Questão de exclusividade

TRT de São Paulo aplica regra da Emenda 3 em processo

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2 de abril de 2007, 14h53

Enquanto o Congresso Nacional decide se derruba o veto da famigerada Emenda 3, da Super-Receita, a Justiça já dá sinais de que é favorável sim ao que diz o texto: cabe apenas ao Judiciário declarar fraude e reconhecer a existência de vínculo de trabalho. Em São Paulo, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região suspendeu multa aplicada por um fiscal de trabalho contra a empresa Sercom.

Ao fiscalizar a atividade na empresa, o fiscal entendeu que os 1,8 mil funcionários que lá trabalham, todos alocados por intermédio de uma cooperativa de trabalho, eram de fato empregados da Sercom. Portanto, deveriam assim ser registrados. Ele aplicou multa de R$ 755 mil contra a empresa.

No TRT paulista, a autuação do fiscal foi suspensa. Os juízes não discutiram a existência de fraude na contratação, mas os limites da competência do fiscal do trabalho. Por unanimidade, entenderam que é exclusivo do Judiciário o poder para reconhecer o vínculo de trabalho.

“A conclusão do fiscal demandou que se transmudasse a natureza do vínculo jurídico existente entre as partes envolvidas e, neste aspecto, envolveu evidente atividade jurisdicional, afeta exclusivamente ao Poder Judiciário, mediante provocação dos próprios empregados ou de seu sindicato”, explicou a relatora, juíza Maria Aparecida Duenhas da 11ª Turma do TRT-SP. A decisão foi unânime.

Amores e ódios

A Emenda 3 foi apresentada e aprovada junto com o projeto de lei que criou a Super-Receita (união das secretarias da Receita Federal e da Receita Previdenciária). Em março, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Super-Receita, mas vetou a Emenda 3.

O dispositivo gerou amores e ódios porque tirava dos fiscais o poder de autuar empresas nos casos de contratação de pessoas jurídicas tida como irregular. Pela a emenda, prevaleceria justamente o que decidiu o TRT de São Paulo: a competência para declarar a fraude é da Justiça e não dos fiscais.

Atualmente, o Congresso Nacional discute se derruba ou não o veto do presidente Lula. Enquanto isso, diversas entidades de classe se dividem num debate acalorado. A OAB, por exemplo, defende a emenda. Já a Associação Juízes para a Democracia (AJD) aposta que a norma viola a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.

Veja o acórdão e o voto da relatora:

PODER JUDICIÁRIO

Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região

ACÓRDÃO Nº: 20070036823 Nº de Pauta: 024

PROCESSO TRT/SP Nº: 01096200601702008

RECURSO ORDINÁRIO – 17 VT de São Paulo

RECORRENTE: Sercom S.A.

RECORRIDO: UNIÃO (FAZENDA NACIONAL)

EMENTA

FISCAL DO TRABALHO. COMPETÊNCIA FUNCIONAL. LIMITES. USURPAÇÃO DE ATIVIDADE JURISDICIONAL.

Se os auditores fiscais do trabalho têm por atribuição assegurar, em todo o território nacional, o cumprimento das disposições legais e regulamentares no âmbito das relações de trabalho e de emprego – e esta atribuição obedece ao princípio da legalidade – daí, entretanto, não se infere que possuam competência para lavrar autos de infração assentados em declaração de existência de contrato de emprego, derivada unicamentede sua apreciação da situação fática subjacente.

A transmutação da natureza jurídica dos diversos tipos de contrato que envolvem a prestação de trabalho – como os prestação ou locação de serviços, de empreitada e outros, inclusive o que decorre de associação cooperativa – em contratos individuais de trabalho, depende de declaração expressa, que se constitui em atividade jurisdicional, exclusiva do Poder Judiciário. Recurso Ordinário provido, para se conceder a segurança.

ACORDAM os Juízes da 11ª TURMA do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região em: por unanimidade de votos, DAR PROVIMENTO ao recurso ordinário para conceder a segurança, a fim de que a autoridade apontada como coatora abstenha-se de exigir o cumprimento da ordem emanada do Auto de Infração nº 0011800640, bem como da cobrança da respectiva multa, tudo nos termos da fundamentação do voto.

São Paulo, 31 de Janeiro de 2007.

MARIA APARECIDA DUENHAS

PRESIDENTE REGIMENTAL E RELATORA

ROBERTO RANGEL MARCONDES

PROCURADOR (CIENTE)

Voto

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA

RECORRENTE:-SERCOM S/A.

RECORRIDO:-UNIÃO FEDERAL

FISCAL DO TRABALHO. COMPETÊNCIA FUNCIONAL. LIMITES. USURPAÇÃO DE ATIVIDADE JURISDICIONAL. Se os auditores fiscais do trabalho têm por atribuição assegurar, em todo o território nacional, o cumprimento das disposições legais e regulamentares no âmbito das relações de trabalho e de emprego – e esta atribuição obedece ao princípio da legalidade – daí, entretanto, não se infere que possuam competência para lavrar autos de infração assentados em declaração de existência de contrato de emprego, derivada unicamente de sua apreciação da situação fática subjacente. A transmutação da natureza jurídica dos diversos tipos de contrato que envolvem a prestação de trabalho – como os prestação ou locação de serviços, de empreitada e outros, inclusive o que decorre de associação cooperativa – em contratos individuais de trabalho, depende de declaração expressa, que se constitui em atividade jurisdicional, exclusiva do Poder Judiciário. Recurso Ordinário provido, para se conceder a segurança.


Inconformada com extinção sem julgamento do mérito da presente ação e a conseqüente denegação da segurança pleiteada, interpõe a Impetrante recurso de apelação, autuado nesta Justiça como Recurso Ordinário, conforme razões de fls. 5.148/5.192, visando à reforma do julgado e à concessão da segurança, para a finalidade almejada de que a Autoridade apontada como coatora abstenha-se de exigir o cumprimento da ordem emanada do Auto de Infração nº 0011800640, bem como da cobrança da respectiva multa, estimada, à época da interposição do recurso, em R$ 755.146,28.

Diz a Recorrente que a autuação baseou-se unicamente em conclusão do Sr. Auditor sobre a natureza jurídica trabalhista do vínculo que mantinha com 1.876 trabalhadores alocados a seu serviço por Cooperativa de Trabalho, que se seguiu a declaração da inconstitucionalidade do art. 442, da CLT, e a constatação da existência dos requisitos dos arts. 2º e 3º do mesmo codex, analisada sob o enfoque do enunciado nº 331, do C. TST.

Sustenta ter ocorrido usurpação do poder jurisdicional, com violação direta ao art. 114, da Constituição Federal, além de afronta a decisões desta Justiça Especializada que, pelo menos em relação a duas trabalhadoras, integrantes do grupo de 1.876 arrolados pelo Sr. Fiscal, já decidira pela inexistência de vinculação empregatícia, convalidando, nesses casos, a prestação de trabalho em regime cooperado.

Argumenta, ainda, o equívoco da r. decisão atacada, pois o que se coloca em discussão, nestes autos, não é a existência ou não da relação empregatícia, nem mesmo o acerto ou desacerto do Sr. Fiscal ao declará-la, mas apenas a sua competência para tal declaração.

Invoca a legalidade do sistema do cooperativismo e do contrato que celebrou com a Cooperativa, que se constitui em ato jurídico perfeito.

Pede, com a reforma do julgado, a concessão da segurança, para a finalidade almejada de declarar-se insubsistente o Auto de Infração nº 0011800640 sustando-se, em conseqüência, a cobrança da respectiva multa.

Regularmente processado o recurso, vieram aos autos contra razões da União, a fls. 5.195/5.217, defendendo a legalidade da autuação. Invoca a autoridade coatora o princípio da primazia da realidade e sustenta a validade do ato impugnado no art. 39 da CLT, dizendo que o auto de infração e a respectiva multa são a concreção do Poder de Polícia do Estado, cujo fundamento é a supremacia do interesse público sobre o privado. Discorre, ainda, sobre as características da relação de emprego, dizendo que a presunção de legalidade do contrato firmado pela Impetrante com a Cooperativa cede diante dos fatos apurados.

A fls. 5.220/5.222, manifestação da Procuradoria Regional da República, pelo improvimento do apelo.

A fls. 5.224, declaração de ofício da incompetência material da Justiça Federal, em face do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, e remessa dos autos a esta Justiça Especializada (fls. 5.227), com distribuição à 17ª Vara do Trabalho e posterior remessa a este Regional, no qual me couberam por sorteio (fls. 5.246).

A fls. 5.243/5.244, manifestação da D. Procuradoria Regional, pelo improvimento.

Relatado.

V O T O

Cuida-se de Mandado de Segurança impetrado contra ato do Sr. Dr. Sub Delegado Regional do Trabalho de São Paulo, consubstanciado em autuação fundamentada em falta de registro em CTPS de trabalhadores mantidos pela Impetrante a seu serviço (art. 41 da CLT).

O Auto de Infração questionado está reproduzido a fls. 170 e reporta “Trabalhadores na situação descrita, prestadores de serviços em estabelecimento da autuada, no período de janeiro/2000 a junho/2004, na condição de ‘autônomos cooperados’, intermediados pela Cooperativa de Trabalho COOPERDATA, através de contrato de prestação de serviços. Presentes na atividade desenvolvida todas as características do contrato de trabalho: serviços prestados com SUBORDINAÇÃO, PESSOALIDADE, ONEROSIDADE E NÃO EVENTUALIDADE (Artigo 3º da CLT); afastada a legalidade da referida intermediação, por aplicação do art. 9º da CLT, que estabelece primazia da realidade sobre a forma adotada na contratação de trabalhador. Elementos complementares, colhidos em verificações físicas e análise documental realizada no local de prestação dos serviços, em relatório anexo, integrante do presente AI. Empregados prejudicados pela situação descrita, em número de 1.876, em relação anexa, também integrantes deste AI”.

A insurgência da Impetrante diz respeito ao extravasamento da função fiscalizadora, que implicou invasão de competência exclusiva do Poder Judiciário.

Assiste-lhe razão.

A atividade de inspeção e fiscalização do trabalho tem por finalidade assegurar a efetiva aplicação das normas legais e regulamentares disciplinadoras do trabalho, inclusive as decorrentes de convenções internacionais ratificadas pelo Brasil e de Convenções Coletivas do Trabalho, além dos atos e decisões das autoridades competentes em matéria de trabalho. É o que se lê no art. 1º do Decreto 55.841/65 – Regulamento da Inspeção do Trabalho:


“O sistema federal de inspeção do trabalho, a cargo do Ministério do Trabalho e Previdência Social, sob a supervisão do Ministro de Estado, tem por finalidade assegurar, em todo o território nacional, a aplicação das disposições legais e regulamentares, incluindo as convenções internacionais ratificadas, dos atos e decisões das autoridades competentes e das convenções coletivas de trabalho, no que concerne à duração e às condições de trabalho bem como à proteção dos trabalhadores no exercício da profissão.”

Por outro lado, busca-se assegurar o cumprimento dessa finalidade, com a atribuição de competência não apenas preventiva, mas também punitiva aos agentes fiscalizadores, como se vê do art. 8º do mesmo Regulamento:

“Para a fiel execução da ação fiscal, compete aos Inspetores do Trabalho:

… omissis …

q) proceder à lavratura de autos e infração por inobservância de disposições legais;

Importante relembrar aqui que os agentes fiscalizadores, agentes públicos que são, estão adstritos ao princípio da legalidade. A eles não se concede vontade própria, mas apenas a vontade da lei. Nessa moldura estrita é que se definem os limites de sua competência.

No caso que se examina, a autuação decorreu de falta de registro de 1.876 trabalhadores mantidos pela Impetrante a seu serviço, reportada no Auto de Infração como “admitir ou manter empregado sem o respectivo registro em livro ou sistema eletrônico competente”.

Poder-se-ia referendar a ação do inspetor se tratasse de trabalhadores mantidos sem qualquer espécie de contrato, por vinculação meramente fática, ou informal. Mas não era esse o caso, já que os trabalhadores – todos eles, sem exceção – vinculavam-se, como associados, à Cooperativa de Trabalho Cooperdata, dela recebendo os seus haveres, mediante rateio. A conclusão do Sr. Fiscal, portanto, demandou que se transmudasse a natureza do vínculo jurídico existente entre as partes envolvidas e, neste aspecto, envolveu evidente atividade jurisdicional, afeta exclusivamente ao Poder Judiciário, e, no caso específico, às Varas do Trabalho, mediante provocação dos próprios empregados ou de seu Sindicato, ou ainda, no caso dos autos, da Procuradoria Regional do Trabalho, mediante a instauração de inquérito civil público, instrumento apropriado à apuração dos fatos, e, se fosse o caso, da competente Ação Civil Pública.

Veja-se que mesmo o Inquérito Civil Público seria insuficiente à finalidade descrita no Auto de Infração aqui questionado, sendo necessária a sua confirmação por sentença judicial, admitida sempre, em ambas as esferas, a ampla defesa da Impetrante.

Da leitura do longo arrazoado do Sr. Fiscal, apreende-se que emitiu verdadeiro juízo de valor sobre a situação dos trabalhadores, analisada à luz da Súmula nº 331, do C. TST, após declaração expressa da inconstitucionalidade do art. 442 da CLT, o que refoge totalmente à sua competência, por configurar atividade jurisdicional, afeta exclusivamente ao Poder Judiciário.

A evidência mais gritante de que o Sr. Fiscal realmente exorbitou de sua competência está na demonstração de que acabou por declarar relação de emprego em dois casos específicos em que ela já havia sido afastada por esta Justiça Especializada, como se vê dos documentos de fls. 4.888/4917.

Não se trata aqui de entrar no mérito das relações de trabalho questionadas e deriva exatamente desse entendimento equivocado o desacerto da r. decisão de origem. Na verdade, não se questiona, nesta ação, a natureza jurídica das relações de trabalho envolvidas na indigitada fiscalização, nem mesmo o acerto ou desacerto do Sr. Fiscal ao declarar serem elas trabalhistas, mas, apenas e unicamente, a sua competência para tal declaração, mormente quando alicerçada em juízos de valor sobre a incidência de entendimento jurisprudencial e – o que é mais grave – sobre a inconstitucionalidade de lei, esta última afeta unicamente ao Poder Judiciário e, em se tratando de demanda individual, com efeito restrito às partes envolvidas na ação.

Portanto, e ao contrário do que se decidiu, com a devida vênia do I. Julgador primário, o enfrentamento da questão proposta nunca exigiu dilação probatória, pois limitava-se à legalidade da conduta do Sr. Fiscal, ante os limites de sua competência funcional, e à existência de efetivo prejuízo à Autora, pela violação de direito reputado líquido e certo.

O primeiro aspecto da questão proposta já foi analisado. Quanto ao segundo, houve efetiva afronta a direito líquido e certo da impetrante, traduzida pelo abuso de poder e pelo desrespeito aos limites do princípio da legalidade, impostos como regra ao Poder Público.

Por todas essas razões é que não subsiste a autuação, merecendo provimento o recurso para que se conceda a segurança, na forma requerida.

Isto posto, considerando o que mais consta dos autos, de acordo ainda com a manifestação da D. Procuradoria Regional, DOU PROVIMENTO AO RECURSO PARA CONCEDER A SEGURANÇA para a finalidade aqui postulada, de que a Autoridade apontada como coatora abstenha-se de exigir o cumprimento da ordem emanada do Auto de Infração nº 0011800640, bem como da cobrança da respectiva multa, tudo nos termos da fundamentação supra.

É o meu voto.

MARIA APARECIDA DUENHAS

Juíza Relatora

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