Justiça a desejar

Júri é apenas para pessoas mortais, sem foro privilegiado

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12 de abril de 2007, 16h52

A Constituição Federal de 1998, em seu artigo 1º, parágrafo 1º, é clara ao reconhecer que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, nos termos desta Carta. Mas isso infelizmente não se materializa, em especial no Poder Judiciário, onde não há eleição para os cargos e sim concurso (artigo 37, inciso II, da CF).

No Brasil, o Poder Judiciário, que interfere diretamente, quando acionado, nas decisões dos outros Poderes representativos, não se submete às urnas, ao voto popular. Seus membros, em regra, são oriundos da “nata” da sociedade elitista, que desconhece, na prática, às principais dificuldades diárias enfrentadas pela massa, ou seja, pela maioria esmagadora da nossa população.

Os dados sobre a “cara” magistratura brasileira foram revelados pela Pesquisa 2005 feita pela Associação dos Magistrados Brasileiros — AMB, sob a brilhante coordenação da renomada professora Maria Tereza Sadek. Além de praticamente inexistir representatividade popular no Judiciário, o povo, pessoas comuns, deve se submeter a ele, por força de lei. No entanto, os magistrados que julgam os comuns não estão submetidos ao julgo Tribunal Popular, seja qual for os crimes que venham praticar.

O Júri é apenas para pessoas mortais, sem foro privilegiado. Nasce daí, também, a luta pela ampliação da competência dessa milenar instituição. É realmente uma situação surrealista: o povo, detentor de todo o poder, conforme frisamos na abertura, não pode julgar àquelas autoridades que dizem representá-lo, note-se: presidente e vice-presidente da República, deputados federais, senadores, ministros do Supremo Tribunal Federal, procurador-geral da república, ministros de Estados, comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, membros dos Tribunais Superiores, ministros dos Tribunais de Contas da União, os chefes de missão diplomática de caráter permanente. “Vide” artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c”, da Carta da República.

E não é só. Ainda no âmbito federal, essa mesma Lei Maior (ver artigo 105, inciso I, alínea “a”) também privilegia o foro para: governadores dos estados e Distrito Federal, desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e Distrito Federal, membros dos Tribunais de Contas dos Estados e Distrito Federal, os juízes dos Tribunais Regionais Federais, (1) dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União, que oficiem perante tribunais.

Já os juízes federais, da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, bem como os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral, são julgados pelos Tribunais Regionais Federais, artigo 108, inciso I, alínea “a”, da CF.

Por sua vez, as Constituições dos Estados, de igual forma, privilegia o foro para: vice-governador, prefeitos, deputados estaduais, juízes dos Tribunais de Justiça Militar, juízes de direito e substituto dos Tribunais de Justiça, membros dos Ministérios Públicos dos Estados, secretários estaduais, procurador-geral do Estado, defensor público geral, delegado geral da Polícia Civil, comandante-geral da Polícia Militar. Na Carta paulista, o foro privilegiado vem previsto no artigo 74, incisos I e II.

Vislumbra-se dessa modesta exposição de autoridades “imortais” — tidas como representantes do povo — que ao Júri só restou mesmo o julgamento de pessoas do seu meio ou do seu convívio. Ao povo somente é dado votar e contribuir muito, até com a própria vida, sem obter a contraprestação mínima e razoável.

É vergonhoso ver um esse cenário onde as principais autoridades do país se esquivam, literalmente, do julgamento pelo Tribunal Popular nos crimes comuns e de corrupção ou responsabilidade. Talvez seja por essa razão que muitos querem a supressão do Júri para que, jamais, exista qualquer possibilidade de se submeterem ao julgamento feito pelo povo.

Os doutores desavisados sustentam que a competência do Júri está restrita aos tipos penais dos artigos 121 a 127, do Código Penal, tendo em conta o disposto no artigo 5.º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da Carta da República. Assim, a competência do referido Tribunal ditada pela Constituição é “mínima”, de sorte que pode ser ela ampliada para que outros delitos venham ser julgados pelo Tribunal do Júri. Aliás, essa tormentosa questão — ampliação de competência — foi recentemente enfrentada em obra de fôlego deste mesmo articulista, (2) onde citamos, inclusive, projetos de lei com o fim de ampliar tal competência.

Quanto ao atendimento dos princípios da celeridade processual e economia processual, o Júri também os preenche, sobretudo pela “soberania dos veredictos”, a qual impede a reforma da decisão dos jurados pelo Tribunal de Justiça, mas possibilita que esta Corte de Justiça anule o julgamento para que outro seja realizado (artigo 593, do Código de Processo Penal) ou, ainda, readeque a pena aplicada.


Entretanto, a ampliação da competência está, sobremaneira, fundada na participatividade efetiva e aplicação direita da Justiça, o que não é um sonho ou uma utopia para a população como eventualmente se possa cogitar, mas uma realidade. O Tribunal do Júri nesse aspecto, por exemplo, reflete o princípio democrático desejado pela Constituição da República, onde o povo deve dizer o direito, ou seja, aplica diretamente a Justiça ao caso em concreto.

Importante enfatizar, que o Tribunal Popular, no Brasil, é composto por sete cidadãos tirados do seio social, os quais, além de ecléticos, são de classes distintas (negro, pardo, amarelo e branco, homem e mulher, jovem e idoso), possuem condições financeiras variadas, assim como uma gama de conhecimento formada também, e especialmente, na experiência de vida.

Dizer que o povo não sabe julgar é desconhecer o próprio direito, positivo e natural, dado que para se fazer ou aplicar a justiça é preciso que se demonstre muito mais “consciência” do que “ciência”. E nem se diga que o Júri comete erros, por que os seus erros não são maiores do que aqueles praticados pelos juízes togados. Para se comprovar isso, basta acessar um “site” de busca e pesquisar “erro judiciário”.

O Júri, sim, possibilita a participação do povo, o qual representa de forma direita o Poder Judiciário. Não temos dúvida de que chegou o momento se ampliar a competência dessa milenar instituição para julgar mais tipos penais e os processos de responsabilidade civil estatal, sendo que atualmente ela está encarregada de julgar somente os crimes dolos contra a vida (homicídio, auxílio e instigação ao suicídio, aborto e infanticídio), infelizmente. É esse o melhor caminho para se atingir a democracia plena: o povo no poder. (3)

Vale assinalar, contudo, que a Justiça atual é implacável com quem é acusado de furtar um pacote de manteiga, xampus e coisas insignificantes, enquanto que, com pessoas acusadas de cometeram crimes tidos como hediondos e graves, age diferentemente, concedendo até liberdade provisória, por exemplo:

— O caso do promotor de justiça que é acusado de matar um e tentar matar outro no litoral paulista, em dezembro de 2004, por motivos banais;

— O caso da Suzana Richithofen, acusada de arquitetar a morte dos pais juntamente com outras pessoas, que obteve liberdade provisória, por muitas vezes negadas aos acusados de subtrair um pote de manteiga ou coisas de irrisório valor se comparado com o bem jurídico liberdade.

Em outras palavras, a Justiça da atualidade é severa ao extremo com os carentes de recursos financeiros, com os não brancos na maioria das situações, mas deixa muito a desejar em relação aos ricos, políticos e governantes, tanto que da corrupção política que assola ou assolou o país, denominada de “mensalão”, ninguém ainda foi preso ou condenando.

Não existem duas ou mais Justiça. Ela é uma só, de maneira que deve ser aplicada a todos, indistintamente. Se o promotor de justiça e a Suzana Richithofen, acima citados, foram beneficiados com a liberdade provisória em crimes hediondo e grave, qual a razão para negar-se esse mesmo benefício legal a quem furtou um pote de manteiga no valor de R$ 3,10 (fato esse notório e que chocou o país no mês de março de 2006).

Um país verdadeiramente democrático, a nosso pensar, não impede e nem restringe a participação popular na aplicação da Justiça, como vem ocorrendo. Esses atos ou intenções poderão resultar em um “golpe” contra a democracia. Para aqueles que não acreditam no Tribunal do Júri num Estado democrático, aconselhamos consultar à Constituição Americana, onde até o presidente se submete ao Tribunal Popular, exceto no caso do processo de “impeachment”. (4)

O Júri nos Estados Unidos é muito mais que uma tradição, é garantia para todos, indistintamente, isto é, até para as autoridades. Isso por que, lá não se admite que o agente público, acusado de um crime, tenha um privilégio que o cidadão comum, contribuinte, não tem. É a igualdade na sua mais perfeita plenitude. O Tribunal Júri é para todos.

Os americanos também não aceitam a idéia de que determinada autoridade, que venha subtrair recursos públicos ou atentar contra a vida de uma pessoa, seja julgada por um Tribunal especial, onde a influência política impera e tende a corromper, além de eventualmente direcionar o julgamento.

O Brasil, como é notório, importa muitas idéias e coisas dos americanos, porém o espírito democrático e republicano das instituições norte-americanas não interessa ao nosso modelo, isso na visão retrograda das dezenas de autoridades que gozam do maldito foro privilegiado (sinônimo de impunidade).


Aqueles que depõem contra a instituição do Júri não aceitam a real democracia, existente apenas no papel, por que sabem que o julgo popular é imperdoável, assim como os jurados são incomunicáveis e sua decisão é soberana. O Tribunal do povo pratica a autêntica Justiça. No atual quadro, afirmamos com segurança que todos acusados, sem foro privilegiado, têm preferência pelo Júri. Eles sabem que o juiz togado desconhece a realidade, ao passo que os jurados convivem com ela diariamente. O universo do magistrado é diverso do jurado.

Julgar as dezenas autoridades especificadas acima é um anseio de toda sociedade que por elas são representadas, mas, para tanto, é preciso aprovar leis (leis complementar, ordinário e emenda constitucional) que permitam isso, uma vez que o nosso regime jurídico exige o efetivo cumprimento do principio da legalidade. Mas, como modificar ordenamento legal — para que o Júri possa julgar políticos, magistrados, promotores, etc. — se centenas de agentes públicos ou políticos estão “pendurados” no foro privilegiado nos Tribunais Superiores e de Justiça?

Na realidade, nos parece que os sobreditos Tribunais se tornaram verdadeiras Varas Criminais, haja vista que nunca se viu tantos feitos envolvendo pessoas com o privilegio do foro.

Como visto, motivos para ampliarmos a competência — e não extinguir o Júri como se prega abertamente e sem qualquer fundamento — não faltam. Todavia, os interesses escusos das autoridades processadas dificultam isso, o que só o forte apelo popular organizado poderá devolver ao povo o que dele tem sido retirado, paulatinamente: o poder.


(1) Os Regimentos Internos dos TRFs, pasmem, denominam os seus Juízes de Desembargadores Federais, indo, portanto, muito além da Constituição Federal, o que é um absurdo. Outros cinco Tribunais Regionais do Trabalho (1.ª, 5.ª, 7.ª, 16.ª e 21.ª Região) também modificaram seus Regimentos Internos e hoje os seus membros são chamados de Desembargadores.

(2) Silva. Edson Pereira Belo da. “Tribunal do júri: ampliação de sua competência para julgar os crimes dolosos com evento morte”. São Paulo: Iglu Editora, 2006. 111p.

(3) JÚNIOR, Goffredo Telles. “O povo e o poder: o conselho do planejamento nacional”. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 110-116.

(4) Constituição Americana: 17 de setembro de 1787. Rio de Janeiro: Editora Espaço Jurídico, 2000. p. 31.

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