Conhecimento jurídico

O senso comum e sentido comum teórico dos juristas

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9 de abril de 2007, 10h48

“Nós pedimos com insistência: não digam nunca: isso é natural. Diante dos acontecimentos de cada dia. Numa época em que reina a confusão. Em que corre sangue, em que se ordena a desordem, em que o arbitrário tem força de lei, em que a humanidade se desumaniza. Não digam nunca: isso é natural.” Bertold Brecht.

A expressão senso comum adquiriu significações diferentes no decorrer histórico, primeiramente, Aristóteles cunha o conceito como a capacidade geral de sentir, nos escritores clássicos latinos tinha o significado de costume, modo comum de viver ou falar, em Kant senso comum é “o princípio do gosto”, da faculdade de formar juízos sobre os objetos de sentimento em geral.[1]

KANT assim explicita o senso comum:

Tal princípio só poderia ser considerado senso comum, que é essencialmente diferente da inteligência comum, que às vezes também é chamado de senso comum (sensus communis), pois esta não julga conforme o sentimento, mas conforme conceitos, embora se trate em geral de conceitos obscuramente representados [2].

Hodiernamente a expressão é cunhada com um significado análogo, caracterizado por um pensamento coletivo massificado, essencialmente técnico, não teórico e acrítico, que compõe as linguagens cotidianas comuns, pelas quais os membros da sociedade intercomunicam-se.

Em observação às características demonstradas, nota-se que o senso comum se desenvolve a partir de um aspecto do ser já convalescido nas relações de interação entre os homens, em razão da sua composição lingüístico-comunicativa imanentemente acrítica, ou seja, há uma reciprocidade entre o ser e sua relação social e no desenvolvimento dessa relação se estratifica o senso comum.

Podemos estabelecer, portanto que, o senso comum tem como características ser assistemático, por não possuir nexo com outros conhecimentos, por não perfazer uma sistematização; ambíguo, pois, traz sobre uma mesma explicação às vezes realidades diferentes; é também eminentemente prático, ou seja, não perceptivo, não produz teorias explicativas e por fim, casual, de maneira que o adquirimos à medida que as circunstancias o vão ditando no limite dos casos isolados[3].

Neste entendimento Agostinho Ramalho Marques Neto trata o senso comum no sentido de “partindo da presunção que os fatos não mentem, o senso comum postula que o conhecimento verdadeiro é totalmente adequado ao seu objeto, não contendo senão uma reprodução fiel dos fatos…é, por assim dizer, de um consenso de opiniões, que o conhecimento comum retira sua veracidade.” [4]

Para uma desmistificação desta inércia social cumulada pelo senso comum, uma vez que faz parte de um consenso de opiniões acrítico, utilizamos o primeiro parágrafo da primeira meditação de Descartes no livro Meditações que assim rege:

Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências [5].

Pois bem, a partir deste elucidamento, que a revelação traz em distinção à inércia de emancipação social ocasionado pelo senso comum, só pode ocorrer a quebra desta inércia pela re-velação, des-velamento do ser[6], concluímos assim, que necessário se faz uma conduta de crítica constante no desenvolvimento do conhecimento, havendo uma reciprocidade e alteridade nas relações entre os homens ocasionando assim a possibilidade da construção de um pensamento numa constante crítica não passiva e acomodativa.


Finalizando não há que se dizer que o senso comum seja falso, às vezes é verdadeiro, falta a ele, entretanto, suficiente sistematização racional bem como um posicionamento crítico perante o ato mesmo de conhecer. [7]

Suprimindo a referência do senso comum ao campo jurídico, ou seja, a possibilidade do desenvolvimento do senso comum no aspecto jurídico-científico, Luiz Alberto Warat se refere ao termo “sentido comum teórico” como um quadro de referência imaginário que através da verdade organiza a vida social no interior de um paradoxo, em suas palavras, “em nome da razão madura se consegue a infantilização dos atores sociais. Eles não conseguem mais pensar por si, pensam a partir da mediação que o Estado exerce sobre a produção, circulação e recepção de todos os discursos de verdade.” [8]

Na verdade está é a primeira caracterização abarcada pelo autor sendo tecidas outras duas de considerável observação.

A segunda se refere a “um complexo de significações pré-discursivas que compõem, simultânea e articuladamente, o imaginário gnoseológico das ciências humanas e de seu contorno epistemológico” [9], neste sentido procura elucidar que o sentido comum teórico com múltiplas instâncias significativas não pode ser discursivamente apreendido, devendo, portanto ser derivado, ultrapassando suas marcas discursivas, ou seja, precisa que se opere sobre os discursos da verdade das ciências humanas.

A terceira e última forma que se perfaz relevante quanto ao sentido comum teórico, é como conjunto de elementos integrantes de uma doxa ilusoriamente “elucidada”, como uma racionalidade jurídica ocidental que se manifesta subjacentemente aos discursos do direito [10].

Ao tratar sob a racionalidade subjacente devemos nos voltar ao entendimento do funcionamento e efeitos do discurso jurídico empregado no social, tais efeitos num aspecto de pré-compreensividade transformam o sentido comum teórico em ratificador do próprio discurso, se torna como elucida Warat “o lugar secreto” das verdades jurídicas. [11]

O que procura-se demonstrar através da presente exposição é que o sentido comum teórico do direito o direciona a uma irrealidade do cotidiano social, sem condições de captar as necessidades sociais e que se vislumbrado fosse tal aspecto, a partir de uma auto-correção (crítica), se poderia fazer brotar o conhecimento real sócio-jurídico, ou seja, através de tal atitude a aplicação de Direito poderia se fazer de uma maneira mais próxima da realidade social em virtude da possibilidade de um melhor absorvimento histórico e científico.

Finaliza assim WARAT:

Estamos diante de um mito importante que precisamos desvelar-descobrir expondo à crítica a própria noção de verdade. Neste sentido teríamos que demonstrar uma presença ética, ideológica e política que fundamenta uma vontade de verdade fora de todo o controle epistemológico. Dito de outro modo, que existe uma doxa no coração da episteme: o sentido comum teórico. [12]

Bibliografia.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

DESCARTES, René. Meditações in Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.


KANT, Immanuel. Primeira introdução à crítica do juízo in Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2001.

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II : a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.


[1] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 872 e 873.

[2] KANT, Immanuel. Primeira introdução à crítica do juízo in Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

[3] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2001.

[4] Ibidem.

[5] DESCARTES, René. Meditações in Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

[6] Neste sentido nos aproximamos do posicionamento filosófico de Heidegger, só não adentramos em questões mais específicas, pois estaríamos fugindo do tema proposto, vez que, o importante num primeiro momento o sentido apenas, do despertar crítico e não promover uma crítica na filosofia do sujeito de um sentido metafísico para um pós-metafísico.

[7] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

[8] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II : a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

[9] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

[10] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

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