Limites do direito

Entrevista: José Francisco Siqueira Neto, advogado trabalhista

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15 de abril de 2007, 0h00

José Francisco Siqueira Neto - por SpaccaSpacca" data-GUID="jose_francisco_siqueira_neto.jpeg">A recente paralisação dos controladores de vôo e a iminente greve dos servidores da Polícia Federal reacenderam o debate sobre o direito de greve dos servidores públicos. Os fatos demonstram que a falta de uma lei que fixe os limites para o exercício desse direito dá margem a abusos. “Quem trabalha em determinadas atividades precisa ter requisitos especiais para declarar a greve”, afirma o advogado trabalhista José Francisco Siqueira Neto.

Para o especialista, a greve não pode ameaçar a segurança, a saúde e o bem-estar da sociedade. O Brasil tem de enfrentar o problema de uma vez por todas. Regulamentar o tema significaria “entrar na órbita da normalidade do ordenamento jurídico”, afirma.

De acordo com Siqueira Neto, o fato de a greve ser um direito constitucionalmente tutelado não dá ao grevista “a garantia de atropelar o ordenamento jurídico todo”. Por outro lado, não se pode tratar o grevista como um criminoso. “Exatamente por isso é preciso ter um meio jurídico adequado para tratar a questão.”

O caso do recente motim dos controladores de vôo é ainda mais difícil de enquadrar: “militares, pela Constituição, são proibidos de fazer greve. Mas, neste caso, eles prestam um serviço civil. Entramos novamente no problema da falta de regulamentação. É preciso definir o enquadramento”.

Uma das causas da falta de discussão sobre o tema, para o advogado, é que historicamente o Brasil passou de uma situação em que a greve era um delito e se transformou em um direito não abusivo. “Não nos demos conta de que, em um Estado Democrático, é preciso regulamentar o direito”, afirma, ao criticar a morosidade do Congresso Nacional.

Siqueira Neto também defende que a reforma sindical seja feita antes da trabalhista. Para ele, se o sistema sindical não for alterado, de nada adiantará escrever novas leis trabalhistas. Os sindicatos não têm representatividade e, sem isso, torna difícil delimitar a legitimidade para representar quem quer que seja, diz.

José Francisco Siqueira Neto, 47 anos, é coordenador de pós-graduação de Direito na Universidade Mackenzie e advogado da Siqueira Neto Associados. No mestrado defendido pela PUC-SP e no doutorado pela USP, Siqueira Neto tratou da questão sindical.

O interesse pelo ramo surgiu logo no início da carreira, quando atuou como advogado no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, de 1983 a 1991 — época que a entidade era um dos centros mais importantes do sindicalismo no Brasil, logo após a passagem de Luiz Inácio Lula da Silva por sua presidência. Foi, por isso, o advogado da CUT durante a sua construção.

Também participaram da entrevista os jornalistas Douglas Miura, Priscyla Costa e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Existem limites para a greve no serviço público?

José Francisco Siqueira Neto — Os limites estão intimamente ligados à forma pela qual se regula o direito de greve. Em todos os lugares do mundo há uma regulação específica, mas aqui não. Isso causa distorções. Uma das melhores leis é a italiana. A Constituição da Itália foi feita depois da Segunda Guerra Mundial, mas a questão da greve só foi regulamentada 40 anos depois, porque nos anos 1980 o sindicalismo italiano entrou em uma divergência profunda. Mas, como foi feita a regulamentação? Sem histeria.

ConJur — A falta de regulamentação no Brasil faz da greve no funcionalismo um problema.

Siqueira Neto — A greve se torna um problema quando começa a comprometer em um nível acima do tolerado. Quando compromete a segurança, a saúde e o bem-estar da sociedade. O limite é o bom senso. No caso brasileiro, nós precisamos enfrentar esse tema definitivamente. Temos uma tradição de regulamentação da greve em uma perspectiva muito absoluta, no sentido de transformar rapidamente o exercício do direito em um delito. Não nos demos conta de que, em um Estado Democrático, é preciso regulamentar o direito. Quem trabalha em determinadas atividades, precisa ter requisitos especiais para declarar a greve.

ConJur — E quando as regras são descumpridas?

Siqueira Neto — Você prende as pessoas? É evidente que não. Por isso é preciso ter um meio jurídico adequado para essas ocasiões.

ConJur — Como seria a regulamentação?

Siqueira Neto — Sou contra listar os serviços que podem ou não fazer greve, porque a tecnologia muda muito. A doutrina pode citar algumas coisas mais essenciais, mas temos que ter uma norma que seja aberta suficiente para permitir que Judiciário atue, sem reprimir, mas no sentido de acompanhar a evolução da sociedade.

ConJur — Onde se encaixariam os controladores de vôo?


Siqueira Neto — O que me parece grave no caso dos controladores de vôo é que eles são militares.

ConJur — Mas prestam serviço civil.

Siqueira Neto — Tecnicamente, sim. Militares, pela Constituição, são proibidos de fazer greve. Mas, neste caso, eles prestam um serviço civil. Entramos novamente no problema da falta de regulamentação. É preciso definir o enquadramento. Hoje, a tendência nos tribunais regionais, que julgam as greves, é fixar que 30% da categoria esteja trabalhando. Não sei se é um número adequado.

ConJur — E como resolver isso?

Siqueira Neto — Voltamos ao bom senso. No anteprojeto de reforma sindical, eu sugeri a busca do consenso na questão da greve. Quando não há acordo, o empregador tem que ter a prerrogativa de decidir. Se o empregador abusou e foi caracterizada prática anti-sindical, o tribunal apura e pune. Ou seja, pode haver mecanismos no organismo jurídico para resolver isso. Mas há muita histeria em torno de pouca coisa e não se resolve nada. E quando não há regras, há espaço para alternativas autoritárias absolutamente contrárias aos princípios do Estado Democrático de Direito.

ConJur — Por exemplo?

Siqueira Neto — Afirmam: “prende, segura, proíbe”. Não pode ser assim. O direito de greve é um direito constitucionalmente tutelado. Não é o único, mas é. E aí entram as regras. Existe uma gama de outros direitos, que se chama na doutrina de fronteiras.

ConJur — Qual a fronteira do direito de greve?

Siqueira Neto — É a hora em que ele se choca com outro direito da mesma hierarquia. Quando isso acontece, é preciso apurar o caso concreto. Por isso, ao invés de fazer um marco regulatório persecutório, preocupado apenas com a ilegalidade, temos de fazer um marco compreendendo que o direito de greve e as paralisações são fatos. O exercício do direito constitucionalmente tutelado não lhe dá a garantia de atropelar o ordenamento jurídico todo. Com essa lógica, podemos regular com muita facilidade, sem perseguir. E não teremos mais situações alarmantes como aquela em que o sujeito que está preso no aeroporto esperando para levar um órgão que precisava ser transplantado.

ConJur — Quem responde pelos prejuízos causados pela greve dos controladores?

Siqueira Neto — O problema é saber sobre que prejuízo. Porque há prejuízos que são suportáveis do ponto de vista do jurídico. O direito de greve permite ao prestador de serviço parar a atividade de trabalho e, consequentemente, causar prejuízo ao empregador. É por isso que é considerada na doutrina como a última razão. E o ordenamento comporta esse direito de equilíbrio. O momento em que estamos vivendo é singular para que se possa definitivamente regulamentar o tema, não começar uma perseguição aos controladores.

ConJur — Uma mudança sem sobressaltos.

Siqueira Neto — Sim, tranqüila. Parece-me que esse é um sentimento do homem comum porque ninguém agüenta mais uma situação caótica sem solução. Você pratica determinados atos e qual a conseqüência? O desconforto não está amparado pelo ordenamento jurídico. É evidente que quando há greve de condutor de veículos em São Paulo incomoda a todos nós. Em uma sociedade democrática, o sindicato discute isso com os cidadãos.

ConJur — No julgamento de dois Mandados de Injunção, o Supremo Tribunal Federal sinalizou que vai mandar aplicar as mesmas regras a que estão sujeitos trabalhadores da iniciativa privada ao funcionalismo, em caso de greve. Isso é bom?

Siqueira Neto — A regulamentação organiza o processo. Significa entrar na órbita da normalidade do ordenamento jurídico.

ConJur — É benéfico para o jogo democrático.

Siqueira Neto — Sim. A Constituição reconheceu o direito de greve dos servidores públicos, mas ele está condicionado a uma lei infraconstitucional que nunca veio. É uma coisa anacrônica do ponto de vista sistemático. A questão da regulamentação do direito de greve implica uma outra discussão que muito pouca gente dá relevância, que é saber quais são as organizações sindicais do setor público. De acordo com o artigo 9º da Constituição, o titular do direito de greve é o trabalhador. Mas, invariavelmente, é exercido pelas entidades sindicais. Às vezes, há superposição de representações. Outro problema que pouca gente percebe é que muitas greves são deliberadas por servidores aposentados.

ConJur — Porque aquilo que o servidor da ativa recebe, repercute no ganho dos inativos.

Siqueira Neto — É uma discussão interessante. O importante nesse processo é a questão do equilíbrio. O aposentado inativo tem interesse no jogo do ativo. De certa forma, é correto. Mas, por outro lado, ele não responde pelas conseqüências geradas pela greve. Ele não perde pontos e recebe a mesma coisa.


ConJur — Quer dizer, a greve começa e nem todos da categoria querem entrar.

Siqueira Neto — Em muitos casos, a minoria delibera e a maioria assume os riscos. É importante estabelecer como é o desenvolvimento da greve. Se você tem uma deliberação que está dividida, ganha muito mais relevo a questão da persuasão. A famosa “boca de urna” da greve. Com o marco regulador, vai haver sempre uma autoridade judicial apta a examinar o caso. E é importante estabelecer um clima de desenvolvimento no exercício da greve, que não destrua o meio de comunicação normal entre trabalhadores e empregadores, os espaços de negociação. Tanto para serviço público, quanto para as empresas privadas.

ConJur — Para criar espaços autênticos de negociação não é preciso fazer a reforma sindical?

Siqueira Neto — O ideal é fazer a reforma sindical e criar uma lei de relações de trabalho da administração pública que observe os preceitos da Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece métodos apropriados de discussões, considerando as especificidades dessa área. O público não se rege pelos princípios jurídicos da administração particular. O governante pode fazer aquilo que a lei permite. O particular pode fazer tudo aquilo que a lei não proíbe.

ConJur — Em que pé está a reforma sindical?

Siqueira Neto — Nada de concreto foi feito. Pode ser que volte, mas ela não está na pauta governista. O Brasil é um país que sempre me surpreende. Ainda mais agora, com a nova configuração do Ministério do Trabalho. Já que vamos entrar em uma regulamentação muito específica do direito de greve do setor público, temos uma oportunidade de ouro de trabalharmos com uma cabeça voltada para os princípios republicanos. Uma reforma sindical melhora o ambiente, reordena os espaços dos atores. Temos que perguntar: esse modelo que nós temos em sucessão desde 1930 é o mais adequado em uma sociedade democrática e pluralista? É preciso ter representações sindicais fortes e representativas do ponto de vista financeiro e político. Só se tem isso quando se consegue assegurar uma ampla autonomia.

ConJur — Por que a reforma não entra na pauta?

Siqueira Neto — Há resistência do movimento sindical. Hoje temos mais de 16 mil entidades. Cada uma com uma diretoria, com um poder de cobrar contribuição anual de trabalhadores e de regular as condições de trabalho. É preciso reformatar todo o padrão trabalhista.

ConJur — Mudando a legislação?

Siqueira Neto — Quando eu falo em reformatar, não é acabar com o Direito do Trabalho. É adequar o padrão a um novo modo de convivência para a relação de trabalho. O Direito do Trabalho é o maior programa de inclusão social de que se tem notícia. Graças a ele, nós incluímos metade da população brasileira na sociedade. A questão é mudar a forma de funcionamento, preservando direitos. Getúlio Vargas criou primeiro a base sindical e depois arrumou a base trabalhista. Não dá para mexer na base trabalhista sem adequar a base sindical. Parece óbvio, mas é difícil superar politicamente. Setores conservadores que sempre almejaram destruir o padrão trabalhista de proteção começam a inventar fórmulas mágicas, como a questão do negociado sobre o legislado. Isso é um atalho. Dizem: “fica tudo como está, mas quem negociar retira o padrão de proteção”. Do ponto de vista doutrinário é sofrível e não subsiste. E do ponto político operacional, é uma tragédia.

ConJur — Por onde começar a reforma trabalhista? Diminuição de encargos ou revisão da legislação?

Siqueira Neto — O problema da diminuição de encargos tem que ser analisado em um contexto mais genérico. É fácil falar: “vamos acabar com o Fundo de Garantia”. Aí explode o sistema do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Todo o saneamento básico do Brasil sai do FAT. É preciso olhar o conjunto da obra, que passa pela política econômica e tributária. A reforma trabalhista tem dois componentes básicos fundamentais. Um é a questão da democracia, porque não se pode pensar em um marco regulatório do trabalho dissociado da sociedade. É impossível ter de passar a maior parte do seu tempo no trabalho e a democracia só existir da porta para fora. Agregado a isso, estão os direitos humanos fundamentais na relação de trabalho.

ConJur — Quais são esses direitos?

Siqueira Neto — Os problemas da igualdade, da não discriminação, da privacidade, dos limites do poder. É preciso discutir os limites da vigília, os aspectos relacionados à própria dinâmica do trabalho e os dados do empregado. Tendemos a transformar esse debate do trabalho exclusivamente focado na questão econômica. Mas não pode ser assim. É preciso haver um ponto de intersecção nesse diálogo.


ConJur — Como adequar a realidade econômica e não desnaturar o direito?

Siqueira Neto — É perfeitamente possível adequar normas. Por exemplo, critérios de remuneração flexíveis. Pode haver uma perspectiva de avaliar se isso está ou não desnaturando a remuneração, do ponto de vista da proteção. Se estiver, é nulo. Tem que se fazer uma regra que equilibre essas possibilidades e que faça com que o Direito do Trabalho seja de mais fácil exercício. Mas, no Brasil, o empregador não é obrigado, por força da estrutura, a firmar compromisso nenhum com o empregado. Quando o empresário poderia ser obrigado a dialogar, a fazer negociação coletiva, ele entra na Justiça do Trabalho. O sistema leva você a ter uma solução pontual, isolada e sem muito compromisso.

ConJur — Mas o problema é estrutural ou cultural?

Siqueira Neto — Os dois. Um bom exemplo foi o que aconteceu quando o Brasil ratificou a Convenção 158 da OIT, que proibia a despedida imotivada. Todo mundo passou a achar que ninguém mais poderia demitir. Mas, se for observada a norma, a única exigência é a de que o empregador dialogue com o sindicato. Mas, por não ter o diálogo, as partes atuam e depois deixam que o Judiciário interprete.

ConJur — Mas as leis atuais, que datam de 1940, são suficientes para que a Justiça faça essa interpretação?

Siqueira Neto — As relações estão mais diluídas e densas, e o padrão atual é o da década 1930. Mas, a saída, contudo, não é destruir, mas reorganizar pela reforma sindical. É necessário ter uma organização sindical que seja centralizada. Nos Estados Unidos os sindicatos negociam por empresa, mas são organizados de maneira federativa. Quando se tem a predominância da negociação por empresa, pode observar que tem uma centralidade.

ConJur — As centrais poderiam fazer esse papel no Brasil?

Siqueira Neto — Teoricamente sim. Mas na prática, não sei se a forma como estão organizadas permite isso. As centrais são sustentadas por sindicatos corporativos. Se um sindicatozinho lá de baixo não joga o dinheiro, ela não se alimenta aqui em cima. Ela está na mão daquele sindicatozinho. Não tem política uniformizadora, mas de varejo. A decisão de uma central acaba se transformando em um mosaico fragmentado. Muitas vezes não se sabe o que estão defendendo.

ConJur — Como a Justiça do Trabalho pode se preparar para as novas relações de trabalho?

Siqueira Neto — Essas “novas” relações são muito interessantes. Muitas vezes há camuflagem de vínculo empregatício. Quando uma pessoa abre uma Pessoa Jurídica, que é uma empresa individual, ele é um empregado. É fraude. Mas há situações em que, para o prestador de serviço, é conveniente ser PJ porque ele tem uma independência maior em relação ao poder do empregador. É a chamada para-subordinação.

ConJur — Como nos casos de trabalho freelancer. Como poderia ser caracterizada essa relação hoje? De subordinação ou de para-subordinação?

Siqueira Neto — Os trabalhos de freelancer têm características de para-subordinação. Há algumas profissões em que o horário de trabalho não existe. Mas, existem outras que estão muito ligadas ao processo produtivo de natureza clássica e industrial, horário de entrada e de saída. Neste caso, é mais complicado. No entanto, aqueles em que a própria natureza foge dessa amarração, é preciso olhar com lupa mesmo. O bom do Direito do Trabalho é que ele tem uma fórmula mágica: faz a conjugação dos fatos e chega a uma determinada conclusão. Se ela não se encaixa no modelo de proteção, ela é nula.

ConJur — A Justiça do Trabalho está pronta para reconhecer esse tipo de situação nova?

Siqueira Neto — Não está pronta para reconhecer e também não é justo que se exija isso dela. Quando se muda a competência, isto envolve uma série de coisas da administração pública ou das questões sindicais. É preciso haver preparo para isso.

ConJur — Preparar a legislação ou preparar a formação dos juízes?

Siqueira Neto — Tudo. A formação dos juizes, dos advogados. A mentalidade. Em países democráticos, os grandes sindicatos de empregadores e de trabalhadores discutem a agenda. Nós estamos tentando diminuir o nível de conflito. Temos de ter a percepção do que acontece no Brasil real. A grande empresa sofre como todos, mas ela tem um grande escritório de advocacia. Profissionais atualizados que vão defendê-la. É diferente do empregador pequeno: muitas vezes não se sabe quem é o empregado e quem é o empregador na audiência. Também não podemos ter a pressão de uma fiscalização temerária. O efeito da fiscalização deve ser pedagógico.

ConJur — Como fazer as mudanças?

Siqueira Neto — Precisamos desarmar o espírito. Criar uma regulação que seja adequada aos novos tempos. O governo pode propor uma agenda no sentido da reforma trabalhista. Há tempo e espaço para fazer isso.

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