Herança do governo

Leia voto de Cármen Lúcia sobre subsídio a ex-governador

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22 de abril de 2007, 0h01

Como os cargos de chefia do Poder Executivo são de caráter transitório, e não permanente, não há que se falar em subsídio mensal e vitalício a ex-governadores. O pagamento desse benefício contraria diversos dispositivos da Constituição Federal. A conclusão é da ministra Cármen Lúcia. Ela é relatora do processo que questiona a validade da Emenda Constitucional 35/06, que garante aos ex-governadores salários vitalícios equiparados ao do chefe do Poder Executivo estadual.

O julgamento começou na quarta-feira (18/4). Cármen Lúcia foi acompanhada pelos ministros Ricardo Lewandowski e Sepúlveda Pertence. A decisão foi adiada depois que o ministro Eros Grau pediu vista.

A princípio, Cármen Lúcia ataca a redação do artigo 29-A do Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição de Mato Grosso do Sul. A ministra considerou complicado o texto do dispositivo, “pois afirma o que não expressa e explicita o que não pode ser considerado na literalidade de seus termos”.

O dispositivo prevê o seguinte: “Cessada a investidura no cargo de governador do estado, quem o tiver exercido em caráter permanente fará jus a um subsídio, mensal e vitalício, igual ao percebido pelo chefe do Poder Executivo”. Além do que, em caso de morte, prevê que o benefício seja transferido ao cônjuge. O prejuízo sofrido pela família seria o corte pela metade do valor recebido.

A relatora ressaltou a transitoriedade do cargo e observou, como argumentou a Ordem dos Advogados do Brasil, autora da ação, que a remuneração deve ser paga durante o exercício da função pública ou do mandato, de acordo com o artigo 40 da Constituição da República.

A OAB contesta o critério diferenciado para a concessão do que chamou de pensão gratuita a ex-governador de estado, que já se submete ao regime geral de Previdência Social. “Não se trata de benefício previdenciário a ser custeado pelo regime próprio de Previdência Estadual, porque o detentor de mandato eletivo de governador de estado não é considerado, para fins previdenciário, como segurado do regime contributivo estadual”, assegura.

Cármen Lúcia tratou da confusão feita tanto pela OAB quanto pela Assembléia Legislativa de Mato Grosso do Sul quanto aos termos atribuídos aos valores que deveriam ser pagos aos ex-governadores. Ela explicou a diferença entre subsídio, benefício, vantagem, provento e pensão. E concluiu: “O que sob o rótulo normativo se apelidou subsídio, subsídio não é”.

Segundo ela, também não pode se dizer que se tem uma pensão de graça, “como insiste em afirmar a Assembléia Legislativa”. Para a ministra, “trata-se de uma regalia, uma dádiva, uma recompensa vitalícia, um provento pecuniário de natureza permanente, instituído não como um benefício, mas como uma benesse ou um favor conferido a quem tenha se desinvestido do cargo de governador do estado, após ter desempenhado o mandato completo”.

A questão que se colocou, conforme a ministra, é sobre a possibilidade de uma constituição estadual criar categoria nova de gastos públicos em favor de ex-agentes políticos.

Cármen Lúcia considerou que houve afronta ao parágrafo 5º da Constituição Federal, que diz que todos são iguais perante a lei. “A benesse instituída pela Assembléia sul-matogrossense em favor de ex-governador daquele estado e como pensão devida ao cônjuge supérstite desiguala não apenas os cidadãos, que se submetem ao regime geral da previdência, como também os que provêem cargos públicos de provimento transitório por eleição ou por comissionamento”, disse Cármen.

A ministra achou curiosa a argumentação da Assembléia, que se baseou no artigo 184 da Emenda Constitucional 1/69, revogada há quase 19 anos.

No julgamento, que aconteceu na última quarta-feira (18/4), Cármen Lúcia foi acompanhada pelos ministros Ricardo Lewandowski e Sepúlveda Pertence. A decisão foi adiada por pedido de vista de Eros Grau.

Leia o voto

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3853-2 MATO GROSSO DO SUL

RELATORA: MIN. CÁRMEN LÚCIA

REQUERENTE: CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

ADVOGADO: MARCELO ROCHA DE MELLO MARTINS

REQUERIDO: PRESIDENTE DA REPÚBLICA

REQUERIDO: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL

R E L A T Ó R I O

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – (Relatora):

1. Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra o art. 29-A, caput, §§ 1º, 2º e 3º do Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição do Mato Grosso do Sul, introduzida pela Emenda Constitucional n. 35, de 20 de dezembro de 2006.


2. Relata a entidade Autora que "a Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul fez publicar no Diário Oficial do Estado n. 6878, de 29 de dezembro de 2006, a Emenda Constitucional n° 35, de 20 de dezembro de 2006 que ‘dá nova redação a disposição da Constituição Estadual e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias’, verbis:

A MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL, nos termos do § 3º do art. 66, da Constituição Estadual, promulga a seguinte emenda ao texto constitucional:

Art. 1º. O inciso VIII do art. 63 da Constituição do Estado passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 63 –

VIII – fixar subsídio do Governador, do Vice-Governador e dos Secretários de Estado.

Art. 2º. Fica acrescentado ao Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias artigo, numerado como 29-A, com a seguinte redação:

Art. 29-A. Cessada a investidura no cargo de Governador do Estado, quem o tiver exercido em caráter permanente, fará jus a um subsídio, mensal e vitalício, igual ao percebido pelo chefe do Poder Executivo.

§1º O recebimento do subsídio é restrito ao exercente de mandato integral e não poderá ser cumulativo com a remuneração de cargo eletivo ou de livre nomeação federal, estadual ou municipal.

§2º Em caso de falecimento do beneficiário o cônjuge supérstite receberá a metade do subsídio, aplicando a mesma a inacumulabilidade prevista no parágrafo anterior.

§3º O subsídio poderá ser retirado pelo voto de 2/3 da Assembléia Legislativa em caso de provada indignidade do beneficiário, pela prática de ato grave no exercício de mandato eletivo ou cargo de livre nomeação.

Art. 3º. Esta Emenda Constitucional entrará em vigor na data de sua publicação."

Argumenta a Autora que as normas questionadas afrontariam o art. 39, § 4º, da Constituição da República, no qual se dispõe ser o subsídio "remuneração paga ao membro de Poder, ao detentor de mandato eletivo, aos Ministros de Estado e aos Secretários Estaduais e Municipais, enquanto no exercício da função pública ou do mandato" (fl. 4). Pelo que, afirma, ".na prática, instituiu (a norma posta em questão na presente ação) benefício ‘rotulado’ de subsídio, todavia, com características de provento ou pensão" (fl. 4) sem o atendimento das prescrições constitucionais dos arts. 201, § 1º, e 195, § 5º, desatendendo-se, ainda, os arts. 22, inc. XXIII e 37, inc. XIII, todos da Constituição da República.

A Autora observa também ter havido instituição de "pensão gratuita" pela norma impugnada em ambiente constitucional impróprio como seria o Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias. Aquelas normas estariam a criar "situação jurídica nova, de natureza não transitória, consubstanciada na percepção de subsídio mensal e vitalício" (fl. 12).

Foi requerido o deferimento de cautelar para "ser afastado do ordenamento jurídico pátrio a norma impugnada"(fl. 12) e, no mérito, a procedência da ação.

3. Em 29.1.2007 a eminente Presidente, Ministra Ellen Gracie aplicou ao caso o procedimento previsto no art. 12 da Lei n. 9.868/99.

4. Foram prestadas as informações solicitadas pelo Presidente da Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul, relatando aquela autoridade o histórico das "pensões vitalícias concedidas a ex-governadores" pela Emenda Constitucional n° 1, de 1969 (art. 184, Disposições Gerais e Transitórias) e observando que, ao contrário daquela Emenda n° 1, que a previa expressamente, a Constituição de 1988 dela não cuidou, pelo que não se poderia concluir ter vedado a sua adoção pelos entes estaduais. Encarece a autoridade a autonomia do Estado membro para adotar medidas como a que se contém nas normas postas em questão, distingue entre benefício previdenciário "com benefício da graça e que é justamente o que trata a EC 35/06" (fl. 42) e afirma não haver qualquer contrariedade aos dispositivos constitucionais realçados na inicial da ação porque não se estaria diante de benefício previdenciário, mas de pensão de graça e, nessa condição, inaplicável seria ao caso os preceitos mencionados.


5. A Advocacia-Geral da União manifestou-se pela inconstitucionalidade do art. 2º, da Emenda Constitucional n. 35, de 20.12.2006, pela qual foi acrescentado o art. 29-A ao Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição do Mato Grosso do Sul, sob alegação de ter sido ferido o art. 37, inc. XIII, da Constituição da República, que veda a equiparação e vinculação especialmente a situação que não guarda identidade com a base funcional sobre a qual se quer praticar o pagamento estatal e, ainda, por carência do paradigma federal a amparar a criação do favor estadual.

6. A Procuradoria-Geral da República emitiu parecer pela procedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade porque teria havido afronta aos arts. 25, caput, 37, caput e inc. XIII, da Constituição da República, e art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

É o relatório, do qual deverão ser extraídas cópias para encaminhamento aos eminentes Senhores Ministros deste Tribunal (art. 87, inc. I, do RISTF).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.853-2 MATO GROSSO DO SUL

V O T O

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – (Relatora):

1. A presente ação direta de inconstitucionalidade tem

como objeto o art. 29-A e seus parágrafos 1º a 3º do Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul, pelo qual foi instituído, em benefício de ex-Governador daquele Estado, "um subsídio, mensal e vitalício, igual ao percebido pelo chefe do Poder Executivo".

Titular do benefício seria "quem tiver exercido em caráter permanente" mandato integral, sendo inacumulável com remuneração de cargo eletivo ou de livre nomeação federal, estadual ou municipal. O benefício seria transferível ao cônjuge supérstite, reduzindo-se, então, à metade do que seria devido ao titular (§§ 1º e 2º do art. 29-A).

2. Para se apreciar o alegado vício de inconstitucionalidade que estaria a tisnar as normas em foco, cumpre, inicialmente, aferir-se a natureza do favor concedido, a fim de se saber se pelo quanto elaborado no ato legislativo questionado se teria arranhado, ou não, o ordenamento constitucional e em que pontos, se concluído positivamente quanto a inobservâncias havidas.

3. De se anotar, de pronto, que as normas questionadas têm redação complicada, pois afirmam o que não expressam e explicitam o que não pode ser considerado na literalidade de seus termos.

Note-se, por exemplo, que o favor é concedido a quem tenha exercido o cargo de Governador "em caráter permanente". Dá-se, contudo, que os cargos políticos de chefia do Poder Executivo, no ordenamento republicano e democrático brasileiro hoje vigente, não é jamais exercido ou ocupado "em caráter permanente", mas, sempre, transitório. Numa República, os mandatos são temporários e seus ocupantes, transitórios.

Há que se cuidar, pois, ao apreciar as normas em questão de se ter claro e preciso do que aqui se cuida: elas tratam de favor pecuniário estabelecido para quem já se tenha desinvestido do cargo político de Governador de Estado. E que, ao nele ser investido, sabia, portanto, que o seria para um período certo quanto à sua duração e ao regime constitucional que submete os seus ocupantes.

Natureza do benefício apelidado pela Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul de "pensão de graça" – Instituição de benesse de graça sem fonte correspondente de custeio

4. Toda a elaboração patrocinada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na peça inicial da ação, põe-se por ilações firmadas a partir da natureza do ganho assegurado, vitaliciamente, a ex-Governador sul-matogrossense.

Afirma a entidade Autora que se estaria em face de um benefício de natureza previdenciária, sem observância dos parâmetros constitucionais relativos à matéria: "é inadmissível requisitos ou critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria a ex-Governador de Estado, atualmente submetido ao regime geral de previdência social não se trata de benefício previdenciário a ser custeado pelo regime próprio de Previdência Estadual porque o detentor de mandato eletivo de Governador do Estado não é considerado, para fins previdenciários, como segurado do regime contributivo estadual, a teor do que dispõe o art. 40, § 13 da Constituição Federal, estando vinculado ao Regime Geral de Previdência Social"(fl. 5).


Contrariamente, observa a Assembléia Legislativa sul-matogrossense que se cuidaria de erro da Autora que "confunde pensão com aposentadoria, pensão de graça com benefício previdenciário…"(fl. 36).

5. No direito brasileiro, em termos de institutos de direito administrativo e previdenciário, não se há baralhar subsídio, benefício, vantagem, provento e pensão, cada qual nomeando uma categoria de pagamentos devidos a agentes ou servidores perfeitamente identificados e para os quais se definem, no sistema, os regimes próprios.

Anote-se de imediato: nenhum deles significa privilégio. Esse, ainda que rotulado com o nome de qualquer daqueles, não se compatibiliza com o direito constitucional republicano em vigor.

Subsídio é a contraprestação pecuniária relativa a cargo público, instituída por lei para os agentes públicos constitucionalmente definidos (art. 37, incs. X e XI e art. 39, § 4º), pelo qual se fixa o pagamento único devido, mensalmente, pelo desempenho das funções estatuídas.

Benefício é o direito legalmente conferido a alguém e que se expressa em pecúnia, como um acréscimo ao patrimônio jurídico do agente público ou de cidadão que faça jus ao bem (assim é que se refere a um benefício acrescido em valor incluído na remuneração do agente público ou, por exemplo, a benefício previdenciário).

Vantagem é o direito conferido legalmente a alguém e que se expressa em proveito que pode ser representado, ou não, em pecúnia, sendo um plus ao que percebe o agente público como vencimento. Assim, férias, licenças, acréscimos remuneratórios decorrentes de condições pessoais, como o tempo de provimento e exercício das funções inerentes a um cargo ou a superior produtividade no seu desempenho, dentre outros critérios, podem ensejar a concessão legal de vantagens às quais faz jus o servidor público, nos casos e condições previstas legalmente.

Provento é o estipêndio percebido pelo aposentado – seja do setor público ou não – como referência pecuniária do que lhe é devido pelo sistema de seguridade social público ou privado.

Pensão é o valor pago aos dependentes após a morte do segurado, nas condições previstas em lei ou em contrato específico.

6. O pagamento definido como devido a ex-governador sul-matogrossense não configura qualquer daqueles institutos.

O que sob o rótulo normativo se apelidou subsídio, subsídio não é. No direito, como se sabe, o nome não transforma a realidade sob a qual ele se encobre. Também não se tem ali uma pensão de graça, como insiste em afirmar a Assembléia Legislativa sul-matogrossense, porque pensão, no sistema jurídico vigente, não se confunde com graça, somente podendo ocorrer nos casos e condições legalmente previstos.

O de que ali se cuida é de um pagamento estadual singular, instituído como uma graça com recursos públicos, conforme anotado pela Assembléia Legislativa, para ex-governador que atenda às exigências afirmadas nos §§ 1º a 3º do art. 29-A, introduzido na Constituição do Estado pela Emenda Constitucional n° 35/2006. Trata-se de uma regalia, uma dádiva, uma recompensa vitalícia, um proveito pecuniário de natureza permanente, instituído não como um benefício, mas como uma benesse ou um favor conferido a quem tenha se desinvestido do cargo de Governador do Estado, após ter desempenhado o mandato completo.

Conquanto mencionado no art. 29-A o termo subsídio, não se submete a criação daquela norma ao regime constitucional adotado para este instituto no art. 39, § 4º e no art. 37, incs. X e XI, da Constituição da República.

7. Nem se cogite, aqui, da possibilidade de o ente federado poder aproveitar o termo utilizado pela Constituição Federal com conteúdo específico para outra realidade. No direito positivo, sabe-se, uma coisa pode ser bem dita uma vez com o mesmo significado: o ordenamento jurídico não há de utilizar a mesma palavra para dois conteúdos; nem há de se valer de duas palavras para um mesmo conteúdo.

O que a Constituição da República dotou de conteúdo específico a ele há de se ater o constituinte derivado – o reformador ou o estadual – e o legislador infraconstitucional, a fim de que o Direito promova a compreensão, e não a confusão dos conceitos em desrespeito ao direito das pessoas de entenderem do que cuidam as normas do sistema segundo a qual vivem.


8. Na espécie vertente, reitere-se, o que se tem é um favor pecuniário vitalício, instituído para aquele que deixou de ser agente político estadual pelo exaurimento do mandato de Governador de Estado.

9. Ainda assim, não tem razão, nesta parte, a Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul, tampouco a Advocacia-Geral da União, que pretende não se dever, no caso, considerar para fins de apreciação da constitucionalidade, ou não, das normas em causa o que dispõem os arts. 169, § 1º, incs. I e II, e 195, § 5º, da Constituição da República.

É que o art. 29-A não institui apenas o favor ao ex-Governador, mas, a partir do apelidado subsídio a ele concedido, também se institui a pensão ao cônjuge supérstite do ex-governador. É o que se tem no § 2º do art. 29-A, pelo qual se introduz pensão garantida ao cônjuge supérstite, ou seja, não se tem apenas a criação do denominado subsídio atribuível a ex-governador, mas também a pensão que dele deriva.

Embora não tenha embasamento constitucional ou legal o quanto instituído como graça remuneratória mensal e vitalícia em favor de ex-Governador de Estado e a pensão ao seu cônjuge supérstite pela Assembléia sul-matogrossense, há de se examinar se a benesse pecuniária criada teria fundamento constitucional sob outro título e, ainda, se atenderia ao que dispõe o sistema jurídico vigente sobre gastos públicos. É que pelo favor instituído se acresce o custeio a ser assumido pelo ente estadual após a extinção do mandato do favorecido.

Pagamento estatal sem trabalho do agente tem conotação ou coloração de provento, pagamento devido em razão de aposentadoria, ainda que sem as causas e condições legais para tanto previstas.

Mas é certo que a graça instituída, no caso ora cuidado, tem os mesmos efeitos do instituto da aposentadoria, conquanto aqui não se o tenha dotado desse título, ou dessa forma, tampouco se tendo atendido à fundamentação constitucional própria para essa figura. Mas é gasto da rubrica de pessoal a ser aperfeiçoado pelo Estado-Membro. Logo, para que pudesse ser feito, se pudesse ter sido instituído, haveria de atender, sim, o que dispõem os arts. 169, § 1º, incs. I e II, e 195, § 5º, da Constituição da República, especialmente porque além do subsídio foi instituído também a pensão ao cônjuge supérstite do ex-Governador. Segundo o primeiro:

"Art. 169 – A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.

§ 1º A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas: (Renumerado do parágrafo único, pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) <http://www.planalto.gov.br/>

I – se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) <http://www.planalto.gov.br/>

II – se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) <http://www.planalto.gov.br/>"

Por sua vez, o art. 195, § 5º, da Constituição reza que "nenhum benefício ou serviço de seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total."


A circunstância de ser apelidado de graça pela Assembléia Legislativa sul-matogrossense não faz com que a aquele dispêndio não tenha de ser custeado pelos cofres públicos e, para tanto, inclua-se na rubrica gastos com pessoal e que a sua concessão não tenha de atentar às fontes do custeio a serem asseguradas para que não se tenha o desbaratamento das contas públicas, constitucionalmente vedada. Quem pudesse conceder uma graça pecuniária, poderia tantas outras fazê-lo, como, de resto, enfatiza a própria Assembléia Legislativa em suas informações (fl. 42).

Nem se considere válida a assertiva daquele órgão legislador no sentido de que seria "desnecessário maiores comentários sobre o assunto" porque "diz a boa técnica legislativa não traz ‘fonte de custeio’ já que esse assunto está reservado à legislação infraconstitucional. Ademais, há no orçamento geral do Estado, rubrica própria capaz de sustentar a disposição adotada. Assim foi, é e será" (fl. 44).

A Constituição brasileira de 1988 obriga sejam observadas por todos – incluídos os constituintes estaduais – normas relativas a condições para definição de gastos públicos com pessoal. O seu descumprimento não foi, nem é e nem será juridicamente aceitável.

A Constituição do Brasil impõe o contrário do alegado pela Assembléia. E como na lição de Marshall, de dois séculos atrás, aqui em reprodução de Ruy Barbosa, "Ou havemos de admitir que a Constituição anula qualquer medida legislativa, que a contrarie, ou anuir em que a legislatura possa alterar por medidas ordinárias a Constituição. Não há contestar o dilema.. Ou a Constituição é uma lei superior, soberana, irreformável por meios comuns; ou se nivela com os atos da legislação usual e, como estes, é reformável ao sabor da legislatura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo contrário à Constituição, não será lei; se é verdadeira a segunda, então as Constituições escritas são absurdos esforços do povo, por limitar um poder de sua natureza ilimitável. Ora, com certeza, todos os que têm formulado Constituições escritas, sempre o fizeram com o intuito de assentar a lei fundamental e suprema da nação; e, conseguintemente, a teoria de tais governos deve ser que qualquer ato da legislatura, ofensivo à Constituição, é nulo" (BARBOSA, Ruy – Comentários à Constituição Federal Brasileira. São Paulo: Saraiva e Cia., 1932, vol. I, p. 9).

Assim, na esteira daquele entendimento firmado e reafirmado em dois séculos de prática constitucional, o que dispõe a Constituição há de ser obedecido para que a criação legislativa infraconstitucional seja válida. A desobediência constitucional importa em invalidade da norma criada, que, por isso mesmo, lei não pode ser considerada.

O princípio constitucional republicano e as normas do art. 29-A e seus parágrafos do ADCGT da Constituição de Mato Grosso do Sul

10. "Não há como confundir benefício previdenciário com benefício da graça e que é justamente o que trata a EC 35/06. Por esse benefício da graça, o Estado externa o seu reconhecimento a quem de alguma forma ele entende haver contribuído com o seu crescimento, sua consolidação, sua projeção, seu desenvolvimento. Esse reconhecimento pode ser traduzido em forma de um diploma ou uma medalha ou, ainda, como no caso, uma retribuição pecuniária. Ora, a cingir-se o Estado ao que querem os Autores está, daqui em diante, vedado que ele (Estado) externe o seu reconhecimento, de forma pecuniária a, por ex., famoso artista que tanto contribuiu para difusão do seu nome e que hoje, por via das circunstâncias, encontra-se sem condições de promover a própria sobrevivência…", afirma a Assembléia Legislativa de Mato Grosso do Sul(fl. 42 – grifos nossos).

Nessa passagem, a Assembléia sul-matogrossense vislumbra a razão jurídica que ao caso se impõe: não pode mesmo o ente estadual fazer o que bem quiser, a quem bem quiser, com o dinheiro sobre cujo uso ela não pode querer, ela não tem querer, só tem dever. E esse dever em relação ao uso dos recursos públicos haverá de ser cumprido em estrita conformidade com o que disponha a Constituição e a legislação que se lhe segue.

Tudo o que assim não seja e que pretenda órgão público, incluído o legislativo, afronta a Constituição, em seu art. 1º, na opção constituinte pela República.


11. A forma republicana de governo desdobra-se em princípios que se dão a cumprimento obrigatório, tais como o da igualdade (com exclusão de privilégios), o da impessoalidade e o da moralidade pública, dentre outros.

12. De se enfatizar, ainda uma vez, ser próprio da República a transitoriedade dos mandatos e dos mandatários, pelo que o regime jurídico que afirma os seus direitos, deveres e responsabilidades tem sede constitucional.

O regime constitucional dos agentes políticos – categoria de que faz parte o governador de Estado – põe-se em termos taxativos, não comportando ampliação. E tanto não se dá porque a) quem foi e tenha deixado de ser titular do cargo político provido por eleição não integra mais a categoria contemplada, pois a titularidade do cargo é previamente fixada no tempo, conforme a duração do mandato; b) os direitos dos agentes políticos são afirmados constitucionalmente.

A contraprestação pecuniária a eles devida é definida, no sistema vigente, como subsídio (art. 39, § 4º e art. 37, incs. X e XI), sendo esse cunhado, exclusivamente, na forma definida na norma constitucional nacional, não comportando alargamento.

O subsídio, como lembrado acima, é categoria remuneratória, quer dizer, é pagamento pelo desempenho de cargo público. Quem não mais desempenha o cargo público não pode persistir a percebê-lo. Há casos, contudo, constitucionalmente previstos, nos quais deve o Estado ao ex-agente aposentadoria, conforme a situação juridicamente prevista.

No caso ora apreciado, contudo, é a Assembléia Legislativa sul-matogrossense que se apressa a esclarecer que não se dá situação de aposentadoria ou de benefício previdenciário, porque não há base constitucional para a sua definição pelo só exercício de quatro anos de mandato de Governador de Estado, para o que a Constituição não afirma aquele direito.

Portanto, o que se tem é uma situação singular em que se afirmou uma graça, consoante expressa aquele órgão legislativo.

A questão constitucional que se põe, então, é exatamente se poderia o constituinte estadual criar categoria nova de gastos públicos em favor de ex-agentes políticos. Mais ainda: se tal categoria de graça remuneratória vitalícia, paralela à aposentadoria ou pensão, poderia ser concebida validamente pelo constituinte estadual. De se enfatizar que a transferência do pagamento ao cônjuge supérstite de quem tenha sido governador do Estado tem natureza de pensão, sem qualquer dúvida.

13. A Constituição da República estabelece serem "todos… iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…"(art. 5º). Este, que é o princípio mais vezes repetido no texto constitucional de 1988, expressa-se em matéria previdenciária ao preceituar o art. 201 que

"§ 1º. É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 47, de 2005 <http://www.planalto.gov.br/>"

A benesse instituída pela Assembléia sul-matogrossense em favor de ex-Governador daquele Estado e como pensão devida ao cônjuge supérstite desiguala não apenas os cidadãos, que se submetem ao regime geral da previdência, como também os que provêem cargos públicos de provimento transitório por eleição ou por comissionamento. Entre os primeiros inclui-se o de Governador de Estado, que, entretanto, não é o único que ocupa cargo público por provimento não efetivo. Vice-Governador, Secretário de Estado e os cargos providos por mandato (Deputados Estaduais, por exemplo) e dirigentes de órgãos e entidades administrativos estaduais provêem cargos que são desempenhados por um período previamente fixado.

Não se cogite possa, numa República, desigualar todos os casos iguais em sua condição fática ou funcional segundo o querer do legislador, como pretende fazer crer a Assembléia Legislativa sul-matogrossense.


Como ensina João Barbalho, "não há, perante a lei republicana, grandes nem pequenos, senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem fracos, porque a todos irmana e nivela o direito. Não existem privilégios de raça, casta ou classe, nem distinções quanto às vantagens e ônus instituídos pelo regime constitucional. E a desigualdade proveniente de condições de fortuna e de posição social não têm que influir nas relações entre o indivíduo e a autoridade pública em qualquer de seus ramos. A lei, a administração, a justiça serão iguais para todos. E a desigualdade, além de injusta e injurídica, é impolítica. Em que fundamento se faria repousar uma organização política, dando mais direitos, mais garantias, mais vantagens, a uns do que a outros membros da mesma comunhão? Não seria n´um princípio de direito. A ausência desse princípio cria uma situação irritante, de desgosto, de animadversão, de hostilidade contra os favorecidos, contra os privilegiados. Outrora, os povos a suportavam e era mantida pela ignorância e fraqueza dos prejudicados; mas hoje que, à luz da civilização, os povos vão conhecendo os que valem, pela consciência de seus direitos, o privilégio lhes é uma afronta e provocação, constituindo reação e perigo para a ordem estabelecida. Finalmente, de todas as formas de governo é a República a mais própria para o domínio da igualdade, a única compatível com ela. …A igualdade repele o privilégio, seja pessoal, seja de família, de classe ou de corporação. Nas monarquias ‘os títulos e honras, quando bem distribuídos, além de servirem de recompensas nacionais, servem também de adornos e de solidez à grande pirâmide em cujo cimo está colocado o trono…’. É do que absolutamente não necessita a República. E lhes são tais coisas essencialmente contrárias, desde que envolvem ou acarretam quaisquer regalias, vantagens e isenções; nela, conforme proclama o preâmbulo da Lei n. 277 F, de 22 de março de 1890, ‘cada cidadão deve contentar-se com a satisfação íntima de ter cumprido o seu dever e com a consideração pública que daí lhe deve provir" (BARBALHO, João – Constituição Federal Brasileiro – comentário. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia., Editores, 1924, ps. 407/8).

14. A Assembléia Legislativa sul-matogrossense assevera que poderia instituir a benesse que entendesse e destiná-lo a quem escolhesse. O que fez relativamente a ex-Governador poderia ser feito para "contemplar com uma pensão, descendente de destacada figura que, em vida, prestou relevantes serviços à comunidade e que, hodiernamente, não tem como manter a própria sobrevivência", ou, ainda, "dotar um estudante, ou um atleta, de uma pensão para a continuidade de suas atividades…"(fl. 42).

Destoa a afirmativa assim feita de tudo o que prevalece, atualmente, em termos de destinação dos recursos públicos no sistema jurídico brasileiro.

15. Além de desigualar anti-republicanamente, também não poderia o constituinte estadual fazer o que fez e o que alega que ainda mais poderia fazer, em face do que dispõe o art. 37, caput, da Constituição da República, especialmente quanto aos princípios da impessoalidade e da moralidade.

16. Pelo princípio da impessoalidade, expresso no caput do art. 37, da Constituição da República, impõe-se a vedação de concessão de favores, regalias ou proveitos segundo a condição pessoal do beneficiado. Como disse em outra oportunidade, "o princípio constitucional da impessoalidade administrativa tem como objetivo a neutralidade da atividade pública, fixando como única diretriz jurídica válida para os comportamentos estatais o interesse público. A impessoalidade no trato da coisa pública garante exatamente esta qualidade da res gerida pelo Estado: a sua condição de ser pública, de todos, patrimônio de todos, voltada à concretização do bem de todos e não de grupos ou de algumas pessoas. … traduz-se (o princípio da impessoalidade) na ausência de marcas pessoais e particulares correspondentes ao administrador que, em determinado momento, esteja no exercício da atividade administrativa, tornando-a, assim, afeiçoada a seu modelo, pensamento ou vontade" (Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1993, p. 147).

O que a Constituição expõe como princípio da Administração Pública, em seu art. 37, caput (e que, de resto, é repetido no art. 25 da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul) impõe-se, como é óbvio, para o legislador em face da forma republicana de governo, que não possibilita ao legislador personalizar o que não é condição personalista e, o que é mais, com recursos públicos.


A graça concedida pela norma do art. 29-A e seus parágrafos, do Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição sul-matogrossense com a norma da Emenda n. 35/2006, afronta, manifestamente, o princípio da impessoalidade, porque dota um cidadão, que foi e tenha deixado de ser agente público, pelo exaurimento do mandato de Governador do Estado, de condição excepcional, privilegiada, que não se compadece com aquela imposição constitucional.

17. Também obriga a todos, na forma republicana de governo, o princípio da moralidade pública. Ao direito do cidadão ao governo ético impõe-se ao juiz, ao administrador e ao legislador o dever da moralidade pública, que há de perpassar e informar todos os seus atos.

Desde a Antiguidade se observa, consoante ensina, dentre outros, Gustav Radbruch que uma lei que contravenha os princípios básicos da moralidade não é direito, ainda que formalmente válida (In Princípios Constitucionais da Administração Pública, p. 181).

O conteúdo do princípio da moralidade põe-se no sentido de ser a norma ou o comportamento administrativo tendente a realizar interesse público específico, objetivamente determinado.

No caso em apreço, não há interesse público sequer alegado, porque a explicação oferecida para a adoção da medida é que se teria decidido premiar quem tenha exercido o cargo de Governador do Estado, em mandato integralmente cumprido, com uma graça remuneratória vitalícia, mensalmente paga com recursos públicos. O conteúdo ético da despesa a ser assumida pelos cidadãos não é posta sequer como referência, apenas afirmando a Assembléia Legislativa sul-matogrossense, em suas informações, que "por esse benefício da graça, o Estado externa o seu reconhecimento a quem, de alguma forma, ele entende haver contribuído com o seu crescimento, sua consolidação, sua projeção, seu desenvolvimento" (fl. 42).

O conteúdo de ética pública para o gasto estipulado como forma de agraciar pessoas, que não mais fazem parte dos quadros do Estado (mas que um dia o fizeram na condição de agente público), não é demonstrado na espécie. Também por isso a norma apreciada revela-se incompatível com os princípios constitucionalmente definidos.

O princípio constitucional federativo e as normas do art. 29-A e seus parágrafos do ADCGT da Constituição de Mato Grosso do Sul

18. A Assembléia Legislativa alonga-se nas informações enfatizando o princípio federativo como autorizador da providência legal adotada, a partir da análise do quanto prevalecia na vigência da Emenda n. 1/1969 (art. 184): "Art. 184. Cessada a investidura no cargo de Presidente da República, quem o tiver exercido, em caráter permanente, fará jus, a título de representação, desde que não tenha sofrido suspensão dos direitos políticos, a um subsídio mensal e vitalício igual ao vencimento do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal."

19. Duas observações impõem-se: a primeira é que não foi aproveitada norma com aquele conteúdo pelo constituinte de 1987/88, a embasar idênticas medidas nos sistemas estaduais; a segunda é que a expressão ali utilizada – subsídio – não tinha, naquele texto, o conteúdo que passou a ter a partir da Emenda Constitucional n. 19/1998.

Também é curioso anotar que o texto adotado pelo constituinte reformador sul-matogrossense de 2006 acolhe quase que literalmente o texto da norma do art. 184 da Emenda Constitucional n. 1/69, como se aquela ainda não tivesse decaído há quase dezenove anos:

Texto do art. 184 da EC n. 1/69 Texto do art. 29-A do ADCGT da Constituição de Mato Grosso do Sul

"Art. 184. Cessada a investidura no cargo de Presidente da República, quem o tiver exercido, em caráter permanente, fará jus, a título de representação, desde que não tenha sofrido suspensão dos direitos políticos, a um subsídio mensal e vitalício igual ao vencimento do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal." "Art. 29-A. Cessada a investidura no cargo de Governador do Estado, quem o tiver exercido em caráter permanente, fará jus a um subsídio, mensal e vitalício, igual ao percebido pelo chefe do Poder Executivo."


Observa a Assembléia Legislativa que "a EC 1/69 à Constituição de 1967 instituiu tal benefício a ex-Presidente da República, não determinando – e tampouco vedando – aos Estados membros a adoção da medida, relativamente aos seus governadores. … Gozando, então, de autonomia para editar normas e desde que tais normas não atentassem contra a Constituição, o Estado integrante da Federação poderia livremente dispor sobre o assunto, seguindo, ou não, a disposição relativamente ao benefício. Atualmente … a Constituição é silente sobre o assunto, sendo que o seu texto, no entanto, garante a autonomia do Estado, ao dispor, em seu art. 25 e seu § 1º que ‘…os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. § 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas nesta Constituição’. … a atual Constituição não reprisou o dispositivo constante da Constituição anterior que cuidava da questão. Ao mesmo tempo, não vedou, aos Estados a adoção dessa medida"(fl. 39).

Dá-se que o fundamento do constituinte estadual a partir de 5 de outubro de 1988 é a Constituição promulgada naquele dia. Não mais a Emenda Constitucional n° 1, de 1969. Parece que disso se houve em esquecimento o digno órgão legislativo tanto que aproveitou até mesmo a redação adotada naquela Emenda, graças a Deus e aos brasileiros, decaída há quase duas décadas.

20. O princípio federativo confere aos entes federados competência privativa, que explicita o espaço constitucional de autonomia de cada qual. Todavia, o texto normativo do art. 25, § 1º, da Constituição brasileira, patenteia que a competência autônoma estadual limita-se pelos princípios da Constituição Federal.

E alguns deles – como antes assinalado (como o da igualdade jurídica, o da moralidade pública, o da responsabilidade dos gastos públicos e o de sua definição quando da fixação ou aumento de gastos com pessoal segundo identificação de fonte de custeio, máxime em se cuidando para quem deixou de fazer parte do pessoal ativo da entidade) – são de obediência obrigatória. No caso em pauta, foram eles descumpridos, como antes ponderado.

Leciona Raul Machado Horta que "A Constituição de 1988 contém em sua estrutura um tipo de norma vinculada diretamente à organização da forma federal de Estado normas centrais. Estas normas ultrapassam a organização da União, para alcançar a estruturação constitucional do Estado-Membro, em fase ulterior, que dependerá do poder constituinte do Estado, titular da organização constitucional do Estado Federado. O volume, maior ou menor, das normas centrais, é variável no tempo e sua maior ou menor intensidade estará relacionada com o tipo de federalismo consagrado na Constituição Federal. As normas centrais da Constituição Federal distribuem-se em quatro grupos: – princípios desta Constituição; – princípios constitucionais; – normas de competência deferidas aos Estados; e – normas de preordenação. O novo texto constitucional concebeu o federalismo de equilíbrio. A Constituição de 1988 adota a técnica da autonomia controlada, sem incorrer nos excessos centralizadores da Constituição de 1967. O art. 25 do novo texto subordina o poder de organização constitucional dos Estados aos ‘princípios desta Constituição’…Sob o ângulo da incidência no poder de organização do Estado, localizamos na Constituição Federal de 1988 o seguinte conjunto de normas centrais…IV – normas de preordenação: … remuneração dos Deputados estaduais…eleição, mandato e posse do Governador e do Vice-Governador… perda do mandato do Governador e do Prefeito… regras sobre a administração pública…"(HORTA, Raul Machado – Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, ps. 233/4, 389, 393).

Na esteira da lição de Raul Machado Horta, pode-se adotar a compreensão de que as normas constitucionais nacionais informadoras do regime constitucional dos agentes políticos, como os Governadores de Estado, e gastos como este da "graça remuneratória" dos ex-Governadores, submetem os legisladores estaduais, incluídos entre esses os constituintes decorrentes.

As normas de princípios da Administração Pública, por igual, sujeitam o constituinte estadual, vinculando-o, de modo incontornável.

O modelo de federalismo de equilíbrio adotado no Brasil acolhe o princípio da simetria, segundo o qual há uma principiologia a harmonizar as estruturas e regras que formam o sistema nacional e os sistemas estaduais, de tal modo que não destoam os modelos adotados no plano nacional e nos segmentos federados em suas linhas magnas. O equilíbrio federativo, neste quadro, vem com a unidade que se realiza na diversidade congregada e harmoniosa. Não vale mais o temor de Ruy Barbosa, logo após a promulgação da Constituição de 1891: "ontem, de federação não tínhamos nada; hoje, não há federação que nos baste". O nosso temor de não ter qualquer federação não pode ser adversada pelo desapego aos princípios constitucionais a serem absorvidos nos sistemas estaduais.


Imaginar, assim, que o que deixou de ser posto no ordenamento constitucional nacional, relativamente a ex-Presidente da República, deveu-se a opção que pode ser subestimada no plano estadual, em nome da autonomia federativa, não pode prevalecer quando o fundamento da não concessão da graça está em sua incompatibilidade com os princípios constitucionais vigentes. Esses, como reiterado, informam a estrutura e a organização do poder em qualquer plano em que se dê a sua manifestação.

O princípio da autonomia dos Estados-membros da Federação entende-se, harmoniza-se e conforma-se aos princípios constitucionais, de atendimento obrigatório por todos os entes federados.

21. De se acentuar que o tema relativo ao pagamento de subsídio, provento, benefício, pensão ou que nome se dê ao pagamento mensal e vitalício a ex-titular do cargo de Chefe do Poder Executivo não se passou sem discussão no Congresso Constituinte de 1987/88. Ao contrário, a sua subtração do sistema foi objeto de debates constituintes relativamente aos titulares do Poder Executivo (neste sentido, a proposta apresentada na Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, apresentada em 29.5.1987 como emenda ao art. 399 do Projeto de Constituição, e que não foi, então, aproveitada ao argumento de que não era próprio da matéria cuidada pela Comissão). Tal circunstância, contudo, desimporta para os fins de desate da questão posta a exame na presente ação e a sua referência, aqui, põe-se apenas a título de esclarecimento do cuidado constituinte com o tema.

22. Informa a Assembléia Legislativa de Mato Grosso do Sul que a ausência de norma constitucional específica não pareceu a alguns Estados-membros constituir vedação para dispor sobre a matéria em suas respectivas Constituições.

A circunstância de entendimento como esse ter conduzido à geração eventual daquelas normas não poderia servir de convalidação aos vícios apontados no caso em foco.

23. Como a estrutura do poder, a Administração Pública é federativa e os princípios que a ela se impõem valem, como se tem no caput do art. 37, da Constituição da República, para qualquer dos poderes, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Note-se que não apenas os princípios, mas algumas das regras que os explicitam e que se positivam nos incisos e parágrafos do art. 37 da Constituição do Brasil sujeitam os entes federados.

24. Desta natureza são as normas que concernem aos pagamentos públicos referentes a cargos, funções e empregos públicos, que se conectam aos princípios da responsabilidade de gastos públicos, aos critérios do controle de sua regularidade, da responsabilidade fiscal com contas públicas, à identidade das fontes e formas de pagamentos devidos, segundo a lei, em cada situação prevista.

Entre as normas relativas à matéria se tem as proibitivas, dentre as quais – de acatamento obrigatório por todos os entes estatais – a que veda equiparação ou vinculação de quaisquer espécies remuneratórias (art. 37, inc. XIII, da Constituição) e que, segundo a Autora, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República teria sido inobservada.

O constituinte reformador de 1998 (Emenda Constitucional n. 19) substituiu a palavra originariamente adotada no inc. XIII do art. 37, e que se referia à proibição de equiparação ou vinculação de vencimento (que se refere tão somente ao valor de base da remuneração) pela expressão quaisquer espécies remuneratórias, de modo a fazer ali conter qualquer pagamento a pessoal, a qualquer título, feito pelos entes estatais.

Afirma a Autora, em peroração aproveitada pela Advocacia-Geral da União e pela Procuradoria-Geral da República, que aquela regra proibitiva teria sido desobedecida nas normas questionadas, porque a definição do valor a ser pago, a título de graça, a ex-Governador do Estado sul-matogrossense teria estabelecido equiparação ao valor devido pelo exercício do cargo.

Equiparação, disse em outra ocasião, "é uma igualação horizontal de vencimentos ou de remuneração, determinada mediante comparação que conduz à conclusão sobre a analogia possível, juridicamente, de cargos, funções ou empregos ou das atribuições que lhes são inerentes. Os cargos, funções ou empregos são desiguais, mas, pela via comparativa, chega-se ao resultado jurídico de que os vencimentos que lhes são inerentes devem ser igualados. Equipara-se o que não é igual, mas que pode ser, juridicamente, tratado como se o fora, promovendo-se, então, a igualação dos vencimentos ou da remuneração que por conta deles deve ser atribuída a um servidor" (Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, P. 331).


Na espécie em apreço, não se tem equiparação, porque não se tem sequer cargos, funções ou empregos desiguais igualados pela norma criada. A graça concedida nas normas em pauta tem como titular do favor alguém que já não ocupa cargo público. O pagamento não corresponde, portanto, a cargo, nem a contraprestação pecuniária pelo seu desempenho.

O que se poderia acolher no caso seria a ocorrência de vinculação. Por essa se tem a formação de elo jurídico em razão do qual aumentado valor de vencimento devido legalmente pelo exercício de determinado cargo, todos os valores referentes a outros cargos àquele vinculados são imediatamente acrescidos na mesma condição, proporção e paridade. Pela vinculação impõe-se uma "relação vertical de moto contínuo no que concerne ao fator pecuniário retributivo. … A vinculação estabelece uma verticalidade do regime remuneratório, determinada, em geral, pela hierarquia dos cargos das carreiras estatais" (idem, ibidem).

Parece, portanto, que, ainda que se forma um tanto imprópria (porque não há cargo de ex-Governador), o de que se poderia cogitar, aqui, seria de transgressão à regra proibitiva da vinculação, conquanto não se tenham cargos para as situações previstas. As normas contidas no art. 29-A e seus §§ do Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição sul-matogrossense não criaram cargos cuja referência remuneratória fosse equiparada, mas o valor a ser conferido ao beneficiário seria vinculado ou identificado pelo que percebe o Governador do Estado como subsídio. Concedeu-se um favor pecuniário com valor vinculado à referência do devido ao cargo de Governador. Fica, assim, vinculado o valor a ser conferido ao favorecido ao quanto percebe, a título de subsídio, pelo Governador do Estado. Certo é, contudo, que o ex-Governador não ocupa cargo, menos ainda compõe os quadros do Estado, sequer como inativo, como pretende a Assembléia Legislativa, uma vez que, segundo as suas informações, não se cuidaria de benefício previdenciário, mas apenas uma graça com recursos públicos que ela entendeu criar.

O descumprimento da norma constitucional do art. 37, inc. XIII, pelas normas questionadas estaria caracterizada com a singularidade da situação posta.

25. Finalmente, merece uma palavra a questão dos gastos públicos com ex-agentes políticos, como se tem na espécie, resolvida, no caso sul-matogrossense para o ex-Governador na forma agora examinada.

Os cargos públicos – políticos ou administrativos – providos de forma não efetiva, por eleição e mandato ou por comissionamento, não deixam em desvalia dos direitos constitucionais previdenciários os que os titularizam. Os seus titulares e ex-titulares submetem-se ao regime geral da previdência social (art. 40, § 13 – "Ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração bem como de outro cargo temporário ou de emprego público, aplica-se o regime geral de previdência social.")

Conquanto não assentada, de forma cabal, pelo Supremo Tribunal a exata compreensão da norma prevista no art. 40, § 13, da Constituição da República, é certo que se afirmou tendência, na Casa, após a Emenda Constitucional n. 20/1998, que entre os cargos de natureza temporária previstos naquela norma estão os de natureza política providos por mandato e mediante eleição de seus ocupantes.

Os precedentes deste Supremo Tribunal na matéria não podem ser desconsiderados, como pretendido pela Assembléia Legislativa sul-matogrossense, que anota que "trata-se de medida liminar (a que se deferiu na ADIn. 1.461-Amapá), suscetível de ser revista quando do julgamento do mérito. … parecer da PGR não obriga essa Corte (referindo-se ao Parecer encaminhado naquela ação)…com o respeito que todos devem ter pela Procuradoria Geral da República ela não julga, não decide e, isto sim, opina sobre o tema que lhe é proposto…"(fl. 45).

Em pelo menos três ações diretas de inconstitucionalidade o Supremo Tribunal foi convocado para se manifestar sobre matéria análoga a que aqui se põe a exame. E, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.461-Amapá, Relator o Ministro Maurício Corrêa, o Plenário do Supremo Tribunal decidiu, em 26.6.1996, que:

"EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA LIMINAR. EX-GOVERNADOR DE ESTADO. SUBSÍDIO MENSAL E VITALÍCIO A TÍTULO DE REPRESENTAÇÃO. EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 003, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1995, DO ESTADO DO AMAPÁ. 1. Normas estaduais que instituíram subsídio mensal e vitalício a título de representação para Governador de Estado e Prefeito Municipal, após cessada a investidura no respectivo cargo, apenas foram acolhidas pelo Judiciário quando vigente a norma-padrão no âmbito federal. 2. Não é, contudo, o que se verifica no momento, em face de inexistir parâmetro federal correspondente, suscetível de ser reproduzido em Constituição de Estado-Membro. 3. O Constituinte de 88 não alçou esse tema a nível constitucional. 4. Medida liminar deferida."

Não se firmou, ainda, jurisprudência no Supremo Tribunal quanto à legislação infraconstitucional referente aos dispositivos legais que tratam da submissão dos ex-agentes políticos ao regime geral de previdência social e à sua condição de segurados naquele sistema não após o advento da nova legislação infraconstitucional, elaborada na esteira das regras constitucionais instituídas a partir da Emenda Constitucional n. 20/1998, que, conforme antes acentuado, modificaram as normas do art. 40 da Constituição brasileira.

E estas matérias tocam apenas a latere o quanto cuidado e concluído na presente ação.

Por tudo quanto exposto, voto no sentido de julgar procedente a presente ação para declarar inconstitucional o art. 29-A e seus parágrafos do Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul.

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