Condição especial

Direito de índio buscar FGTS não prescreve, decreta TST

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10 de abril de 2007, 15h45

Mesmo extrapolado o prazo para garantir seu direito, uma indígena trabalhadora de lavoura de cana-de-açúcar, na região de Dourados, em Mato Grosso do Sul, deverá receber integralmente o FGTS relativo aos 15 anos em que manteve contrato com a Energética Santa Helena. O direito foi reconhecido pela Subseção de Dissídios Individuais 2 do Tribunal Superior do Trabalho, que derrubou a prescrição de dois anos após a extinção do contrato de trabalho, prevista na Constituição. É a primeira vez que o tribunal analisa este tema relacionado aos índios.

A decisão unânime poderá abrir precedente para que outros índios — moradores da mesma região e que trabalharam por mais de duas décadas sem a proteção da Consolidação das Leis do Trabalho — procurem o Judiciário para ter reconhecido o vínculo empregatício além de receber as parcelas do FGTS que não foram cumpridas.

De acordo com o relator do processo, ministro José Simpliciano, a empresa se limita a alegar violação a Constituição, deixando de atacar o fundamento da sentença que afastou a prescrição e garantiu o FGTS não recebido. De acordo com o artigo 7º, inciso 29 da Constituição, que trata dos direitos dos trabalhadores rurais, a ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, deve ser proposta no limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho.

A sentença colocava que este dispositivo constitucional não pode ser aplicado à indígena, neste caso concreto, porque ela não tem o discernimento suficiente para entender a língua, os costumes e as normas legais do país.

“A demandante é dependente de forma absoluta do órgão tutor ou do Ministério Público para a propositura de toda e qualquer ação. Por isso, não se pode legitimamente a ela aplicar a prescrição prevista no artigo 7º, inciso XXIX do Texto Maior”, apontava a sentença.

A decisão de primeira instância dizia, ainda, que a indígena está inserida na regra da incapacidade absoluta, que pode decorrer da falta de discernimento necessário para prática “dos atos da vida civil”.

Abandono legal

Durante as décadas de 80 e 90, indígenas contratados para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar na região de Dourados (MS) prestaram serviços sem qualquer proteção trabalhista legal. Adriane Reis de Araújo, procuradora regional do trabalho que atua nestes casos, explica que, no final da década de 90, o Ministério Público do Trabalho começou a atuar conquistando contratos especiais, regulados pela CLT, para esses trabalhadores.

Ao mesmo tempo em que os indígenas regulavam sua situação atual de trabalho, começaram a procurar a Justiça do Trabalho, por meio do MPT, com reclamações trabalhistas pedindo vínculo empregatício e FGTS referentes aos antigos contratos de pelo menos 10 anos atrás. As sentenças foram favoráveis e afastaram a prescrição bienal reconhecendo que os índios não têm capacidade civil plena. Derrubadas em segunda instância, as decisões, agora reformadas, são contestadas no TST.

Leia a decisão

A C Ó R D Ã O

RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO RESCISÓRIA. PRESCRIÇÃO. FGTS E MULTA DE 40%. VIOLAÇÃO DO ART. 7º, XXIX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Não há como se acolher ação rescisória que não ataca o fundamento no qual se pautou a decisão rescindenda. In casu, a sentença rescindenda afastou a incidência da prescrição bienal inscrita no art. 7º, XXIX, da Constituição Federal, com fundamento no fato de a Reclamante ser indígena, o que, à luz da legislação especial e das Convenções Internacionais indicadas, a faz destinatária de regras especiais visando à proteção de sua condição, notadamente aquelas atinentes à capacidade. Sem embargo, a Autora, nas razões expendidas na inicial, limita-se a indicar, quanto à prescrição do FGTS, violação do artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal, deixando de atacar o fundamento adotado na sentença rescindenda para afastar a incidência, na hipótese, do referido dispositivo constitucional. Recurso Ordinário provido.

Vistos, relatados e discutidos estes autos do Recurso Ordinário em Ação Rescisória nº TST-ROAR-205/2004-000-24-00.6, em que é Recorrente MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO DA 24ª REGIÃO (REPRESENTANTE DE ROSEMEIRE SOUZA GONÇALVES) e são Recorridos ENERGÉTICA SANTA HELENA LTDA. e INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS.

ENERGÉTICA SANTA HELENA LTDA. ajuizou Ação Rescisória, com fundamento no artigo 485, incisos V e X, do Código de Processo Civil, em desfavor de ROSEMEIRE SOUZA GONÇALVES – INDÍGENA e INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, visando desconstituir sentença proferida pela 2ª Vara do Trabalho de Dourados – MS, proferida nos autos da Reclamação Trabalhista 01041/2003-022-24-00.0, que, declarando o vínculo empregatício, condenou a Reclamada, ora Autora, à obrigação de anotar a CTPS da Reclamante bem como ao pagamento do FGTS e multa de 40% e das contribuições previdenciárias (fls. 62/72).


Na petição inicial, a Autora, alegou, em suma, que houve ofensa aos artigos 5º, II, e 7º, III e XXIX, da Constituição Federal, haja vista que a sentença rescindenda, quanto à condenação no pagamento do FGTS, não observou os prazos prescricionais estabelecidos constitucionalmente e o fato de que o recolhimento do FGTS para ao trabalhadores rurais apenas se tornou obrigatório com a Lei 8.036/90, que entrou em vigor após o término do contrato de trabalho. Afirmou, outrossim, que houve erro de fato quando se admitiu data inexistente, no caso 20/12/99, como sendo a data do término do contrato de trabalho da Reclamante, enquanto é incontroverso nos autos que o término do contrato de trabalho ocorreu em 20/12/89. Prosseguiu argumentando, especificamente quanto às contribuições previdenciárias, que a sentença rescindenda não observou a decadência do direito, ofendendo, assim, a literalidade do art. 45 da Lei 8.212/91.

A Corte Regional julgou procedente o pedido de corte rescisório, considerando demonstradas as causas de rescindibilidade invocadas (fls. 211/221).

Dessa decisão, O Ministério Público do Trabalho, na qualidade de defensor dativo de Rosimeire Souza Gonçalves, recorre ordinariamente, sustentando que a sentença rescindenda, ao considerar a prescrição trintenária da pretensão ao recolhimento do FGTS, não violou a literalidade do art. 7º, XXIX, da Constituição Federal. Argumenta, ademais, que se trata de matéria controvertida no âmbito dos Tribunais e que a Autora utiliza a presente ação rescisória como sucedâneo de recurso.

Contra-razões não foram apresentadas, conforme certidão à fl. 281.

Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho.

É o relatório.

V O T O

1 – CONHECIMENTO

Atendidos os pressupostos de admissibilidade do Recurso Ordinário interposto, dele conheço.

2 – MÉRITO

ENERGÉTICA SANTA HELENA LTDA. ajuizou, conforme relatado, Ação Rescisória, com fundamento no artigo 485, incisos V e X, do Código de Processo Civil, em desfavor de ROSEMEIRE SOUZA GONÇALVES – INDÍGENA e INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, visando desconstituir sentença proferida pela 2ª Vara do Trabalho de Dourados – MS, proferida nos autos da Reclamação Trabalhista 01041/2003-022-24-00.0, que, declarando o vínculo empregatício, condenou a Reclamada, ora Autora, à obrigação de anotar a CTPS da Reclamante bem como ao pagamento do FGTS e multa de 40% e das contribuições previdenciárias.

Na petição inicial, a Autora, alega, em suma, que houve ofensa aos artigos 5º, II, e 7º, III e XXIX, da Constituição Federal, haja vista que a sentença rescindenda, quanto à condenação ao pagamento do FGTS, não observou os prazos prescricionais estabelecidos constitucionalmente e o fato de que o recolhimento do FGTS apenas se tornou obrigatório para os trabalhadores rurais com a Lei 8.036/90, que entrou em vigor após o término do contrato de trabalho. Afirma, outrossim, que houve erro de fato quando se admitiu data inexistente, no caso 20/12/99, como sendo a data do término do contrato de trabalho da Reclamante, enquanto é incontroverso nos autos que o término do contrato de trabalho ocorreu em 20/12/89. Prossegue argumentando, especificamente quanto às contribuições previdenciárias, que a sentença rescindenda não observou a decadência do direito, ofendendo, assim, a literalidade do art. 45 da Lei 8.212/91.

A Corte Regional julgou procedente o pedido de corte rescisório, considerando demonstradas as causas de rescindibilidade invocadas (fls. 211/221).

Dessa decisão, o Ministério Público do Trabalho, na qualidade de defensor dativo de Rosemeire Souza Gonçalves, recorre ordinariamente, sustentando que a sentença rescindenda, ao considerar a prescrição trintenária da pretensão ao recolhimento do FGTS, não violou a literalidade dos arts. 5º, II e 7º, XXIX, da Constituição Federal. Argumenta, ademais, que se trata de matéria controvertida no âmbito dos Tribunais e que a Autora utiliza a presente ação rescisória como sucedâneo de recurso.

Tendo em vista que o Ministério Público do Trabalho, em suas razões recursais, limita-se a impugnar a rescisão do julgado apenas em relação à prescrição do FGTS, em observância ao princípio da devolutividade, impõe-se o reexame da pretensão rescindente apenas quanto a tal matéria. Quanto à prescrição da pretensão relativa ao FGTS e multa de 40%, a sentença rescindenda consignou que:

“Argüiu a acionada a prescrição do direito de ação fundada na norma do art. 7º da Lei 6.001/73 combinada com o disposto Par. Ùnico, do art. 4º do Código Civil – Lei 10.406/02.

Reiteradamente tenho afirmado, e aqui reitero, que o trabalhador indígena ‘não integrado’ ou ‘em vias de integração’, mas sem o necessário discernimento para entender de forma completa as práticas e os modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional — é esse o caso da demandante que mal desenha o nome —, nos termos do Par. Único do art. 4º do Código Civil combinado com o disposto nos art. 4º e 7º da Lei 6.001/73 encontra-se inserido na regra da incapacidade absoluta, já que esta não decorre apenas da idade, de enfermidade ou deficiência mental, mas também da falta de discernimento necessário para prática dos atos da vida civil.


A demandante é dependente de forma absoluta do órgão tutor ou do Ministério Público para a propositura de toda e qualquer ação. Por isso, não se pode legitimamente a ela aplicar a prescrição prevista no art. 7º, inciso XXIX do Texto Maior, na medida em que embora tenha legitimidade para propositura da ação não dispõe de capacidade civil para, sem a assistência dos órgãos tutores designados pela própria Constituição, ajuizá-la no exíguo prazo de dois anos contando do rompimento do contrato, de modo a evitar a prescrição, máxime quando nem mesmo o contrato até agora foi reconhecido pela empregadora.

(…)

Nessa visão, não vejo como aplicar à demandante o mesmo tratamento dado ao trabalhador plenamente capaz, na forma pretendido pela acionada, pena de violar-se não apenas o princípio da tutela efetiva ao trabalhador indígena, previsto na Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, mas também agredir ao princípio da não discriminação estampado tanto no Texto Maior como na Convenção 111 da mesma Organização Internacional do Trabalho, na medida em que emprestar-se-ia tratamento igual a situações completamente diferentes, o que agride de forma absoluta ao princípio da isonomia sob o aspecto substancial.

(…)

Nesse entendimento, me parece perfeitamente aceitável e legítimo estender ao demandante, trabalhador rural indígena, sem o discernimento suficiente para entender a língua, os costumes e as normas legais dos demais setores da comunhão nacional, a proteção contida no art. 198, inciso I, do Código Civil — Lei 10.406/02 —, até mesmo em homenagem ao princípio da aplicação da norma mais benéfica ao hipossuficiente, o que aliás, recomendam os incisos III e IV do art. 1º e o próprio Preâmbulo do Texto Supremo” (fls. 63/65).

Da leitura da decisão rescindenda, verifica-se que restou afastada a incidência da prescrição bienal inscrita no art. 7º, XXIX, da Constituição Federal, com fundamento no fato de a Reclamante ser indígena, o que, à luz da legislação especial e das Convenções Internacionais indicadas, a faz destinatária de regras especiais visando a proteção de sua condição, notadamente àquelas atinentes à capacidade.

Sem embargo, a Autora, nas razões expendidas na inicial, limita-se a indicar, quanto à prescrição do FGTS, violação do artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal, deixando de atacar o fundamento adotado na sentença rescindenda para afastar a incidência, na hipótese, do referido dispositivo constitucional. Com efeito, não há como acolher ação rescisória que não ataca o fundamento no qual se pautou a decisão rescindenda.

Portanto, dou provimento ao Recurso Ordinário, ainda que por outro fundamento, para, reformando o acórdão recorrido, julgar improcedente o pedido relativo à prescrição do FGTS. Custas processuais pela Autora, no importe de R$ 60,00 (sessenta reais), calculadas sobre o valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) atribuído à causa na inicial.

ISTO POSTO

ACORDAM os Ministros da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, dar provimento ao Recurso Ordinário para, reformando o acórdão recorrido, julgar improcedente o pedido relativo à prescrição do FGTS. Custas processuais pela Autora, no importe de R$ 60,00 (sessenta reais), calculadas sobre o valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) atribuído à causa na inicial.

Brasília, 10 de abril de 2007.

JOSÉ SIMPLICIANO FONTES DE F. FERNANDES

Ministro-Relator

Ciente:

Representante do Ministério Público do Trabalho

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