Propriedade assegurada

Cooperativa deve calcular antes preço total de imóvel

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8 de abril de 2007, 0h00

Ao adquirir um imóvel, o consumidor deve saber o preço que pagará por ele. A empreendedora não pode incluir no contrato um pagamento adicional, com base no preço final da obra, já que o valor, em geral, é estipulado e seu controle não é realizado pelos compradores ou seus representantes.

Com esse entendimento, o juiz da 6ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, Gustavo Coube de Carvalho, condenou a Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo (Bancoop) a regularizar a situação do Condomínio Residencial Vila Mariana.

O juiz anulou a cláusula contratual que previa, em redação muito confusa, o pagamento de um adicional, chamado pela cooperativa de apuração final. Ao analisar o contrato, ele atentou para o fato de não existir referência ao valor adicional no Plano Geral e no Quadro Resumo de pagamentos. Para ele, “ocultar parcela de preço em cláusula afastada da que define o próprio preço, com redação confusa a ponto de ser incompreensível, contraria frontalmente o dever da boa-fé contratual”.

Carvalho lembra que, em contratos de compra e venda em geral e, sobretudo, nos de adesão, “tanto a coisa adquirida quanto o preço devem ser claramente determinados”. Além disso, o artigo 489 do Código Civil não permite a fixação do preço por apenas uma das partes. Assim, a lei impediria a cobrança da apuração final mesmo se ela estivesse prevista no contrato de forma clara e objetiva.

Ao anular a cláusula, o juiz determinou que a cooperativa entregue os termos de quitação aos moradores que já pagaram todas as parcelas estabelecidas claramente no contrato. Bancoop também terá que registrar devidamente o imóvel, já que a situação irregular compromete os proprietários. Por não possuir prova da titularidade, eles podem ser “impedidos, por exemplo, de negociar suas unidades ou obter empréstimo com garantia real”.

A Bancoop alegou que, por ser cooperativa, não tinha a obrigação de regularizar o imóvel antes de negociar as unidades. Entretanto, a Lei de Incorporações Imobiliárias não prevê a isenção. “Aceitar a tese da ré, portanto, seria imunizar as cooperativas do cumprimento da lei”, afirmou Carvalho.

Segundo o advogado que atuou pela Associação de Adquirentes de Apartamentos do Condomínio Residencial Vila Mariana, Valter Picazio Júnior, a sentença “abre importante precedente para milhares de ações que existem no Judiciário, objetivando os registros da incorporação imobiliária, bem como a anulação de cobrança de resíduos absurdos, os quais chegam, em algumas oportunidades a 100% do valor contratado”.

Leia a decisão

Comarca de São Paulo

6ª Vara Cível do Foro Central

Processo 117850/2005 (principal)

Processo 118750/2006 (incidental)

Vistos.

A autora Associação dos Adquirentes de Apartamentos do Condomínio Residencial Vila Mariana pede a declaração da nulidade da cláusula que prevê apuração final de saldo devedor nos contratos de participação para aquisição de unidades habitacionais firmados por seus associados com a ré Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo – BANCOOP, bem como a condenação da ré a tomar as providências necessárias à regularização do empreendimento junto ao registro de imóveis, para que, ao final, seja reconhecida a quitação dos contratos e determinada a adjudicação compulsória dos imóveis.

Pede, ainda, a condenação da ré ao pagamento da multa de 50% sobre o valor recebido em razão dos contratos, nos termos da Lei de Incorporações Imobiliárias.

Alega que a ré incorporou e comercializou 128 unidades habitacionais, entregando os dois edifícios em 2002 e 2003. Até o momento, no entanto, os adquirentes não obtiveram o título de seus apartamentos, embora a maior parte dos contratos já tenha sido quitada.

Em busca de esclarecimentos para o fato, descobriu-se que a incorporação sequer havia sido averbada o registro de imóveis, impedindo que os adquirentes resguardem seus respectivos direitos de propriedade.

A cláusula que prevê apuração final de saldo devedor nos contratos, por sua vez, é utilizada pela ré para negar aos adquirentes seus respectivos termos de quitação, sem os quais ela não está obrigada a outorgar as escrituras.

A petição inicial foi aditada a fls.1240/1244. O pedido de antecipação de tutela foi parcialmente deferido pela r. decisão de fls.1235/1239, a qual concedeu à ré o prazo de sessenta dias, contados da intimação, para a regularização do empreendimento no registro de imóveis, sob pena de multa diária de R$5.000,00.

Tal decisão foi objeto de agravo de instrumento, processado sem efeito suspensivo, e foi mantida pelo E. TJSP, que negou provimento ao recurso (fls.2391/2396). A ré contestou alegando, preliminarmente, ilegitimidade ativa da autora, que não tem autorização de seus associados para ingressar em juízo, nem tem como finalidade a defesa dos interesses de consumo de seus associados.


No mérito, sustenta que, por ser cooperativa, não tinha a obrigação de registrar previamente a incorporação do empreendimento habitacional. A documentação para a averbação do empreendimento encontra-se em análise pelo 14º Registro de Imóveis da Capital, e o cálculo do custo final do empreendimento, a ser rateado entre os adquirentes, também está sendo providenciado (fls.1305/1327).

Réplica a fls.1575/1591.

A autora ajuizou medida cautelar incidental (em apenso), pedindo que a ré fosse impedida de lançar os nomes de seus associados no cadastro de inadimplentes, além de obrigada a fornecer os termos de quitação aos associados sem pendências junto à ré, desconsiderando-se a “apuração final” prevista em cláusula objeto de pedido de anulação na ação principal. A liminar, em menor escala, foi deferida a fls.57 do apenso, somente impedindo a inscrição dos nomes dos associados da autora no cadastro de inadimplentes.

A ré contestou a cautelar alegando as mesmas preliminares da ação principal. No mérito, alega que o saldo devido a título de apuração final está previsto nos contratos firmados com os adquirentes, e o seu não pagamento afetará outras obras da cooperativa (fls.91/104 do apenso).

Réplica a fls.126/128.

É o relatório.

DECIDO.

A preliminar argüida pela ré não prospera. A associação autora traz expressa em seu estatuto, dentre outras, a finalidade de “promover pleitos judiciais” contra a ré, citada nominalmente.

Diante da especificidade da previsão estatutária, aprovada em assembléia, torna-se desnecessária qualquer autorização individual dos associados, ou mesmo nova autorização por parte da assembléia, que já concedeu autorização específica quando da aprovação do estatuto da entidade. Não existe qualquer restrição legal, por sua vez, quanto ao fundamento de direito utilizado na ação judicial, podendo ele ter por base a legislação de consumo, cível, etc.

As questões de mérito, nas ações principal e incidental, versam sobre matéria de direito, ou sobre fatos suficientemente comprovados pelos documentos juntados aos autos. Passo, assim, a conhecer diretamente dos pedidos, com base no art. 330, I, do Código de Processo Civil.

A certidão de fls.87, datada de setembro de 2005, relativa à matrícula do imóvel em que foi erguido o empreendimento imobiliário objeto da presente ação, demonstra claramente o frontal desrespeito ao art. 32 da Lei 4.591/64, que regula as incorporações imobiliárias.

Não há na certidão notícia sobre o projeto de construção e memorial descritivo da obra, discriminação das frações ideais e suas respectivas unidades autônomas, minuta da convenção de condomínio ou avaliação do custo global da obra.

Tais informações, além de diversos outros documentos, tais como certidões negativas, deveriam ter sido arquivadas no registro de imóveis antes da negociação das unidades autônomas, nos termos expressos da lei.

A ré alega que, por ser cooperativa, não estaria obrigada a cumprir tal norma antes da negociação das unidades. O argumento, entretanto, não convence, pois a alegada isenção não está prevista na Lei de Incorporações Imobiliárias, nem em qualquer outro estatuto.

Aceitar a tese da ré, portanto, seria imunizar as cooperativas do cumprimento da lei. Como as próprias cooperativas, pessoas jurídicas que são, têm sua existência fundada na lei, chegaríamos ao absurdo de ter o ordenamento jurídico engendrado filhote que passou a devorá-lo.

As conseqüências do desrespeito à norma do art. 32 da Lei 4.591/64 são extremamente danosas para os adquirentes das unidades autônomas, a ponto de tal conduta, não sem razão, ser enquadrada como contravenção penal no art. 66, I, da mesma lei.

Afinal, ficam os adquirentes sem qualquer prova da titularidade de seus imóveis e impedidos, por exemplo, de negociar suas unidades ou obter empréstimo com garantia real, sem falar na falta de segurança jurídica provocada pela falta de correspondência entre a matrícula e a realidade do imóvel.

Flagrante o descumprimento, é o caso de aplicação da multa prevista no §5º do art. 35 da Lei 4.591/64. No entanto, levando em conta que a obra já foi concluída e entregue aos adquirentes, justifica-se, com fundamento no art. 413 do Código Civil e em precedente do E. STJ (REsp 200657/DF), a redução da multa para dez por cento do valor recebido pela ré com a negociação das unidades autônomas dos associados da autora, tudo sem prejuízo, é claro, da multa cominatória, já estabelecida em sede de liminar, para obrigar a ré a regularizar o empreendimento.

Passo, agora, a analisar a cláusula relativa à apuração final do custo da obra, que segue transcrita, conforme contrato padrão juntado a fls.1675/1688 dos autos: Cláusula 16ª – APURAÇÃO FINAL – redação original Ao final do empreendimento, com a obra concluída e tendo todos os cooperados cumprido seus compromissos para com a COOPERATIVA, cada um deles deverá, exceto no que se refere a multas ou encargos previstos no Estatuto, neste instrumento, ou por decisão de diretoria, ou de assembléia, ter pago custos conforme a unidade escolhida/atribuída, considerados ainda os reajustes previstos no presente Termo” (grifei)


Analisada em si mesma, a redação da cláusula é extremamente confusa. A longa interpolação adverbial entre o verbo “deverá…” e seu objeto “ter pago custos…”, por si só, já dificulta a interpretação.

No entanto, ainda que seja colocada na forma direta, a redação da cláusula não permite a conclusão, e nem mesmo sugere de forma clara, de que se trata, na verdade, de parcela futura e indeterminada do preço a ser pago pelo imóvel.

Senão vejamos: Cláusula 16ª – APURAÇÃO FINAL – forma direta Ao final do empreendimento, com a obra concluída e tendo todos os cooperados cumprido seus compromissos para com a COOPERATIVA, cada um deles deverá ter pago custos conforme a unidade escolhida/atribuída, considerados ainda os reajustes previstos no presente Termo, exceto no que se refere a multas ou encargos previstos no Estatuto, neste instrumento, ou por decisão de diretoria, ou de assembléia” (grifei).

Embora incompreensível, é esta a cláusula utilizada pela ré para cobrar dos adquirentes um adicional de preço chamado de “apuração final”, não previsto na Cláusula 4ª, intitulada “Plano Geral de Pagamentos”.

Ali são previstos quatro tipos de pagamentos, todos com valores pré-determinados: (1) entrada; (2) parcelas mensais; (3) parcelas anuais; e (4) parcela de entrega de chaves – nenhuma menção é feita à “apuração final”. Da mesma forma, no Quadro Resumo do contrato, onde estão descritos os valores de cada um dos pagamentos, nenhuma ressalva é feita à “apuração final”.

É verdade que, tanto na Cláusula 4ª quanto no Quadro Resumo, o preço total do empreendimento vem acompanhado da palavra “estimado”. Tal adjetivo, entretanto, é explicado pela Cláusula 5ª, que trata do reajuste anual das parcelas pré-determinadas, com base em índice geral do custo da construção civil, conforme apurado pelo SINDUSCON.

Em nada se confunde, portanto, com a “apuração final”, parcela não conhecida previamente e “revelada” aos adquirentes pela própria ré, com base, alegadamente, no custo específico da obra.

Vê-se, assim, que a cláusula 16ª do contrato realmente é nula, e por mais de um motivo. Em primeiro lugar, porque não é clara. Seja o contrato de consumo, seja ele civil, seja firmado por multinacionais ou por cooperativas – todos eles se curvam ao princípio da boa-fé.

Nos contratos de compra e venda em geral, e principalmente nos de adesão, como ocorre no presente caso, tanto a coisa adquirida quanto o preço devem ser claramente determinados. Ocultar parcela de preço em cláusula afastada da que define o próprio preço, com redação confusa a ponto de ser incompreensível, contraria frontalmente os dever da boa-fé contratual.

Ainda que a apuração final tivesse sido claramente informada e explicada aos adquirentes, haveria nulidade. Isso porque o art. 489 do Código Civil, repetindo norma do código anterior, determina que é nulo “o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço”.

É isto que ocorre com a chamada apuração final, a cargo exclusivo da ré, sem qualquer critério pré-estabelecido ou previsão de fiscalização ou acompanhamento por parte dos adquirentes. De nada adiantaria, quanto a este aspecto, objetar que se trata de parcela calculada com base no custo da obra, se tal fator não é controlado ou ao menos acompanhado pelos adquirentes, nem por terceiro independente, sendo apenas apresentado, ao final, pela ré.

Ante a nulidade da cláusula, é injusta a recusa da ré a entregar os termos de quitação aos adquirentes que já saldaram as parcelas de pagamento expressamente previstas no contrato (Cláusula 4ª). Tal providência deverá ser tomada imediatamente pela ré, em favor dos associados da autora que preencham a condição acima, ou seja, tenham quitado os pagamentos previstos na Cláusula 4ª/Quadro Resumo, independentemente de qualquer valor adicional a título de “apuração final”.

Pelos mesmos motivos, deve ser atendido o pedido feito na ação cautelar, confirmando-se, assim, a liminar deferida naqueles autos. Afinal, reconhecida a nulidade da cláusula relativa à apuração final, não podem os associados da autora serem compelidos, de forma alguma, a seu pagamento.

Não restando, por outro lado, qualquer preço a ser pago (para os associados que já saldaram o expressamente previsto no contrato, como acima explicado), a outorga das escrituras é de rigor.

DISPOSITIVO.

Ante o exposto, julgo parcialmente procedente o pedido principal e procedente o pedido cautelar, e:

(1) Confirmando os efeitos da liminar concedida a fls.1235/1239, condeno a ré Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo – BANCOOP a efetuar todos os arquivamentos previstos no art. 32 da Lei 4.591/64, relativos ao empreendimento imobiliário “Condomínio Residencial Vila Mariana”, no prazo de sessenta dias, tendo por termo inicial a liminar, sob pena de multa diária de R$5.000,00 (cinco mil reais);


(2) Pelo desrespeito à obrigação de arquivamento prévio à negociação das unidades, condeno a ré ao pagamento de multa, em favor dos associados da autora, no valor equivalente a 10% (dez por cento) das quantias por eles pagas pelas unidades adquiridas, nos termos do art. 35, §5º, da Lei 4.591/64;

(3) Declaro a nulidade da Cláusula 16ª do “Termo de Adesão e Compromisso de Participação” firmado entre a ré e os associados da autora, tornando inexigível qualquer cobrança adicional de valor não expressamente previsto na Cláusula 4ª e no Quadro Resumo do mesmo contrato;

(4) Condeno a ré a entregar os termos de quitação aos adquirentes que já tenham quitado os pagamentos previstos na Cláusula 4ª/Quadro Resumo de seus respectivos contratos, independentemente de qualquer valor adicional a título de “apuração final”, no prazo de trinta dias, contado da intimação da presente sentença, sob pena de multa diária no valor de R$100,00 (cem reais) por episódio de descumprimento.

(5) Condeno a ré, por fim, a outorgar as escrituras definitivas aos adquirentes que já tenham quitado os pagamentos previstos na Cláusula 4ª/Quadro Resumo de seus respectivos contratos, independentemente de qualquer valor adicional a título de “apuração final”, no prazo de trinta dias, contado do trânsito em julgado. Esgotado o prazo, a presente sentença valerá, para todos os fins, como declaração de vontade da ré, servindo, acompanhada da prova de quitação das parcelas mencionadas, para a transferência de titularidade das frações ideais e unidades autônomas junto ao Registro de Imóveis, sem prejuízo de multa, em desfavor da ré, no valor de R$1.500 (um mil e quinhentos reais) por episódio de descumprimento.

(6) Condeno a ré, por fim, a se abster de inscrever os nomes dos associados da autora em cadastros de proteção ao crédito, em razão do não pagamento da “apuração final”.

A fim de ressalvar os direitos dos associados da autora, oficie-se imediatamente ao 14º Registro de Imóveis da Comarca da Capital, encaminhando cópia da presente sentença e comunicando o bloqueio do imóvel de matrícula 176.594, que não poderá (salvo para efeito dos arquivamentos retro determinados) ser alienado ou gravado, sem autorização prévia deste juízo.

A autora decaiu de parte mínima do pedido na ação principal, razão pela qual condeno a ré ao pagamento das custas e despesas processuais, além de honorários advocatícios arbitrados em 20% (vinte por cento) do valor da condenação.

Na ação cautelar, condeno a ré ao pagamento das custas e despesas processuais, e de honorários advocatícios arbitrados em 20% do valor da causa.

Julgo extinto o processo, com resolução de mérito, com base no art. 269, inciso I, do Código de Processo Civil.

Traslade-se cópia da sentença para o apenso, certificando-se.

P.R.I. São Paulo, 09 de março de 2007.

Gustavo Coube de Carvalho

Juiz de Direito

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