as ocorrências singulares que engordam as estatísticas.

Ao criar aquela hierarquia investigatória, inclusive com base no clicherizado brocardo do quem pode mais pode o menos, o Ministério Público, agora e mais que nunca com a complacência de parte da imprensa, esquece não só as decisões supremas, mas também o próprio processo evolutivo pelo qual passaram as polícias. Há um novo quadro policial, de competência e tradição investigatória, de altíssimo nível, que tem como indicador preliminar seus próprios concursos. A Polícia Federal, por exemplo, cujo quadro orgulhosamente integramos, vem adotando os mais rigorosos testes, seja na alta exigência intelectual, investe no perfil psicológico e no seu aprimoramento técnico na Academia Nacional de Polícia, uma referência na América do Sul. Sem embargo, uma entidade historicamente inspirada nas polícias do Canadá, Estados Unidos e Reino Unido.

Tanto o perfil capacitatório quanto a eficiência das polícias são uma realidade. As cadeias e presídios estão lotados, não por obra dos representantes daquela instituição, mas sim das polícias. Registre-se por oportuno que, se muitos cidadãos que já conquistaram o direito à liberdade ainda se encontram presos, não é por culpa das polícias. Ao mesmo tempo, muitos fiascos policialescos difundidos pela mídia não foram obra das polícias e sim das câmeras secretas e suas filmagens “James Bonescas”, promovidas por membros do MP alinhados com a programação “global”. Numa delas, ao invés de prender em flagrante (omissão?) os pretensos criminosos, limitaram-se a filmar, deixando em aberto um longo processo de discussão sobre a identificação das pessoas filmadas, sobre a legalidade do ato, etc..

Criado o impasse, o Ministério Público chegou a recorrer à imprensa. Formadores de opinião como Clovis Rossi e Josias Leite do jornal Folha de S. Paulo, o Boris Casoy (ex-TV Record), para ficar apenas nuns poucos, objetivando defender suas posições. Para tanto, chegaram a usar, no passado, o bem articulado “Maluf Gate”, quando o político Paulo Salim Maluf estava sendo vendido pela imprensa como o maior estelionatário vivo da história do país, mesmo que sem sentença com trânsito em julgado, dando a ele suporte político, inclusive, para dizer que, a cada campanha eleitoral desenvolve-se ou surge contra ele uma onda de denúncias.

Não só, operações como Anaconda, Vampiro e outras de nomes e sobrenomes inusitados também servem de referência do suposto bom trabalho do Ministério Público. Mas, diante do fiasco do Maluf Gate, recorrem agora ao “Celso Daniel Gate” para tentar legitimar o que têm feito. Caso “nos neguem o direito de investigar”, tudo virá abaixo, andam apregoando aos quatro cantos, os dignos representantes do Ministério Público.

O maniqueísmo está lançado. De um lado está o Ministério Público representante do bem e de outro o satânico Maluf ou Caso Celso Daniel, personificando todas as mazelas institucionais, simbolizando o câncer que ao longo dos anos corroeu nossa consciência cívica, nossas finanças. Nem o Duda Mendonça conseguiria uma propaganda tão boa. O tema está na mídia e o apelo jornalístico é grande e repetitivo: será, argumentam, um prejuízo ao país, um prêmio à corrupção, se o tribunal invalidar o trabalho do Ministério Público. Caberá ao STF dizer sim ou mandar refazer tudo pela Polícia.

O atual posicionamento do Ministério Público soa como verdadeira chantagem social. Primeiro, ele mergulhou na aventura investigatória, para depois fazer chantagem com os tribunais e com a sociedade. Para tanto, usam o forte apelo do discurso contra a impunidade — “não podemos perder tudo que fizemos!”. Trata-se de golpe baixo na combalida Democracia e no Estado de Direito brasileiros. Além de tudo, consolidado o intento do MP, não deixaria de caracterizar um grave precedente para que, no futuro, qualquer prova ilegal possa vir a ser legitimada pelo clamor público, sepultando de uma vez por todas a harmonia entre os poderes e o ordenamento jurídico pátrio.

Caso os tribunais venham a desdizer o que já disseram, nada descaracterizará a aventura temerária e prepotente na qual fomos lançados pelos representantes do Ministério Público.

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