Gestão pública

Não basta ter leis; elas têm de ser colocadas em prática

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22 de abril de 2007, 0h00

É bastante provável que poucos brasileiros tenham opiniões diferentes quanto aos desmandos na gestão da coisa pública nas três esferas do poder federal, estadual e municipal, em maior ou menor escala permeando os três Poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Ressalvadas poucas e honrosas exceções, a fragilidade dessas gestões em grande parte é apontada por muitos especialistas como um dos principais fatores do baixo índice de crescimento econômico do país, bem como da indigência dos serviços básicos prestados pelo Estado (educação, saúde, segurança e justiça). Destaca-se particularmente a segurança pública, na qual a violência urbana alcança níveis próximos do insuportável. O assassinato brutal do menino João Hélio, no Rio de Janeiro, chocou o país.

A baixa eficiência do Estado não é exclusividade da sociedade brasileira1; em maior ou menor grau, historicamente sempre foi e continua sendo recorrente em praticamente todos os países. Adicionalmente, é senso comum que os desvios de ordem econômica ou financeira sejam mais comuns no serviço público do que na iniciativa privada. Uma das possíveis explicações dessa tendência reside na constância da “natureza humana”, independentemente de características econômicas, geográficas ou sociais: aceita-se, ecumenicamente, que a parte “mais sensível” do ser humano é o seu bolso2. Na iniciativa privada, o bolso considerado é do empresário, do que resulta, em geral, critérios, parcimônia e controles do gasto realizado. Já no serviço público, o bolso considerado é o da “viúva”, o Estado. Neste caso, somente as sociedades organizadas conseguem impor a desmandos.

Nas últimas décadas, em face das conseqüências da globalização, trazendo no seu bojo a “era da pós-modernidade”, praticamente todos os países, mesmos os mais ricos, foram obrigados a reduzir os gastos governamentais e a realizar algum tipo de aperto fiscal. Todos viram-se na contingência de melhorar a qualidade dos gastos do Estado, reduzindo ou eliminando aqueles não-prioritários, desnecessários e os desperdícios, sob pena de inadimplência geral.

Em nosso país, muito se tem falado quanto à carga tributária, de taxas suecas e qualidade de serviços nigeriana. O Estado gasta muito e gasta mal. As principais causas da baixa eficiência de gastos são conhecidas: despreparo, desinteresse e corrupção de maus servidores, devidamente estimulados pela ausência das respectivas conseqüências. Destas, registra-se uma das causas que provavelmente mais estimulam a corrupção: a incapacidade histórica de o Estado recuperar os dinheiros desviados! Fica a sensação de que o crime compensa.

Como mudar esse triste quadro? Com algum reducionismo podemos pegar carona no Método E-E-E, aplicado pelos americanos para equacionar a complexa gestão do trânsito: Education (educação), Engineering (tecnologia) e Enforcement (cumprimento das leis). Aceitando-se que esse método possui generalidade de aplicação — o que parece bastante provável — a quantas andamos em cada um desses “E” em um contexto mais geral da nossa sociedade?

“E” de educação: todos os países que tiveram ou têm sucesso em desenvolvimento econômico e social privilegiaram a educação como ponto de partida. Malgrado algum discurso dialético, o fato é que continuamos priorizando pouco a educação. Essa afirmação pode ser constatada, dentre outros inúmeros fatos, pelos baixos salários pagos aos professores do primeiro e do segundo graus. A decorrência de maus resultados é praticamente certa, seja pela piora do universo de seleção de professores (pessoas socialmente mais limitadas), seja pela frustração progressiva e deletéria de o magistério não proporcionar renda que permita condições mínimas de dignidade de vida dos educadores.

“E” de tecnologia ou engenharia: o serviço público gasta expressiva quantidade de recursos, tanto na melhoria da sua infra-estrutura (computadores, sistemas, redes de dados, instalações, etc.), quanto na capacitação de servidores. Todavia, ressalvados algumas exceções (por exemplo, a gestão do imposto de renda, da Receita Federal), os resultados têm sido frustrantes, em face de falhas de planejamento, de execução e de controles dos respectivos programas: estes quase sempre são atividades pontuais e por isso não-sistêmicas, dificultando ou mesmo impossibilitando a desejada sustentabilidade. Os poucos resultados alcançados deterioram-se rapidamente, mantendo a muito presente e indesejada característica espasmódica ou pulsada, às vezes com ciclos de décadas.

“E” de leis (enforcement): em consonância com a sensação de impunidade crônica, raramente são responsabilizadas no serviço público as decorrências pelo mau uso dos recursos públicos, seja por imperícia, imprudência, negligência ou má fé. Por oportuno, registra-se uma contradição de origem: o Estado que deveria ser o maior responsável pela aplicação das leis é o maior interessado em que essas não funcionem, tendo em vista que ele, o Estado, é o maior réu nos tribunais. Somados os processos da União, dos estados e do município, estima-se que componham algo em torno de 80% das causas judiciais. Temos um grande problema!


Confirmando relato feito ao início desta matéria, no Brasil, um país historicamente patrimonialista, o descaso com a coisa pública assumiu proporções gravíssimas, em face de gastos amazônicos do Estado (próximos de 40% do PIB), com retorno pífio nas suas atividades essenciais: educação, saúde, justiça e segurança, daí decorrendo prejuízos grandes e crescentes à sociedade, suscitando algumas reações jurídicas.

Desde a última década, algumas iniciativas, tendentes a estabelecer condições mínimas de zelo com o dinheiro público, começaram a ganhar corpo. A primeira delas foi a publicação, em 1992, da Lei da Improbidade Administrativa. A segunda, esta mais estrutural, foi a publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000. Malgrado o fato de que estas leis ainda não “pegaram” na sua plenitude, a pressão da mídia aos poucos estabelece novas e crescentes imposições a políticos e a servidores no trato da coisa pública.

A Constituição Federal de 1988, mesmo pródiga em direitos, mas avarenta em deveres3, estabelece: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

No texto da Constituição, a palavra “eficiência” adquire, à luz de alguns juristas, significação toda especial: ela corresponde aos efeitos combinados de eficácia (extensão na qual as atividades planejadas são realizadas e os resultados planejados, alcançados) e de eficiência (relação entre o resultado alcançado e os recursos usados), ambos os termos definidos pela NBR ISO 9000:2005.

Recentemente surgiu um fato novo, estimulante e esperançoso: aplicando o conceito de juridicização do P-D-C-A4 a um caso concreto, no mês de janeiro de 2007, na 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o desembargador Jessé Torres relatou o Acórdão 2006.001.34532, que tende a acender um grande debate, com expressiva probabilidade de modificar o curso dos acontecimentos quanto às más práticas, impunes, vigentes no serviço público.

Neste acórdão, o relator do processo, desembargador Jessé Torres Pereira Júnior, do poder judiciário do Estado do Rio de Janeiro, renomado jurista e especialista em direito administrativo, criou esse fato novo na administração pública brasileira e, até onde se sabe, pioneiro no mundo: a “Juridicização do Ciclo P-D-C-A”. Essa é explicada como a aplicação concreta da ciência da administração (representada pelo Ciclo P-D-C-A) à esfera jurídica, determinando aos gestores públicos que não observarem preceitos metodológicos adequados nas suas ações e decisões conseqüências cíveis (das quais os respectivos réus podem ter que fazer reparações) ou penais (das quais os respectivos réus podem sofrer penas).

Em outras palavras, trata-se da inserção da eficiência em normas jurídicas, realizadas com base no cumprimento do artigo 37 da Constituição, da Lei da Improbidade Administrativa e da Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa inserção se dá mediante a judicialização de más práticas da gestão pública, em consonância com os anseios da sociedade, a “proprietária” final do Estado. Nesse caso, o Poder Judiciário do estado do Rio de Janeiro parece responder aos anseios da sociedade, que se mostra cansada de sofrer as graves conseqüências de seguidos atos atentatórios à moralidade e aos demais princípios da administração pública, exigindo ações concretas dos poderes constituídos.

O acórdão em tela, fato absolutamente inovador na jurisdição aplicada ao serviço público, conecta a tecnologia da administração mais atualizada, no caso, representada pela NBR ISO 9001:2000, à gestão pública no Brasil.

O desembargador Jessé Torres assim definiu a “juridicização” da eficiência:

“O princípio da eficiência implica o dever jurídico, vinculante dos gestores públicos, de agir mediante ações planejadas com adequação, executadas com o menor custo possível, controladas e avaliadas em função dos benefícios que produzem para a satisfação do interesse público.”

Vale destacar nessa formulação quatro conceitos: dever jurídico (decorrem aspectos legais); vinculação (existência de relação de causa e efeito); P-D-C-A (no texto explicado por “ações planejadas com adequação, executadas com o menor custo possível, controladas e avaliadas”); interesse público (foco nos interesses da sociedade).

Na sua formulação, o desembargador Jessé Torres, com base no artigo 4º da Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) destaca as três categorias de atos de improbidade administrativa: atos que importam enriquecimento ilícito (artigo 9º); atos que causam prejuízo ao erário (artigo 10); atos “que atentam contra os princípios da administração pública” (artigo 11)”.


O acórdão, consolidando um caso concreto, formaliza a decisão de uma causa que envolvia incúria de gestores públicos, especificamente vinculados ao caótico sistema prisional. Trata-se de uma situação bastante peculiar, na qual o estado do Rio de Janeiro foi condenado a pagar danos morais sofridos por um detento, custodiado na delegacia policial de Barra Mansa, que veio a ser interditada por ausência de condições mínimas de habitabilidade. Em que pese o fato de ter sido condenado à privação da liberdade por roubo qualificado, o autor da ação tinha, por lei, garantia de custódia digna; esta condição foi sucessivamente violada, malgrado várias solicitações de providências à Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, destinadas a sanar ou a mitigar as más condições de encarceramento.

Esse precedente pode abrir uma verdadeira avalanche de ações contra o Estado, de custo milionário, sempre que comprovados eventuais desvios de conduta de seus servidores. Se, devidamente, acolhida pelos tribunais superiores (a lei sempre permite recursos às decisões da segunda instância) essa decisão obrigará os políticos e os gestores a refletirem com mais cautela sobre a qualidade e a honestidade da gestão pública praticada, abrindo caminho para o estabelecimento de paradigmas mais racionais de trato da coisa pública.

Sabe-se que apenas a existência de ótimas leis é de pouca valia, se elas não forem positivadas, isso é, não forem postas em prática mediante casos concretos. Neste, o Acórdão 2006.001.34532 criou o fato concreto, abrindo o caminho para uma nova dimensão da gestão pública.

Oxalá estejamos vivenciando uma nova era, de maior responsabilidade das autoridades constituídas, sinalizando que, no “País do futuro”, enfim possamos enxergar uma luz no fim do túnel.

A íntegra do Acórdão 2006.001.34532 pode ser acessada no seguinte endereço: www.tj.rj.gov.br. Selecione, sequencialmente, as opções: consultas – processos – judiciais – por número – Tribunal de Justiça (2ª instância); clicar 00600134532.

Notas de rodapé

1 – Em 2005, relatório do National Audit Office (Escritório de Auditoria Nacional) da Inglaterra estimou em 2 bilhões e 600 milhões de libras o desperdício de recursos por má gestão dos serviços públicos no Reino Unido (Duncan Cartlidge, “Public Private Partnerships” in Construction, pág. 3. Ed. Taylor & Francis, 2006, Londres e Nova York). Duncan Cartlidge é consultor e pesquisador que presta serviços ao College of State Management, da Inglaterra.

2 – Maquiavel

3 – À luz da Teoria Evolucionista, ou da seleção natural, o desequilíbrio entre direito e deveres não constitui uma Estratégia Evolutiva Estável (EEE), do que resulta, inexoravelmente, tendência ao desaparecimento.

4 – P-D-C-A: letras iniciais das palavras inglesas Plan(planejar), Do (executar), Check (controlar, verificar, comparar) e Actt (atuar corretivamente). O P-D-C-A, simplificação da expressão Ciclo P-D-C-A, constitui a essência metodológica dos processos de gestão. Estrategicamente, o P-D-C-A induz o gestor à reflexão do que é melhor: “pensar antes de agir” (comportamento próprio das sociedades desenvolvidas) ou “agir antes de pensar”(comportamento próprio de sociedades não-desenvolvidas). Informações complementares sobre o P-D-C-A podem ser obtidas nos dois livros citados na bibliografia do autor desta matéria.

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