Hierarquia das normas

Lei complementar não se confunde com lei orgânica

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29 de setembro de 2006, 18h22

I – DEFINIÇÃO DA CONTROVÉRSIA

1. – A Lei Complementar nº 70/91 instituiu a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), e estabeleceu que a mesma seria exigida das pessoas jurídicas, exceto daquelas que expressamente isentou.

2. – Diz o artigo 1º da Lei Complementar nº 70/91: “Art. 1º – Sem prejuízo da cobrança das contribuições para o Programa de Integração Social — PIS e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público — PASEP, fica instituída contribuição social para financiamento da Seguridade Social, nos termos do inciso I do artigo 195 da Constituição Federal, devida pelas pessoas jurídicas, inclusive a elas equiparadas pela legislação do Imposto sobre a Renda, destinadas exclusivamente às despesas com atividades fins das áreas de saúde, previdência e assistência social”.

3. – Simultaneamente e já no ato de sua criação, declara a Lei Complementar nº 70/91 que determinadas categorias de pessoas jurídicas estão isentas da COFINS: “Art.6º- São isentas da contribuição:

I – as sociedades cooperativas que observarem ao disposto na legislação específica, quanto aos atos cooperativos próprios de suas finalidades; II – as sociedades civis de trata o artigo 1º do Decreto-Lei nº 2.397, de 21 de dezembro de 1987;

III – as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei”.

4. – As sociedades civis referidas no inciso II do art. 6º transcrito acima, e de que trata o art. 1º do Decreto-Lei nº 2.397/87, são as sociedades de prestação de serviços de profissões regulamentadas, entre as quais se incluem as sociedades de serviços de advocacia. Tais sociedades apresentam a peculiaridade de congregarem unicamente sócios dedicados ao exercício da advocacia.

5. – Assim, por força da Lei Complementar nº 70/91 as sociedades civis uni profissionais, como as de advocacia, nunca foram sujeitas ao pagamento da COFINS, posto que declaradas isentas desde a instituição da contribuição.

6. – Entretanto, com a edição da Lei nº 9.430/96, e com alegado fundamento no seu artigo 56, a Fazenda Nacional passou a exigir a COFINS das sociedades civis uniprofissionais. Diz o artigo em questão:

“Art. 56. As sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991”.

7. – A controvérsia surge exatamente com a edição dessa Lei 9.430/96.

8. – De um lado, as sociedades civis uniprofissionais argumentam com a impossibilidade de uma lei ordinária, como é a Lei 9.430/96, revogar dispositivos da Lei Complementar nº 70/96, que as isenta da Contribuição Social.

9. – De outro lado, a Fazenda Nacional, embora aceite o princípio da hierarquia das leis e o fato de que lei ordinária não pode revogar lei complementar, advoga a tese de que a isenção tributária de que cuida o artigo 6º da Lei Complementar nº 70/91, a benefício das sociedades civis que indica, seria apenas formalmente lei complementar. Mas, seria materialmente lei ordinária. O princípio da hierarquia das leis prossegue a Fazenda Nacional, não se aplicaria às leis apenas formalmente complementares para protegê-las de revogação por lei ordinária. Ou, dito de outra forma, embora estabelecida por Lei Complementar, a isenção de pagamento da COFINS pelas sociedades civis poderia ser revogada por lei ordinária, porque se trataria de lei apenas formalmente complementar.

10. – A tese da Fazenda Nacional impressiona, porquanto robustecida por manifestação do ilustre Ministro Moreira Alves, que incidenter tantum, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 1-1, do Distrito Federal afirmou ser possível a revogação dele incomplementar por lei ordinária.

11. – A possibilidade de existirem leis complementares com o conteúdo de leis ordinárias, ou vice-versa, foi reiteradas vezes considerada pela doutrina, que aponta solução similar àquela com que acena o Ministro Moreira Alves.

12. – Para José Souto Maior Borges a invasão de esferas de competência legislativa da lei ordinária e da lei complementar não deveria ocorrer: “Os campos da lei complementar e da lei ordinária em princípio não se interpenetram, numa decorrência da técnica constitucional de distribuição rationae materiae de competências legislativas” (Lei Complementar Tributária, 1975, pág. 25).

13. – Adverte Souto Maior, entretanto, que, em ocorrendo a interpenetração nos campos privativos das leis complementares e ordinárias, a solução é diversa conforme a competência invadida. A lei ordinária invasora é inconstitucional: “Se a lei ordinária da União invadir o campo da lei complementar estará eivada de visceral inconstitucionalidade porque a matéria, no tocante ao processo legislativo, somente poderia ser apreciada com observância de um quorum especial e qualificado, inexistente na aprovação da lei ordinária. A reserva constitucional da lei complementar funciona como um óbice à disciplina da matéria pela legislação ordinária” (Lei Complementar Tributária, 1975, pág.27).


14. – Já a lei complementar invasora de competência da lei ordinária é tratada com maior benevolência, e apenas deixa de ser considerada lei complementar, rebaixando-se ao status de lei ordinária: “Se a lei complementar invadir o âmbito material de validade da legislação ordinária da União, valerá tanto quanto uma lei ordinária federal” (Lei Complementar Tributária, 1975, pág.26).

15. – Forçoso é admitir-se que outros autores ilustres, como Geraldo Ataliba (Lei Complementar na Constituição, 1971, pág.38) e Celso Bastos (Lei Complementar: Teoria e Comentários, pág.143), chegam a conclusões idênticas às de Souto Maior.

16. – Em linguagem sintética, sustenta a Fazenda Nacional que a lei ordinária pode revogar a lei complementar, quando esta cuide de matéria cuja competência legislativa não lhe tenha sido expressamente reservada na Constituição Federal.

17. – A questão, entretanto, merece reexame.

18. – A indagação principal que se coloca é a de se saber qual é a competência legislativa rationae matéria e estabelecida na Constituição para a lei ordinária e para a lei complementar. Porque, para se poder afirmar, com segurança jurídica, que determinada norma é formalmente lei complementar, mas é materialmente lei ordinária, será necessário encontrar um inquestionável elenco de assuntos que a Constituição tenha considerado objeto exclusivo de lei complementar. E, um claro, induvidoso e inquestionável elenco de assuntos que a Constituição tenha considerado objeto exclusivo de leis ordinárias.

19. – A doutrina debate o que seja conteúdo próprio ou necessário de lei complementar. Os doutrinadores definem, em abstrato, qual seja o conteúdo intrínseco da lei complementar, com o que estabelecem um contorno dentro do qual se acomoda essa espécie legislativa do gênero lei. Por outro lado, a Constituição exige lei complementar para disciplinar determinados assuntos. E nem todos os assuntos para os quais a Constituição exige lei complementar coincidem com aqueles que a doutrina identifica como próprios de lei complementar. O contorno doutrinário das matérias próprias de lei complementar e o contorno Constitucional das matérias que, por previsão expressa, poderiam ser objeto de lei complementar não coincidem. Em parte, porque visivelmente o legislador constitucional não se prendeu com fidelidade a qualquer doutrina. E, em parte, porque nem o contorno doutrinário, nem o contorno positivado na Constituição parecem suficientemente claros e a salvo de controvérsias.

20. – Daí haver Geraldo Ataliba afirmado que os conceitos doutrinário e jurídicopositivo de lei complementar não coincidem: “O primeiro (conceito doutrinário) se prende à distinção substancial entre disposição constitucional auto-executável e não auto-executável, tal como firmada na doutrina dominante. É lei complementar aquela que completa este tipo de norma. Já o conceito jurídico-positivo depende do sistema, tal como formalmente erigido e disposto pelo legislador — no caso — constituinte. É lei complementar — de acordo com o conceito jurídico-positivo — aquela expressamente prevista pelo texto constitucional e para cuja elaboração se previu processo especial e qualificado

Não coincidem, como se vê, os conceitos doutrinário e jurídico-positivo de lei complementar” (“Lei Complementar na Constituição”, ed.1971, p.30).

21. – A disparidade entre o que efetivamente é o conteúdo de determinadas normas e a definição doutrinária do que deveria ser o conteúdo das normas daquela categoria legislativa não existe apenas no direito infraconstitucional. No próprio direito constitucional existem desalinhamentos entre a forma constitucional e a matéria constitucional.

II. – DIREITO CONSTITUCIONAL FORMAL E DIREITO CONSTITUCIONAL MATERIAL

22. – As normas constitucionais se caracterizam, como ensina Luiz Roberto Barroso, por sua singularidade dentro do sistema legal, no qual se destacam por um conjunto de peculiaridades. Dessas peculiaridades, Luiz Roberto Barroso enumera quatro: a) superioridade hierárquica; b) natureza da linguagem; c) conteúdo específico; e, d) caráter político. (Interpretação e Aplicação da Constituição, 6ª Edição, Saraiva, fls.107).

23. – Interessam aqui, inicialmente, as peculiaridades relativas ao conteúdo específico das normas constitucionais. Em perspicaz abordagem, Luiz Roberto Barroso lembra que, como todo sistema normativo, as Constituições contêm um conjunto de ordens e proibições que objetivam reger comportamentos, ou criar direitos e obrigações que se destinam a disciplinar condutas de indivíduos ou grupos. São exatamente as normas de condutas.

24. – Além dessas, entretanto, as Constituições contêm normas que precedem a incidência das demais e se destinam a estruturar organicamente o Estado. Estas são normas que não contêm a previsão abstrata de um ato, cuja prática possa causar efeitos jurídicos. Simplesmente enunciam os efeitos constitutivos de determinados órgãos, organismos ou institutos, que elegem para a formação estrutural do Estado.


São as normas de organização.

25. – Por último, e ainda segundo Luiz Roberto Barroso, as Constituições se singularizam pela presença de normas que não se referem a organismos, nem a comportamentos, mas indicam valores a serem preservados, ou fins a serem alcançados. Não são normas de conduta típicas, porquanto, embora acabem motivando comportamentos do Estado, dos indivíduos ou dos grupos, não definem quais sejam esses comportamentos. Limitam-se a estabelecer os fins a serem alcançados, sem definir os meios que conduzirão a esses fins. Programam linhas diretoras para a concretização de determinados fins sociais, definidos conforme os valores que o legislador constitucional entendeu de priorizar. São as normas programáticas.

26. – A esse conjunto de normas de conteúdo constitucional específico Luiz Roberto Barroso se refere como normas materialmente constitucionais (Interpretação e Aplicação da Constituição, 6ª Edição, Saraiva, fls.369, Nota 58).

27. – Paulo Bonavides enfatiza que o conteúdo material das Constituições tanto pode estar nas normas escritas, quanto nas Constituições Consuetudinárias. Nesse sentido, diz o autor, “não há Estado sem Constituição, Estado que não seja constitucional, visto que toda sociedade politicamente organizada contém uma estrutura mínima, por rudimentar que seja” (Curso de Direito Constitucional, Malheiros Editores, 6ª Edição, pág.63).

Mas, o que exprime o aspecto material das Constituições é o conteúdo básico e fundamental referente à composição e ao funcionamento da ordem política: “Do ponto de vista material, a Constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da Constituição” (obra citada, pág. 63).

28. – Nem tudo que se contém nas Constituições, entretanto, corresponde ao conteúdo básico e fundamental referente à composição e ao funcionamento da ordem política. Nem tudo é material e substancialmente constitucional. Paulo Bonavides, a exemplo de inúmeros outros ilustres doutrinadores analisa o fenômeno legislativo pelo qual se inserem nas Constituições temas que, pela sua natureza, não necessariamente precisariam delas constar, mas que acabam tomando a forma constitucional: “As Constituições não raro inserem matéria de aparência constitucional”. Assim se designa exclusivamente por haver sido introduzida na Constituição, enxertada no seu corpo normativo e não porque se refira aos elementos básicos ou institucionais da organização política.

Entra essa matéria, pois, a gozar da garantia e do valor superior que lhe confere o texto constitucional. De certo modo tal não aconteceria se ela houvesse sido deferida à legislação ordinária (Obra citada. pág.64).

29. – A distinção entre normas materialmente constitucionais e formalmente constitucionais não é feita por lei. As Constituições naturalmente abstêm-se de classificar as respectivas normas em formais ou materiais. E como as Constituições se situam no alto da pirâmide legal, como a mais alta hierarquia das leis, não há lei que as preceda para determinar, entre o que nelas se contém, o que deve ser havido como substancial e o que deve ser havido como formal.

30. – Essa divisão classificatória é feita pela doutrina, com o subjetivismo que normalmente comportam as teorias e abstrações jurídicas. A condição relativamente aleatória com que muitas vezes a vontade política do legislador constituinte elege, ou pretere, as matérias que vai inserir na Constituição levou Afonso Arinos de Melo Franco a observar o fenômeno de determinadas Constituições incluírem abundante matéria de lei ordinária, e simultaneamente deixarem de fora regras relativas à forma do Estado, à natureza do regime, à moldura e competência do poder, à defesa, conservação e exercício da liberdade (Teoria da Constituição, edição 1976, pág.145/158).

31. – Por força das normas que contêm, as Constituições podem ser vistas em seu sentido material, substancial, como o “conjunto de normas estruturais de uma dada sociedade política”. Já no sentido formal as Constituições se podem definir como “conjunto de normas legislativas produzidas por um processo mais árduo e mais solene do que o ordinário” (Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, 4ª Edição Saraiva, pág. 38).

32. – Assim, lembra Celso Ribeiro Bastos, “convém observar que poderão verificar-se normas constitucionais apenas sob o aspecto formal”.


33. – Isto certamente não ocorre por acidente, ou por imprecisão jurídica. Trata-se da expressão do caráter político das Constituições, a que acima aludia Luiz Roberto Barroso como uma das peculiaridades que tornam o Direito Constitucional singular.

Por esse caráter político o Poder Constituinte manifesta a vontade de conferir relevância e estabilidade a determinadas normas, ainda que não digam respeito diretamente a direitos fundamentais ou à estrutura do Estado. Confere a tais normas a forma constitucional, pelo simples fato de incluí-las na Constituição e pela vontade política de considerá-las entre as fundamentais do sistema jurídico.

34. – É vontade política do legislador constituinte que determinadas normas materialmente ordinárias adquiram, pela força da forma, a proteção reservada para as normas constitucionais.

35. – A propósito, Celso Ribeiro Bastos adverte: “isto ocorre em todos aqueles casos em que determinadas regras jurídicas, de natureza não substancialmente constitucional, tenham sido inseridas na Constituição em sentido formal, para obter aquela tutela especial e típica da Constituição.” (Lei Complementar: Teoria e Comentários, 1999, p.).

36. – Ou seja, a inserção se faz de propósito e com o objetivo ideológico-jurídico, pré-determinado no processo legislativo constitucional, de conferir à regra inserida tutela especial e específica, própria da hierarquia constitucional. Busca-se e se concretiza a estabilidade da norma e a segurança jurídica dela decorrente.

37. – Não é essa, evidentemente, uma peculiaridade do direito constitucional brasileiro. É universal. Basta recordar o que a respeito já dizia Hans Kelsen: “Da Constituição em sentido material deve distinguir-se a Constituição em sentido formal, isto é, a legislação, e também normas que se referem a outros assuntos politicamente importantes e, além disso, preceitos por força dos quais normas contidas neste documento, a lei constitucional, não podem ser revogadas ou alteradas pela mesma forma que as leis simples, mas somente através de processo especial submetido a requisitos mais severos. Estas determinações representam a forma da Constituição, que, como forma, pode assumir qualquer conteúdo e que, em primeira linha, serve para a estabilização das normas que aqui são designadas como Constituição material e que são o fundamento do direito positivo de qualquer ordem jurídica do estado”. (Teoria Pura do Direito, Armênio Amado Editor, 3ª Edição, Coimbra, pág. 310/311).

38. – A maior ou menor permeabilidade das Constituições à inserção de normas que não sejam materialmente constitucionais e se tornem formalmente constitucionais determina a existência de Constituições concisas ou prolixas. Parece natural que nas Constituições concisas se encontre uma predominância de normas materialmente constitucionais. Já a maior aceitação da constitucionalização de normas que poderiam ser tratadas na legislação ordinária resultará na configuração de Constituições prolixas.

39. – Quando o poder constituinte é originário, não existindo outro que o preceda para limitar a vontade política que possa expressar, nem possa lhe impor limites e técnicas legislativas, passam a ser constitucionais todas as normas às quais o legislador constituinte pretender conferir esse caráter, sejam formais, sejam materiais.

III. – MODELO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

40. – O modelo da Constituição de 1988 é rígido, no sentido de que determina regras estritas para a alteração constitucional. É aberto, porque indica largos sistemas de integração normativa a serem preenchidos pela legislação infraconstitucional. Mas, é notoriamente prolixo. Assegurou-se na Constituição de 1988 um amplo espaço para normas que poderiam compor a legislação infraconstitucional, mas que por vontade do legislador constituinte tornaram-se normas constitucionais.

41. – A Constituição de 1988 não distingue, entre suas normas, as que sejam materialmente constitucionais e as que sejam formalmente constitucionais. As trata em pé de igualdade, como normas constitucionais.

42. – Nem sempre foi assim. Na Constituição de 1824, a chamada Constituição do Império, apenas uma parte de seu conteúdo era considerada especifica do direito constitucional: “Art. 178. É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos, e individuais dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias”.

43. – Note-se a relevância dessa previsão constitucional. Explicitava a diferença entre forma e conteúdo da norma, e atribuía importantíssima conseqüência para essa diferença. Permitia, expressamente, priorizando o conteúdo sobre a forma, que a lei ordinária revogasse a norma constitucional que fosse materialmente ordinária.


44. – As Constituições posteriores baniram a possibilidade de que se pudessem modificar por lei ordinária as disposições constitucionais que, embora formalmente constitucionais, fossem materialmente ordinárias. Vale dizer, as Constituições brasileiras posteriores ao Império, a benefício da estabilidade jurídica e do caráter político de sua natureza, prestigiaram a estabilidade pela forma constitucional, independentemente da matéria objeto da norma.

45. – A vontade política coletiva expressa ou canalizada pelo poder constituinte, seja na criação do Estado, seja na sua reforma, determina a forma jurídica que o Estado vai tomar. Seabra Fagundes na sua obra “O Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário” afirma, com razão, que “o poder constituinte, manifestação mais alta da vontade coletiva, cria ou reconstrói o Estado através da Constituição” (edição 1979, pág. 3).

46. – A adoção, pela Constituição de 1988, de um modelo prolixo, repleto de normas formalmente constitucionais que não necessariamente deveriam estar na Constituição, foi resultante da expressão de uma vontade política.

47. – O legislador constituinte de 1988, entre as vontades políticas que manifestou na formulação da Constituição brasileira, equiparou as normas formalmente constitucionais e as materialmente constitucionais, submetendo-as ao mesmo status hierárquico da Constituição. Assegurou-lhes a mesma eficácia e estabilidade, submetendo-as aos mesmos mecanismos de redação, aprovação, vigência, aplicabilidade e alteração.

48. – Exceção, para maior rigor formal, poderia ser feita às chamadas cláusulas pétreas, que nem mesmo outras Constituições poderão modificar. Tema, entretanto, de que não se cogitará aqui, por estar fora da linha de raciocínio que se deve seguir com rigor neste texto.

IV. – CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE

49. – O sistema constitucional brasileiro, aí compreendidos legislação, doutrina e jurisprudência, desenvolveu um dos mais sofisticados, complexos e abrangentes mecanismos de controle da constitucionalidade das leis.

50. – O controle judicial difuso da constitucionalidade compete a todo e qualquer juiz com competência para o exercício da jurisdição sobre causa em que se discuta o efeito da inconstitucionalidade sobre determinado direito concreto. Em sucessão de recursos a instâncias superiores, o julgamento de eventual inconstitucionalidade pode chegar ao Supremo Tribunal Federal.

51. – O controle judicial concentrado da constitucionalidade ocorre em processo que já se inicia no Supremo Tribunal Federal, por provocação de pessoa ou ente legitimado pela própria Constituição.

52. – Pois bem. Seja pela via do controle difuso, seja pela via do controle concentrado, o controle da constitucionalidade protege a vigência e eficácia de todas as normas da Constituição, sejam elas materialmente constitucionais ou formalmente constitucionais.

53. – Em toda essa elaboração legislativa, doutrinária e jurisprudencial, no Brasil República, jamais se teve notícia de discriminação entre normas formalmente constitucionais e normas substancialmente constitucionais para o efeito de lhes preservar a vigência e eficácia, protegendo-as contra eventual legislação ou decisão infraconstitucional, pelos mecanismos de controle da constitucionalidade. Essa discriminação existia na Constituição do Império, a de 1824, mas foi definitivamente afastada a partir da Constituição de 1891.

54. – As normas constitucionais são constitucionais, e como tal consideradas e protegidas pelo sistema, quer sejam formalmente constitucionais, quer sejam materialmente constitucionais. As formalmente constitucionais e as materialmente constitucionais usufruem e conferem a mesma segurança jurídica.

55. – Invoquem-se ainda uma vez os ensinamentos sempre claros e precisos de Luiz Roberto Barroso: “A Constituição regula tanto o modo de produção das demais normas jurídicas, como também delimita o conteúdo que possam ter. Como conseqüência, a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo poderá ter caráter formal ou material. A supremacia da Constituição é assegurada pelos diferentes mecanismos de controle de constitucionalidade. O princípio não tem conteúdo próprio: ele apenas impõe a prevalência da norma constitucional, qualquer que seja ela”. (obra citada, pág. 371).

56. – Portanto, segundo os princípios e fundamentos do controle da constitucionalidade, a natureza formal ou material da norma constitucional é irrelevante para os fins de sua preservação e estabilidade, ou para a defesa da constitucionalidade. A ninguém, no sistema jurídico brasileiro de hoje, ocorreria dizer que uma determinada norma constitucional possa ser revogada por lei ordinária, pela circunstância de ser materialmente ordinária e apenas formalmente constitucional. Se assim é com a Constituição, vejamos o que se passa com as leis que a complementam, ou leis complementares.


V. – LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO COMPARADO

57. – É possível que a convicção de que leis complementares só podem ser aquelas para as quais a Constituição tenha previsto expressamente lei complementar derive de uma importação de direito estrangeiro, sem as devidas adaptações e adequações ao sistema brasileiro. É o fenômeno a que Fabio Konder Comparato, mordaz, chama de contrabando jurídico. Confunde-se lei complementar brasileira com lei orgânica do direito constitucional francês, ou espanhol. E por causa disso, se pretende aplicar à lei complementar o requisito de conteúdo que na lei orgânica é natural e inerente. Não apenas isso. Pretende-se aplicar à lei complementar o mesmo princípio de reserva constitucional negativa que o constituinte francês criou para a lei orgânica, mas o constituinte brasileiro não criou para a lei complementar.

58. – Em 18 de abril de 1795, a Convenção Constitucional preparatória da Constituição francesa de 26 de agosto de 1795 já se referia expressamente a uma categoria de leis destinadas a regular a organização estrutural do estado, as leis orgânicas. A Convenção nomeou uma comissão composta de onze membros encarregados de “preparar as leis necessárias para por a Constituição em atividade” (L.Dechamps, “Le pouvoir legislatif dans la Constitution de 1848”, Tese Rennes, 1905, p.40/41). Os membros dessa comissão, na sua primeira reunião entenderam “qu’il ne devait pas être question entre eux ni de lois organiques, ni de Constitution de 1793, mais de preparer le plan d’une Constitution raisonnable” (A.Aulard, “Histoire politique de la Revolution française”, p.548).

59. – A primeira a vez que a expressão lei orgânica apareceu no próprio texto constitucional francês foi na Constituição de 1848, que em diferentes passagens prevê a edição de leis orgânicas posteriores e complementares à Constituição. O artigo 115 da Constituição de 1848 acabou por prever que: “Article 115. Après le vote de la Constitution, il sera procédé, par l’Assemblée nationale constituante, à la rédaction des lois organiques dont l’énumération será déterminée par une loi spéciale.”

60. – Desse dispositivo se devem extrair duas considerações muito importantes. A primeira é a de que as leis orgânicas previstas na Constituição francesa de 1848 seriam redigidas pela própria Assembléia Nacional Constituinte (par l’Assemblée nationale constituante), e não pelo legislador ordinário. A segunda consideração é a de que a Constituição previu que uma lista taxativa de leis orgânicas cuja enumeração seria feita por uma lei especial (des lois organiques dont l’énumération sera déterminée par une loi spéciale).

61. – Pela Constituição Francesa de 1848 estabeleceu-se reserva constitucional exaustiva para a elaboração e promulgação de leis orgânicas. Àquela altura, no direito francês as chamadas leis orgânicas só podiam ser editadas pelo próprio poder constituinte e só podiam versar sobre uma lista de matérias pré-definidas em lei especial.

62. – E de fato, foi editada a Lei Especial de 11 de dezembro de 1848 exclusivamente para enumerar as matérias que deveriam ser objeto de futuras leis orgânicas a serem editadas para complementar a Constituição.

63. – Note-se, entretanto, que aí se cuidava de o próprio poder constituinte, a Assembléia Nacional constituinte editar determinadas leis complementares previamente listadas em lei especial, tudo durante o processo de elaboração constitucional.

64. – A lei orgânica tinha, na Constituição francesa de 1848, um estado de lei constitucional. Observa Jean-Christophe Car: “Votadas pela Assembléia Nacional Constituinte, elas são, pelo fato da natureza de seu autor, elevadas à categoria constitucional. Sua modificação não podia, pois, ocorrer a não ser por meio de uma revisão constitucional. Em 4 de setembro de 1848 foi tomada por uma grande maioria a decisão segundo a qual a Assembléia Nacional Constituinte não se dissolveria antes de votar aquelas leis orgânicas, cujo número será determinado por um decreto especial editado imediatamente após a votação da Constituição” (“Le lois Organiques de Lárticle 46 de la Constitution du 4 Octobre 1958”, Presse Universitaire Dáix-Marseille, p.16) .

65. – Atualmente, a lei orgânica está prevista especialmente nos artigos 46 e 61 da Constituição francesa de 4 de outubro de 1958, que estabelecem: “Art.46 – Les lois auxquelles la Constitution confère le caractère de lois organiques sont votées et modifiées dans les conditions suivantes. Le projet ou la proposition n’est soumis à la délibération et au vote de la première assemblée saisie qu’à l’expiration d’un délai de quinze jours après son dépôt. La procédure de l’article 45 est applicable. Toutefois, faute d’accord entre les deux assemblées, le texte ne peut être adopté par l’Assemblée nationale en dernière lecture qu’à la majorité absolue de ses membres. Les lois organiques relatives au Sénat doivent être votées dans les mêmes termes par les deux assemblées. Les lois organiques ne peuvent être promulguées qu’après la déclaration par le Conseil constitutionnel de leur conformité à la Constitution”. “Article 61 – Les lois organiques, avant leur promulgation, et les règlements des assemblées parlementaires, avant leur mise en application, doivent être soumis au Conseil constitutionnel qui se prononce sur leur conformité à la Constitution. (Loi constitutionnelle n° 74-904 du 29 octobre 1974) “Aux mêmes fins, les lois peuvent être déférées au Conseil constitutionnel, avant leur promulgation, par le Président de la République, le Premier ministre, le président de l’Assembléenationale, le président du Sénat, ou soixante députés ou soixante sénateurs.”. Dans les cas prévus aux deux alinéas précédents, le Conseil constitutionnel doit statuer dans le délai d’un mois. Toutefois, à la demande du Gouvernement, s’il y a urgence, ce délai est ramené à huit jours. Dans ces mêmes cas, la saisine du Conseil constitutionnel suspend le délai de promulgation”.


66. – Portanto, na França são consideradas leis orgânicas aquelas que a Constituição define como orgânicas. E só a estas se aplica o rito próprio de promulgação das leis orgânicas. Não existe no direito constitucional francês uma categoria genérica de lei complementar. Toda lei complementar é orgânica e como tal designada. Mas, o traço marcante da lei orgânica francesa é o fato de que tais leis estão sujeitas a um controle preventivo e antecipado de constitucionalidade: as leis orgânicas francesas não podem ser promulgadas antes de o Conselho Constitucional declarar a sua adequação e conformidade à Constituição (art.46 e art.61 acima transcritos).

67. – No direito espanhol a lei orgânica tem uma definição constitucional de conteúdo e de forma. Diz a Constituição espanhola: “Artículo 81

1. Son leyes orgánicas las relativas al desarrollo de los derechos fundamentales y de las libertades públicas, las que aprueben los Estatutos de Autonomía y el régimen electoral general y las demás previstas en la Constitución.

2. La aprobación, modificación o derogación de las leyes orgánicas exigirá mayoría absoluta del Congreso, en una votación final sobre el conjunto del Proyecto.”

68. – Assim, segundo a Constituição espanhola, não basta o requisito de forma. É preciso que a lei orgânica trate de matéria relativa aos direitos fundamentais, às liberdades públicas, aos Estatutos de Autonomia, ao regime eleitoral e às demais matérias expressamente previstas na Constituição.

69. – No Brasil, entretanto, sequer se reconhece às leis complementares o caráter de normas constitucionais. Daí todo o esforço dos juristas em classificá-las como leis intercalares, tertium genus ou outras denominações que as coloquem em eqüidistância das normas constitucionais e das leis ordinárias.

VI. – LEI COMPLEMENTAR E LEI ORGÂNICA

70. – É sabido que a categoria de leis complementares no Brasil originalmente se inspirou no direito francês. As leis complementares foram concebidas no nosso direito a exemplo das leis orgânicas francesas. Entretanto, embora a lei complementar e a lei orgânica complementem a Constituição, é de fundamental importância acentuar as distinções entre a lei complementar e a lei orgânica.

71. – A lei orgânica é identificada pelo seu conteúdo. Só é lei orgânica a que confira estrutura e organização a determinada atividade do Estado ou instituto de Direito Público. Corresponderá, sempre e necessariamente, aos efeitos constitutivos de determinados órgãos, organismos ou institutos, que o legislador elege para a formação estrutural do Estado. São as normas de organização, a que se refere Luiz Roberto Barroso (item 24 acima). Portanto, a lei orgânica é, por definição, materialmente orgânica. Não existe lei formalmente orgânica, que não seja materialmente orgânica.

72. – Leon Duguit identifica como leis orgânicas todas as que criam os órgãos do Estado e que fixam sua estrutura (Traité du Droit Constitutionel, vol.1, pág.144). Define, pois, a lei orgânica pelo seu conteúdo. O que levou Aurelino Leal a afirmar:

“Duguit dá-lhes o nome de leis construtivas. Também se me afigura sem importância a indagação sobre se elas são, ou não, leis materiais, porque não compreendo como se possa, de qualquer modo, contestar-lhes tal caráter” (“Teoria e Prática da Constituição Federal Brasileira”, Comentários ao art.34 da Constituição de 1891, Aurelino Leal, F. Briguiet Editores, 1925).

73. – João Barbalho, em seus comentários à Constituição de 1891, toma emprestado de Domingos Vieira (Grande Dicionário Português), a definição de lei orgânica: “Leis orgânicas – Leis que têm por objeto regular o modo, e a ação das instituições ou estabelecimentos cujo princípio foi consagrado por uma lei precedente”.

74. – E prossegue João Barbalho lembrando que foi graças ao poder de criar leis orgânicas, conferido pelo art. 34 da citada Constituição de 1891, que o legislador ordinário pode criar o Tribunal de Contas (Lei (orgânica) nº392, de 8 de outubro de 1896) e regular a competência privativa dos ministérios (Lei (orgânica) nº23, de 30 de outubro de 1893).

75. – Embora faça referências expressas (art.11, art.29, art.32) à lei orgânica como lei de construção de determinadas estruturas, a Constituição de 1988 não enumerou a lei orgânica entre as modalidades diferenciadas de lei previstas no artigo 59 da Constituição. Portanto, não existe no direito brasileiro uma forma pré-definida, nem um processo legislativo especial e genericamente previsto para todas as leis orgânicas. Leis orgânicas são, no direito brasileiro, materialmente orgânicas, mas sem forma preestabelecida.


76. – É extraordinariamente importante anotar que enquanto a doutrina identifica lei complementar e lei orgânica, tendendo majoritariamente a considerar o caráter orgânico da lei como conteúdo intrínseco da lei complementar, a Constituição brasileira as vê e trata como espécies diferentes de lei. E sequer coloca a lei orgânica como espécie destacada na hierarquia das leis.

77. – Existem, na legislação brasileira, leis orgânicas que tomaram a forma de lei complementar, e existem leis orgânicas que tomaram a forma de lei ordinária.

78. – Exemplificativamente, são ordinárias a (i) Lei Orgânica da Previdência Social (Lei nº 3807, de 26 de Agosto de 1960); (ii) a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº 8625, de 12 de Fevereiro de 1993); (iii) a Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096, de 19 de Setembro de 1995); (iv) Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (Lei nº 8.443, de 16 de Julho de 1992).

79. – Ainda exemplificativamente, são complementares a (i) Lei Orgânica da Advocacia Geral da União (Lei Complementar nº 73, de 10 de Fevereiro de 1993) e a (ii) Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar nº 35, de 14 de Março de 1979).

80. – De sua parte, a lei complementar no sistema constitucional brasileiro constitui uma categoria legislativa diferenciada pela solenidade da forma, e pelo posicionamento prevalecente na hierarquia das leis infraconstitucionais.

81. – É a forma de sua elaboração, e especialmente o seu quorum qualificado de aprovação nas duas Casas do Congresso que faz da lei complementar o que realmente é: norma complementar à Constituição, provida de estabilidade que advém de maior rigidez no seu sistema de aprovação, supressão ou alteração.

82. – Embora seja, como todas as demais leis do país, uma lei que se junta à Constituição, para completá-la, para integrá-la, preencher-lhe as aberturas e conferir conteúdo a diretrizes traçadas, a lei complementar diferencia-se das demais leis pelos seus requisitos de forma.

83. – Lei orgânica é lei orgânica porque contém materialidade específica, própria da organização do Estado. Se não tiver conteúdo material de lei orgânica, a lei não será orgânica, sob pena de se incorrer em contradição dos próprios termos.

84. – A sua vez, lei complementar só é lei complementar porque observa a forma de lei complementar. Mas, aqui alguns doutrinadores e juízes juntam uma outra exigência. Alem de ter a forma de lei complementar, a lei complementar deveria tratar de matéria para a qual a Constituição tenha exigido, expressamente, lei complementar.

VII. – LEI COMPLEMENTAR FORMAL E MATERIAL

85. – Lei complementar formal é aquela que observa, pela iniciativa do processo parlamentar e pelo rito legislativo que se segue, a forma de lei complementar. Lei complementar material, segundo a doutrina, é a que trata da organização, da estrutura do Estado. Mas, muitas vezes a doutrina também considera lei complementar material aquela que foi expressamente exigida pela Constituição, independentemente da matéria de que efetivamente cuide. Ou seja, parte da doutrina, aparentemente rigorosa com o que seja lei complementar material, contraditoriamente indica como essência material da lei complementar um mero requisito de forma: ter sido exigida pela Constituição. Independentemente do conteúdo ontológico.

86. – Celso Ribeiro Bastos expõe as definições doutrinárias da lei complementar material: “Isto porque, como já examinado no capítulo atinente à aplicabilidade das normas constitucionais, estas, por vezes, não trazem consigo todos os elementos necessários à implementação, à eficácia, portanto, de sua vontade. Esta dispõe de forma muito mais ampla, destina-se à regulação de uma matéria, ou, se quisermos, a incidir sobre um campo muito mais amplo que os elementos técnicos oferecidos pela sua estrutura normativa; permitem, desde logo, torná-la efetiva. Este descompasso entre a vontade legal, que se vislumbra com uma determinada extensão, e os efeitos jurídicos produzidos, que ficam aquém, esse espaço carente de normatividade é preenchível pela categoria normativa denominada lei complementar. Ela possui essa denominação em virtude da sua natureza de norma integrativa da vontade constitucional. Eis porque podemos afirmar que nesse caso a lei é complementar segundo um critério ontológico. É examinando o próprio ser da norma integradora e o papel por ela representado na composição dos comandos constitucionais, que vai ser possível cognominá-la de complementar”.

87. – O mesmo Celso Ribeiro Bastos aponta a discrepância ou ambigüidade entre a definição doutrinária de lei complementar material que exige conteúdo específico para a lei complementar e a definição doutrinária paralela, que considera lei complementar material aquela que tenha sido formalmente exigida pelo texto constitucional: “Não é, entretanto, a esse tipo de norma que se reporta o inciso II do art. 46. Ele denota, na verdade, uma espécie normativa, tida por complementar, mas segundo um ponto de vista formal. Vale dizer que a ela é emprestado um especial regime jurídico, que a seguir será examinado. De pronto, todavia, cumpre frisar com insistência a idéia de que, no nosso atual sistema constitucional, as leis complementares, erigidas a tal, de um ponto de vista formal, não se confundem com as tradicionais leis complementares, calcadas em um critério ontológico. “Daí a conseqüência seguinte: continuam a existir, em nosso sistema, leis complementares segundo este último critério, sem que nada tenham a ver com a espécie normativa prevista no inciso II do art. 46” (nota: o autor se referia ao art. 46 da Constituição anterior, repetido no art. 59 da atual Constituição) (obra citada, pág. 162).


88. – Pensamento semelhante já expressara Geraldo Ataliba, referindo-se à distinção entre leis que tratam de matéria complementar à Constituição, e leis para as quais a Constituição exige a forma de Lei Complementar: “E a distinção é importante, não só porque umas são expressamente requeridas e outras só implicitamente admitidas – o que importa fazer supor mais importantes aquelas do que estas — mas, também, porque a Constituição atribui regimes jurídicos diversos a cada espécie.

Com efeito, as leis complementares exigidas explicitamente somente podem ser elaboradas pelo processo especial previsto no texto constitucional — o que lhes dá cunho formal próprio — enquanto as demais, sob tal perspectiva (a formal) se confundem com a lei ordinária” (Lei Complementar na Constituição, Ed. Revista dos Tribunais, págs. 28 e 29).

89. – Lei complementar, por definição constitucional, é a que tenha observado a forma de lei complementar. A Constituição não distingue entre leis complementares materiais e formais.

90. – Para a edição de lei complementar a Constituição faz uma única exigência de forma, sem indicar, declinar ou exigir o conteúdo material da lei complementar: “Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta”.

91. – Grande parte da dificuldade que se tem na compreensão do que seja, e do que não seja, lei complementar material decorre de percepções e expectativas equivocadas da doutrina. A maioria dos doutrinadores pretende que se considere como lei complementar apenas aquela que preencha requisitos ontológicos, cuidando de matéria intrínseca à organização do Estado. Mas, esses mesmos doutrinadores reconhecem como lei materialmente complementar aquela que tenha sido expressamente exigida como tal na Constituição. O paradoxo está em que a Constituição exige lei complementar para matérias que não são ontologicamente ligadas à organização do Estado.

92. – Constitui grave equívoco pretender desqualificar como lei complementar aquela que não tenha conteúdo de lei orgânica. Imaginar que só possa haver lei complementar para tratar de matéria que diga respeito à estrutura do Estado, é supor que a Constituição, embora contenha normas de conduta, normas programáticas e normas de organização, só poderia ser complementada por leis complementares nos seus conteúdos que digam respeito à organização do Estado. O que não é verdade.

93. – Basta percorrer o elenco de situações jurídicas em que a Constituição exige lei complementar, para se constatar que a lei complementar pode referir-se a matérias estrita e conceitualmente constitucionais, ou a quaisquer outras matérias a que o legislador pretendeu conferir estabilidade normativa. Por vontade política.

Pelos mesmos motivos que o legislador constituinte trouxe para dentro da Constituição, protegidas pela forma desta, matérias que poderiam ser disciplinadas em legislação ordinária.

94. – Não é orgânica, ou “materialmente complementar” a lei complementar exigida pelo art.7º da Constituição para disciplinar a relação de emprego e a despedida sem justa causa. Não é orgânica, ou “materialmente complementar” a lei complementar exigida pelo § 9º do art. 14 da Constituição, para disciplinar inelegibilidades eleitorais. Não é orgânica, ou “materialmente complementar” a lei complementar exigida no inciso IV do art.21 da Constituição Federal, para disciplinar o transito de tropas estrangeiras pelo território nacional. Poder-se-iam citar inúmeros outros exemplos.

95. – Portanto, para se saber se uma lei é materialmente complementar não se pode buscar na doutrina o conceito ontológico de lei complementar, e muito menos buscar o conceito ontológico de lei orgânica. É preciso se ater ao que a Constituição previu, exigiu ou tolerou como lei complementar.

VIII. – LEI COMPLEMENTAR NA DOUTRINA

96. – Quando se fala em lei complementar, assim abreviadamente, é preciso não nos esquecermos de que estamos falando de lei complementar à Constituição. A própria expressão “complementar” merece detida reflexão.

97. – É oportuna a observação de Victor Nunes Leal segundo a qual todas as leis completam a Constituição, havida como lei fundamental. “Em princípio, todas as leis são complementares porque se destinam a completar princípios básicos enunciados na Constituição. Geralmente, porém, se reserva esta denominação para aquelas leis sem as quais determinados dispositivos constitucionais não podem ser aplicados” (“Lei Complementar na Constituição”, Revista de Direito Administrativo, v. VII, jan./mar. 1947, p.381).

98. – Diferentemente do que ocorre com o decreto que regulamenta a lei, e precisa se ater ao que nela foi estabelecido, a lei complementar não apenas regulamenta a Constituição, como também a completa, transformando normas programáticas ou normas diretivas em normas de conduta ou de organização determinadas.


99. – Aqui se deve recapitular a lição dos constitucionalistas, como Luiz Roberto Barroso acima citado, segundo cujo ensinamento as normas constitucionais, pela sua especial natureza, expressam “linguagem constitucional, própria à veiculação de normas principiológicas e esquemáticas” o que faz com que “apresentem maior abertura, maior grau de abstração e, conseqüentemente, menor densidade jurídica” (obra citada, pág.107). Fazem-se necessárias, em razão disso, outras leis que preencham os espaços abertos e lhes confiram exeqüibilidade jurídica, freqüentemente como normas de conduta, algumas vezes como normas de organização.

100. – Essas normas integrativas das Constituições sempre existiram, pela razão inegável de que as Constituições criam estruturas do Estado, conferem direitos, obrigações e diretrizes, mas, não esgotam os sistemas legislativos dos Estados.

101. – Mas, quando a doutrina se refere a leis complementares em sentido estrito é para destacar, das leis em geral que complementam a Constituição, aquelas que compõem uma categoria específica, de maior rigor formal em sua elaboração e aprovação, e que dão estrutura orgânica ao Estado ou seus agentes, ou tornam exeqüíveis determinadas normas constitucionais que não são auto-executáveis.

102. – Doutrinariamente, pode-se discutir a classificação genérica da lei complementar. Há quem a considere lei infraconstitucional em nível de igualdade hierárquica com a lei ordinária, há quem a considere hierarquicamente acima da lei ordinária. E há quem a considere como um terceiro gênero, em categoria própria.

103. – Controvertida que seja a classificação, a doutrina é mais ou menos confusa na consideração do conteúdo natural ou necessário da lei complementar. Os doutrinadores mais ortodoxos, influenciados pelo modelo francês, entendem que lei complementar só deveria tratar de matérias necessárias à estruturação organizacional e atuação do Estado e seus órgãos ou agentes. Propugnam, na verdade, pela identificação entre a lei complementar e a lei orgânica. A doutrina, entretanto, e às vezes pela voz dos mesmos doutrinadores, considera lei materialmente complementar a que tenha sido expressamente exigida como tal pela Constituição, independentemente de seu conteúdo.

IX. – LEI COMPLEMENTAR NA CONSTITUIÇÃO

104. – A Constituição, entretanto, não identifica lei complementar com lei orgânica.

105. – Na história do Direito Constitucional brasileiro há registros de referências expressas feitas pelas sucessivas Constituições a leis complementadoras, subseqüentes a texto constitucional e necessárias à concretização da vontade constitucional. A primeira dessas referências aparece já na Constituição do Império, a de 1824. O inciso V do artigo 6º faz uma alusão à necessidade de uma lei subseqüente à Constituição, que deveria indicar os requisitos a serem atendidos para a naturalização de estrangeiro, posto que a Constituição assegurava essa naturalização, sem regular o seu procedimento.

106. – Terá sido essa, eventualmente, a razão para José Afonso da Silva (Aplicabilidade das normas constitucionais 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 28) afirmar que a Constituição do Império conheceu a lei complementar em sentido amplo.

107. – Foi na Constituição de 1891, por influência e esforço de Ruy Barbosa, que se introduziu a referência à necessidade de subseqüente lei orgânica, com o caráter complementar. “Art 34 – Compete privativamente ao Congresso Nacional:

1º)…

2º) ….

34º) decretar as leis orgânicas para a execução completa da Constituição”.

108. – Sobre a Carta de 1891, aduz Ruy Barbosa: “As constituições não têm o caráter analítico das codificações legislativas”. São como se sabe, largas sínteses, sumas de princípios gerais, onde, por via de regra, só se encontra o substractum de cada instituição nas suas normas dominantes, estrutura de cada uma, reduzida, as mais das vezes, a uma característica, a uma indicação, a um traço. Ao legislador, cumpre, ordinariamente, revestir-lhes o organismo adequado, e lhes dar capacidade real de ação.

É o que sentia a nossa Constituinte, e o que a nossa Constituição exprime, quando, no art. 34, depois de enumerar, em 32 cláusulas sucessivas, as atribuições do Congresso Nacional, declara nas duas subseqüentes, que a ele, privativamente, compete: “Decretar as leis e resoluções necessárias ao exercício dos poderes, que pertencem à União; decretar as leis orgânicas para a execução completa da Constituição” (a Lei Complementar Tributária, 1975rts. 33 e 34) (Apud, Geraldo Ataliba, Eficácia jurídica das normas complementares. Revista de Direito Público, São Paulo, v.4, n°13, p.35-44, jul./set. 1970.)


109. – As diversas e subseqüentes Constituições brasileiras mantiveram a previsão de leis orgânicas. Confira-se a Constituição de 1934:

“Art 39 – Compete privativamente ao Poder Legislativo, com a sanção do Presidente da República”:

1) decretar leis orgânicas para a completa execução da Constituição”; “Art 82 – A Justiça Eleitoral terá por órgãos: o Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, na Capital da República; um Tribunal Regional na Capital de cada Estado, na do Território do Acre e no Distrito Federal; e Juízes singulares nas sedes e com as atribuições que a lei designar, além das Juntas especiais admitidas no art. 83, § 3º. § 1º – § “6º – Durante o tempo em que, servirem, os órgãos da Justiça Eleitoral gozarão das garantias das letras b e c do art. 64, e, nessa qualidade, não terão outras incompatibilidades senão as que forem declaradas nas leis orgânicas da mesma Justiça”.

Art 131 – É vedada a propriedade de empresas jornalísticas, políticas ou noticiosas a sociedades anônimas por ações ao portador e a estrangeiros. Estes e as pessoas jurídicas não podem ser acionistas das sociedades anônimas proprietárias de tais empresas. A responsabilidade principal e de orientação intelectual ou administrativa da imprensa política ou noticiosa só por brasileiros natos pode ser exercida. A lei orgânica de imprensa estabelecerá regras relativas ao trabalho dos redatores, operários e demais empregados, assegurando-lhes estabilidade, férias e aposentadoria.

110. – Depois de a Constituição de 1937 haver silenciado sobre a lei orgânica, diz a Constituição de 1946: Art. 12 – Os Estados e os Municípios, enquanto não se promulgarem as Constituições estaduais, e o Distrito Federal, até ser decretada a sua lei orgânica, serão administrados de conformidade com a legislação vigente na data da promulgação deste Ato.

111. – A inspiração brasileira para a adoção de leis orgânicas e integrativas em caráter complementar à Constituição, veio do direito europeu, especialmente e como já se disse, do direito francês, onde tal categoria de leis existe pelo menos desde a Constituição de 1848.

112. – Observa Pinto Ferreira que: “diversas constituições européias aludem a leis orgânicas muito semelhantes às nossas leis complementares, como a da Finlândia, de 17/07/1919, em seu parágrafo 17, como a Constituição francesa de 04/10/58, emendada em 1960, 1962 e 1963. Na França, há diversas leis orgânicas que se identificam com leis complementares fundamentais, já que o seu processo legislativo é diferente daquele consignado para as leis ordinárias. Há assim uma identificação, salvo na nomenclatura, entre as leis orgânicas fundamentais do direito francês e as leis complementares do sistema pátrio.”

113. – Pinto Ferreira também faz referência à distinção entre leis fundamentais (fundamental laws) e leis orgânicas (organic laws) estabelecida pelo direito constitucional norte-americano, no qual Cooley denominou lei suplementar (supplemental legislation) àquelas que completam da lei fundamental. — (verbete Lei Complementar in Enciclopédia Saraiva de Direito, São Paulo, Saraiva, 1977, vol. 48, p. 493).

114. – Cabe aqui, contudo, importante ênfase. As leis orgânicas francesas diziam respeito na sua origem à organização de poderes e serviços do Estado. O Artigo 113 da Constituição Francesa de 1848 dispunha que “todas as autoridades constituídas pelas leis atuais permanecerão em exercício até à promulgação das leis orgânicas que lhes concernem”.

115. – No Brasil, entretanto, a Lei Complementar só tomou o caráter formal destacado de que hoje se reveste a partir da Emenda Constitucional nº 4, à Constituição de 1.946. Foi a partir daquela Emenda Constitucional que se conferiu a determinadas leis integrativas da Constituição o caráter formal e hierarquicamente prevalecente de Lei Complementar.

116. – Dispunha a Emenda Constitucional nº 4 de 2 de setembro de 1961: “Art. 22. – Poder-se-á complementar a organização do sistema parlamentar de Governo ora instituído, mediante leis votadas, nas duas Casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta de seus membros”.

117. – Com essa disposição constitucional, embora sem aludir à expressão lei complementar, criou-se a previsão de leis cuja finalidade era complementar a organização do sistema de governo prevista na Constituição. Leis que deveriam ser votadas nas duas Casas do Congresso Nacional pela maioria absoluta dos seus membros. A natureza conceitual da lei era de lei orgânica, que diria respeito à organização do sistema parlamentar. A função era complementar o sistema parlamentar esboçado na Constituição, pela via da Emenda Constitucional.


118. – O adjetivo “complementar”, aparece pela primeira vez para qualificar uma determinada categoria de leis integradoras da Constituição no § 8º do artigo 6º da Emenda Constitucional nº 17, de 1965:

“Art. 6º § “8º – Os projetos de leis complementares da Constituição e os de Código ou reforma de Código receberão emenda perante as comissões e sua tramitação obedecerá aos prazos que forem estabelecidos nos regimentos internos ou em resoluções especiais”.

119. – Posteriormente, a categoria de lei complementar foi consagrada na Constituição de 1967. Caracteriza-se, aqui, o forte distanciamento conceitual entre lei complementar e lei orgânica, na medida em que se passa a considerar a categoria lei complementar independentemente de conter, ou não, o conteúdo orgânico. A Constituição destaca os requisitos de forma, sem a imposição de qualquer parâmetro de conteúdo: “Art 53 – As leis complementares à Constituição serão votadas por maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso Nacional, observados os demais termos da votação das leis ordinárias.”

120. – A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, voltou a conferir destaque e solenidade à lei complementar: “Art. 50. As leis complementares somente serão aprovadas, se obtiverem maioria absoluta dos votos dos membros das duas Casas do Congresso Nacional, observados os demais termos da votação das leis ordinárias”.

121. – A Constituição de 1988 situou a lei complementar hierarquicamente abaixo da Constituição e das Emendas Constitucionais (art.59). Mas, estabeleceu para o processo legislativo da lei complementar forma específica, exigindo quorum formado pela maioria absoluta: “Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta.”

122. – Aprovadas nesses termos, adverte José Afonso da Silva, “sancionadas, promulgadas e publicadas, entram em vigor, e somente podem ser alteradas pelo mesmo processo” (Comentário Contextual à Constituição, Malheiros Editores, 1ª Edição, pág. 461).

X. – PRINCÍPIO DA RESERVA CONSTITUCIONAL

123. – A Constituição, referindo-se à legislação infraconstitucional, ora alude à espécie lei complementar, ora alude à espécie lei ordinária, ora alude simplesmente ao gênero lei.

124. – Ao exigir que determinadas matérias sejam objeto de legislação infraconstitucional de determinados gênero ou espécies, a Constituição cria a reserva legal para aquele gênero ou para aquelas espécies de lei.

125. – O princípio da reserva legal é assim definido por Jose Afonso da Silva: “tem-se, pois, reserva de lei, quando uma norma constitucional atribui determinada matéria exclusivamente à lei formal (ou a atos equiparados, na interpretação firmada na praxe), subtraindo-a, com isso, à disciplina de outras fontes, àquela subordinada” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., São Paulo, Malheiros, 1992, p. 368).

126. – O princípio da reserva legal não se confunde com o princípio da legalidade. Este exige a existência de lei para obrigar ou proibir determinada conduta. O princípio da reserva legal é a definição constitucional da forma legislativa infraconstitucional a ser observada.

(I) Reserva Constitucional Positiva e Negativa para a Lei Complementar

127. – Existe, no direito brasileiro a reserva legal positiva para a lei complementar. Mas, ao contrário do que ocorre no direito espanhol (art.81 da Constituição espanhola), onde a reserva tem dupla natureza, a das matérias enumeradas e a da referência aos artigos da Constituição, não existe na Constituição brasileira uma reserva da lei complementar para determinados grupos de assuntos segundo a sua natureza.

128. – A Constituição Federal denuncia, nos Art. 7º, I; Art. 14, § 9º; Art. 18,§ 2º, § 3º e § 4º; Art. 21, IV; Art.22, Parágrafo único ; Art.23 Parágrafo único; Art. 25, § 3º; Art. 37, XIX; Art. 41, § 1º, III; Art. 43, § 1º; Art. 45, § 1º; Art. 49, II; Art.59, Parágrafo Único; Art. 62, § 1º, III; Art. 68, § 1º; Art.79 Parágrafo Único; Art. 84, XXII; Art.93; Art.121; Art.128, II, § 4º; Art.129, VI e VII; Art.131; Art. 134, § 1º; Art. 142. § 1º; Art.146 e Art. 146, Parágrafo Único; Art.146 A; Art.148; Art.153,VII; Art.154, I; Art. 155, § 1º, III, § 2º, XII; Art. 156. § 3º; Art.161; Art.163; Art. 165, § 9º; Art. 166, § 6º; Art.168; Art169; Art. 169, § 2º, § 3º, § 4º; Art. 184, § 3º; Art. 195, § 11º; Art. 198, § 2º, I, § 3º; Art. 201, § 1º; Art. 202 e § 4º, § 5º,§ 6º; Art. 231, § 6º; Art.239 e 239 § 1º, assim como nas Disposições Transitórias, Art.10; Art.29, § 1º,§ 2º; Art.34,§ 2º, I, § 7º § 8º § 9º; Art. 34, § 2º; Art.38; Art.39, Parágrafo Único; Art.77, § 4º; Art.79; Art.80 , § 2º; Art.82, § 1º; Art.88; Art. 91 e § 2º, e § 3º; as hipóteses em que só se pode legislar por lei complementar. Aqui se trata de matérias a respeito das quais só se pode legislar por meio de lei complementar. Essa é a reserva legal positiva e expressa da Constituição em relação à lei complementar.


129. – Mas, não existe no direito brasileiro a expressa reserva legal negativa da lei complementar. Uma vez que a Constituição não constrói reserva positiva pela indicação de grupos de assuntos, não se pode dizer que determinados assuntos, tendo ficado fora da reserva constitucional positiva da lei complementar constituiriam a reserva negativa implícita.

130. – A indicação pontual de exigência de lei complementar para determinadas matérias específicas em artigos específicos da Constituição também não autoriza a afirmação de que as matérias não objeto de exigência expressa constituiriam reserva negativa. Quando o constituinte quis compor reserva negativa, o fez expressamente. Exemplificativamente, para a medida provisória existe uma reserva negativa. O art. 62, § 1º, III da Constituição diz expressamente que não se pode editar medida provisória para matéria reservada à lei complementar. Não há qualquer previsão constitucional proibindo a edição de lei complementar fora das hipóteses em que a Constituição expressamente a exige.

131. – Por interpretação sistemática, se pode entender que as matérias expressamente reservadas à lei ordinária constituem reserva legal negativa implícita da lei complementar. Para aquelas hipóteses em que a Constituição expressamente previu lei ordinária, não cabe lei complementar.

(II) Reserva Constitucional Positiva e Negativa para a Lei Ordinária

132. – Quando o legislador constituinte indicou determinadas matérias como objeto de lei ordinária, criou a reserva legal da lei ordinária. Independentemente da hierarquia entre lei ordinária e lei complementar, o constituinte escolheu determinadas matérias a serem reguladas por legislação infraconstitucional ordinária. Entendeu e decretou constitucionalmente que, em razão da relativa relevância jurídica e política que atribuiu a tais matérias, bastaria que um determinado número de congressistas, ou de representantes do povo brasileiro aprovasse as normas pertinentes. Submeteu tais matérias a um regime legislativo que tornaria mais fácil a promulgação das respectivas normas legais, e mais simples e fácil a sua reforma.

133. – Em relação às matérias expressamente destinadas pela Constituição à regulamentação pela lei ordinária não pode haver regulamentação pela lei complementar, porque a Constituinte entendeu que para a edição de leis relativas a tais matérias basta a concordância de vontades de um menor número de representantes do povo. Exigir que um maior número de parlamentares aprove a regulamentação de tais matérias, em dois turnos, seria criar para tal regulamentação dificuldades ou obstáculos que o constituinte não desejou.

134. – No artigo 59 da Constituição e no 72 incisos III e V do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, exemplificativamente, se exige expressamente a lei ordinária e tais matérias constituem, portanto, reserva legal positiva da lei ordinária.

(III) Reserva Legal Aberta na Constituição

135. – A par das hipóteses em que a Constituição expressamente previu a edição da espécie lei complementar, e das hipóteses em que expressamente previu a edição da espécie lei ordinária, existem muitas outras hipóteses em que o constituinte exige a edição de lei, mencionada apenas pelo gênero, sem optar necessariamente por qualquer das espécies legislativas.

136. – Confiram-se, exemplificativamente, os artigos 35, II, III; 39; 40, Parágrafo Único; 43; 49; 50; 54, § 3º; 55; 56; 59; 62; art.60, § 7º.

137. – Nesses casos, o constituinte se ateve ao princípio da legalidade, exigindo que alguma lei regulasse a matéria. Não necessariamente ordinária, não necessariamente complementar. O princípio da legalidade, nesse caso, se considerou suficiente e adequadamente atendido em qualquer das modalidades de lei. Criou-se uma reserva legal aberta, sem restringi-la à lei de determinada espécie.

138. – À custa de repetição irrefletida, criou-se o preconceito de que toda vez que a Constituição se refere a lei, está se referindo a lei ordinária. Não é assim, e se pode facilmente demonstrar que não é assim. Por exemplo, quando o artigo 5º da Constituição diz que todos são iguais perante a lei, está obviamente tratando da lei como gênero, e não como espécie. A ninguém ocorreria dizer que todos só são iguais perante a lei ordinária, porque o princípio da igualdade não precisaria ser respeitado por outra espécie de lei que não fosse a ordinária. Nas inúmeras vezes em que a Constituição se refere a “lei” como reduto das garantias individuais e coletivas está sempre se referindo a lei como gênero, em qualquer de suas espécies ou processos legislativos.

139. – Nada no texto constitucional autoriza afirmar-se que a Constituição proíba a edição de leis complementares fora das hipóteses em que expressamente as exigiu.


Nada na Constituição conduz à interpretação de que as hipóteses de lei complementar nela previstas sejam numerus clausus ou componham uma enumeração fechada.

140. – A Constituição também exige, em determinadas hipóteses, leis ordinárias federais, estaduais ou municipais que dêem exeqüibilidade às suas normas programáticas. Mas, a ninguém ocorreria dizer que as leis ordinárias federais, estaduais ou municipais só poderiam ser editadas nas hipóteses em que a constituição a elas expressamente se refere.

141. – No julgamento da ADI 2028 MC/DF, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, o arguto relator Ministro Moreira Alves afirmou, apoiado unanimemente por seus pares: “De há muito já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que só é exigível lei complementar quanto a Constituição expressamente a ela faz alusão com referência a determinada matéria, o que significa dizer que quando a Carta Magna alude genericamente a “lei” para estabelecer princípio de reserva legal, essa expressão compreende tanto a legislação ordinária, nas suas diferentes modalidades, quanto a legislação complementar.” (Negritos acrescentados. ADI 2028 MC/DF – Distrito Federal – Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade – Votação Unânime).

142. – Portanto, ou a Constituição exige lei de determinada espécie, seja ordinária, seja complementar, ou a Constituição exige apenas o gênero lei, permitindo que o legislador infraconstitucional opte entre a lei ordinária e a lei complementar. Existe a reserva legal, mas esta é aberta às duas espécies de lei.

143. – Essa possibilidade de edição de lei complementar sobre matérias a respeito das quais o constituinte não exigiu lei complementar, mas exigiu lei, genericamente considerada, levou o jurista Paulo de Barros Carvalho a se referir às leis complementares implicitamente previstas na Constituição: “Nada obstante, o direito que entre nos vigora erigiu conceito de lei complementar que nos interessa conhecer por tratar-se de noção jurídico-positiva: lei complementar é aquela que, dispondo de matéria, expressa ou implicitamente, prevista na redação constitucional, está submetida ao quorum qualificado do art. 69 (CF), isto é, maioria absoluta nas duas Casas do Congresso Nacional” (Curso de Direito Tributário, 1993, p.135).

144. – A Constituição não é taxativa quanto às matérias que possam ser objeto de lei complementar, e não proíbe o recurso a tal forma legislativa fora das hipóteses em que expressamente a exige. Isso não escapou à costumeira argúcia de Hugo de Brito Machado: “É certo que a Constituição estabelece que certas matérias só podem ser tratadas por lei complementar, mas isto não significa de nenhum modo que a lei complementar não possa regular outras matérias, e, em se tratando de norma cuja aprovação exige quorum qualificado, não é razoável entender-se que pode ser alterada, ou revogada, por lei ordinária” (Curso de Direito Tributário, Ed. Malheiros, 12ª edição, pág.54).

XI. – HIERARQUIA DAS LEIS

145. – As leis no Brasil, como em quase todos os países do mundo, estão organizadas de forma a que as diferentes normas legais, de diferentes abrangências, disciplinando fatos e atos diversos, elaboradas por entes federais, estaduais e municipais, se inter-relacionam de forma orgânica e sistematizada. Compõem osistema legal do país.

146. – O sistema legal pressupõe competências e hierarquias. Como todo sistema, a legislação se organiza de forma a adquirir coerência, funcionalidade e eficácia. Era a esse conjunto organizado de normas que se referia Hans Kelsen: “A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas” (Teoria Geral do Direito e do Estado, Ed. 1976, p.310).

147. – Pelo princípio das competências legislativas, cabe a determinadas categorias de normas jurídicas ou a determinados entes políticos disciplinar determinadas matérias. Os artigos 22, 23 e 24 da Constituição, estabelecem regras de competência exclusiva ou concorrente para os entes políticos da República. A Constituição, em vários de seus artigos, estabelece competência exclusiva da lei complementar para a normatização das matérias que indica.

148. – Em radical formulação lógica, se deve admitir que só pode haver subordinação hierárquica entre normas legais que respeitem os limites de abrangência impostos pela própria categoria legislativa em que se inserem, e tenham sido elaboradas por ente político que tenha competência para fazê-lo.

149. – Norma que exorbite a sua própria categoria legislativa não é hierarquicamente superior nem inferior a outra que, dentro da categoria legislativa adequada, discipline a mesma matéria. Nessa hipótese, não se cogita de hierarquia. Trata-se, tão-somente, de considerar inconstitucional, ineficaz ou nula a norma exorbitante. Não havendo sobreposição possível, por independência das competências e abrangências, não há que se falar em posição superior, ou posição inferior, nem como se investigar a ordem hierárquica.


150. – Da mesma forma, se a União legisla sobre matéria municipal, em que lhe falte competência, tal legislação não prevalece. Por exemplo, há vedação constitucional expressa à legislação federal concessiva de isenções de impostos estaduais, do Distrito Federal, ou municipais (art.151, III da Constituição). Caso lei federal venha a conceder isenção de imposto municipal, essa lei não prevalece. Não porque a lei municipal que criou o imposto seja hierarquicamente superior à lei federal concessiva da isenção. Simplesmente porque a lei federal será ineficaz, por violação de regra constitucional de competência. Mas, se a competência for concorrente e União, Estado e Município puderem legislar sobre a mesma matéria, incidirá a hierarquia entre as normas de competências concorrentes.

151. – Essa ordem lógica de idéias a respeito das competências legislativas, leva alguns autores a negar superioridade hierárquica entre a lei complementar e a lei ordinária. Esse foi o pensamento de Celso Ribeiro Bastos: “Na verdade, a lei ordinária e a complementar não se subordinam reciprocamente (o que se verifica, por exemplo, entre a lei e o regulamento), porquanto versam matérias distintas e buscam seus fundamentos de validade diretamente na Constituição” (Lei Complementar Teoria e Comentários, Celso Bastos Editor, 1999, pág. 59).

152. – O pensamento certamente se inspira em José Souto Maior Borges: “Já nesse ponto, cabe extrair a conclusão fundamental para a correta interpretação do modo de atuação das competências legislativas no direito brasileiro, de que não há desnivelamento e, portanto, hierarquização, considerada uma relação de supra (supremacia) e subordinação, vínculo entre normas jurídicas de graus diversos, no campo da legislação ordinária das pessoas constitucionais, mas sim uma repartição de competências legislativas estabelecidas na própria Constituição” (Lei Complementar Tributária, pág.16).

153. – E não discrepa da visão objetiva de Carlos Maximiliano: “A validade da lei ordinária decorre, em princípio, da sua conformação com a Constituição. Apenas a lei ordinária é obrigada a respeitar o campo privativo da legislação complementar, tal como esta não pode invadir o campo da lei ordinária” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 6ª Ed. Freitas Bastos, pág.332).

154. – As considerações sobre as competências legislativas, entretanto, devem necessariamente levar em conta as competências concorrentes. E, não excluem, antes confirmam, o conceito de hierarquia, pelo qual em caso de simultânea incidência, total ou parcial, de mais de uma norma sobre a mesma situação jurídica, a norma de situação hierárquica superior prevalece sobre qualquer outra.

155. – Essa gradação valorativa condicionante da eficácia da norma deve levar em conta que competência e hierarquia são conceitos que não se excluem. Antes se completam e atuam simultaneamente na organização do sistema jurídico. Quando uma determinada espécie de lei não é competente para reger determinada matéria, evidentemente não se coloca a questão da hierarquia. A legislação editada fora da competência legislativa da espécie de lei escolhida não compete, não tem superioridade e não tem inferioridade em relação à legislação sobre a mesma matéria, editada dentro da competência legislativa de outra espécie de lei. Portanto, quando se trate de legislação fora da competência da espécie legislativa, não há concorrência de normas, e não pode haver apelo aos critérios de hierarquia, para a solução do conflito.

156. – Contudo, podem existir, como efetivamente existem largamente, situações em que leis ordinárias e leis complementares tratam da mesma matéria, em diferentes níveis. Tome-se como exemplo uma lei ordinária qualquer, a respeito de matéria tributária. Lei que tenha sido editada dentro da absoluta competência legislativa da lei ordinária. Contraponha-se tal lei com o Código Tributário Nacional, lei complementar não pela sua origem, mas pelo fenômeno da recepção constitucional. Inegavelmente há uma hierarquia entre qualquer ou toda lei ordinária tributária e a lei tributária maior, complementar, que é o Código Tributário Nacional.

157. – A afirmação que se faz é a de que competência e hierarquia não se confundem, verificando-se o fenômeno da hierarquia entre leis de diferentes níveis, que tenham observado as respectivas competências. Nesse sentido, a lei complementar tributária é superior hierarquicamente à lei ordinária tributária.

158. – Não há divergência quanto ao fato de que no mais alto ponto da hierarquia legal se encontra a própria Constituição. Esta, por sua vez, ao se referir às categorias de normas jurídicas que admite, as organiza em seqüência: “Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:


I – emendas à Constituição;

II – leis complementares;

III – leis ordinárias;

IV – leis delegadas;

V – medidas provisórias;

VI – decretos legislativos;

VII – resoluções.

Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.”

159. – É inquestionável que essa seqüência organizada na Constituição tem um propósito e um efeito hierárquicos. Na realidade, e claramente, o que a Constituição está dizendo é que as espécies legislativas mencionadas antes têm precedência hierárquica sobre as subseqüentes.

160. – No que se refere à identidade do ente público que as elabora, e havendo competência concorrente, as leis federais prevalecem sobre as estaduais e sobre as municipais, e as estaduais sobre as municipais. Sob esse enfoque, a superioridade hierárquica das leis é determinada pela posição, na República, do ente político que as elabora.

161. – A Lei Complementar ocupa posição hierárquica logo abaixo da Constituição e das Emendas Constitucionais. E, portanto, acima das leis ordinárias.

162. – Na França, de onde se origina a nossa lei orgânica, a prevalência hierárquica da lei orgânica sobre a lei ordinária é amplamente reconhecida pela doutrina: “As disposições precedentes se aplicam, no entanto, de um modo um tanto diferente no caso das leis orgânicas, quer dizer, de leis às quais a Constituição conferiu este caráter: são, em geral, leis relativas à aplicação da Constituição quanto à organização dos Poderes Públicos. Antes, o processo de estabelecimento ou de modificação das leis orgânicas era o mesmo que o das leis ordinárias. A Constituição atual previu, ao contrário, regras especiais para as leis orgânicas que as colocam acima das leis ordinárias: de qualquer modo, entre as leis ordinárias e a própria Constituição” (Maurice Duverger – Instituitions Politiques e Droit Constitutionnel, Presses Universitaires de France, 1990, pág.617).

163. – A grande maioria dos doutrinadores brasileiros reconhece a superioridade hierárquica da lei complementar em relação à lei ordinária: “Na escala hierárquica das normas jurídicas, a lei complementar se situa logo abaixo da Constituição”. Na técnica adotada, tal inserção sistemática, como vimos, importa superioridade desta espécie, no seu campo, sobre as demais normas jurídicas. Tal superioridade, que se traduz na impossibilidade das demais normas disciplinarem suas matérias específicas, é circunscrita, por outro lado, só ao campo constitucionalmente previsto como próprio da lei complementar “(Geraldo Ataliba, Lei Complementar na Constituição, RT Editora, 1971, pág.57)”. 164. – Pontes de Miranda intercala a lei complementar entre a lei ordinária e as regras jurídicas constitucionais: “Nenhum princípio a prior pré-exclui que, na hierarquia das leis, haja outros graus que não as resultantes das duas classes: regras jurídicas constitucionais e regras jurídicas ordinárias”. Na Constituição vigente, já não cabe nenhuma dúvida quanto ao posto hierárquico da lei complementar. “Pela primeira vez, as expressões lei complementar e lei ordinária aparecem no texto constitucional, numa enumeração de atos legislativos”.

165. – A superioridade hierárquica da lei complementar tem em Hugo de Brito Machado um defensor: “Na verdade, a lei complementar é hierarquicamente superior à lei ordinária” (Curso de Direito Tributário, Ed. Malheiros, 12ª edição, pág.54).

166. – Obviamente, o reconhecimento de que haja hierarquia e superioridade da lei complementar em relação à lei ordinária, implica necessariamente em reconhecer que os campos de abrangência da lei complementar e da lei ordinária se podem sobrepor, ainda que parcialmente, no trato de determinados direitos ou institutos jurídicos.

167. – A concorrência entre a lei complementar e a lei ordinária não trata apenas de considerar e estabelecer as matérias que competem à lei ordinária e as que competem à lei complementar. Trata-se de situá-las no contexto da forma da lei e seu conteúdo jurídico, da segurança jurídica, da hierarquia das leis, das reservas legais e do próprio poder de legislar.

XII. – PODER CONSTITUINTE E PODER DE LEGISLAR

168. – Nega-se, com razão, à lei complementar o caráter de norma constitucional. Mas, analisa-se a sua elaboração como se fora um poder constituinte derivado.

169. – Renomados juristas apregoam que só podem tomar a forma de lei complementar, as matérias a que a Constituição expressamente se refere como exigentes de lei complementar. Segundo essa doutrina, é a Constituição quem diz quais as matérias que deverão desfrutar da estabilidade que lhes conferem o processo legislativo e a forma da Lei Complementar.


170. – Assim ensina Celso Ribeiro Bastos: “As atuais leis complementares à Constituição caracterizam-se por serem normas a serem utilizadas pelo legislador ordinário, submetido a um procedimento especial para sua elaboração, nos casos e somente nestes, em que a própria Constituição as preveja” (obra citada, pág.162).

171. – Atente-se para o paradoxo. Para elaborar Emendas Constitucionais sobre quaisquer matérias, exceto as que atentem contra os fundamentos da República (art. 60, § 4º da Constituição) o Congresso Nacional tem ampla liberdade, observados os requisitos de forma. Mas, para elaborar leis complementares o Congresso Nacional estaria restrito àquelas hipóteses em que a própria Constituição fez referência expressa à lei complementar.

172. – Para emendar a Constituição, que significa revogar e reescrever alguns de seus dispositivos haveria liberdade maior do que para completá-la. Simplesmente não faz sentido.

173. – A Constituição, e só a Constituição, determinaria em que contexto caberia a elaboração de Lei Complementar.

174. – A Constituição, entretanto, expressa suas determinações na linguagem constitucional. Expressa uma vontade firme, ideológica, política, de intensas conseqüências jurídicas. Mas, expressa tal vontade, na linguagem a que Luiz Roberto Barroso se refere como “de menor densidade jurídica” (obra citada, pág.107), por força da peculiar natureza da linguagem constitucional. Pela sua natureza, a Constituição é um instrumento de manifestação de vontades explícitas e implícitas.

175. – O modelo constitucional brasileiro, que trouxe para o texto constitucional inúmeras matérias que a rigor não dizem respeito ao ato de constituir e estruturar o Estado ou de regular os direitos fundamentais, não pode, naturalmente, regular tais matérias à exaustão. Nas que apenas enunciou princípios, criou a necessidade de leis complementares que lhes dessem executoriedade. Criou para o legislador ordinário um amplo espaço de poder para legislar. Se o próprio texto constitucional, sabidamente prolixo, está eivado de matérias que não são ontologicamente constitucionais, não se pode pretender que as leis complementares se atenham a matérias de organização do Estado.

176. – A expressão do caráter político das Constituições se revela muitas vezes na lei complementar, quando o legislador manifesta a legítima vontade de conferir relevância e estabilidade a determinadas normas, ainda que não digam respeito diretamente a direitos fundamentais ou à estrutura do Estado. Confere a tais normas a forma de lei complementar pela vontade política de considerá-las entre as fundamentais do sistema jurídico, capazes de garantir a segurança jurídica prometida pela Constituição em suas normas não auto-executáveis.

177. – A Constituição reconhece a independência do Poder Legislativo (art.44) e o seu livre exercício (art.85, II). É também a Constituição, no seu artigo 61, que cuida de assegurar o direito a determinados entes político de tomar a iniciativa de propor a edição de leis complementares e ou de leis ordinárias. Cada qual a ser promulgada segundo os seus ritos e formas.

178. – Constitui direito constitucional desses entes políticos, nas hipóteses em que não haja exigência constitucional expressa de lei complementar ou de lei ordinária, escolher a espécie de lei que desejam editar. Se em matéria que não esteja expressamente reservada à lei ordinária o legislador decide editar lei complementar, ainda que não haja previsão constitucional expressa de lei complementar para tal matéria, exerce o legislador o seu poder de constitucional de legislar. Da mesma forma que o texto constitucional contém o caráter político a que se refere Luiz Roberto Barroso, é preciso admitir que em determinadas circunstâncias esse caráter político intrínseco à Constituição se comunique às leis que a complementam. Às leis complementares.

179. – Quando a Constituição exige simplesmente a edição de lei, referindo-se ao gênero sem distinguir entre as espécies, tem o legislador o direito de escolha segundo a sua vontade política e segundo o grau de segurança ou estabilidade jurídica que queira ver conferidos ao texto legal. Nessas hipóteses, não pode o Poder Judiciário decidir que, por se filiar a determinada corrente de doutrina, entende que o Legislativo deveria ter escolhido a hipótese tal ou qual. Ou existe obrigação constitucional de se editar lei de determinada espécie, e a edição de outra espécie será violação constitucional de forma, ou não existe tal obrigação quanto à espécie de lei, e a faculdade de escolha integrará o poder de legislar.

180. – Não se está aqui apregoando que o legislador deva fazer uso indiscriminado da lei complementar, editando-a arbitrariamente em qualquer circunstância. É perfeitamente válida a advertência de José Afonso da Silva, quando propõe que não se banalize a lei complementar: “As leis complementares tornaram-se moda. Sempre que se quer dar uma certa majestade à regulamentação de determinada matéria, usa-se a lei complementar, com o quê, na verdade, se está deformando um conceito que deveria ser preservado com maior rigor” (Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 1998, p. 238).


181. – Essa prudente advertência, ou ponderação em favor da consistência doutrinária, se dirige ao legislador e não ao juiz. É ao legislador que se incentiva o uso criterioso do seu poder discricionário de escolher entre as formas legislativas possíveis.

182. – Isso não obstante, da mesma forma que o poder legislativo tem o poder discricionário de propor e aprovar emendas à Constituição, sem limitação prévia de matérias e apenas segundo a sua autodisciplina doutrinária ou vocação política, também tem o poder legislativo autonomia constitucional para, discricionariamente, propor e aprovar lei complementar, quando não haja vedação constitucional expressa.

183. – Portanto, no nosso regime jurídico não faz sentido adotar-se a regra geral de rebaixar o status de lei complementar, para dizer que por haver sido editada em hipótese que a Constituição não a exigia expressamente, deve ser sempre tratada como lei ordinária. A prudência que se propõe ao legislador no uso do seu poder discricionário de escolher entre as diferentes formas legislativas, não pode ser tomada como apoio ao arbítrio do judiciário, que não está autorizado a alterar a forma legislativa escolhida pelo legislador, exceto quando está for ilegal.

184. – Nas hipóteses em que a Constituição expressamente exigir lei ordinária, a lei complementar pode ser considerada violadora da reserva constitucional da lei ordinária. Nesse caso, a lei complementar não fará jus à garantia e à estabilidade que a Constituição assegura para a categoria de lei complementar, e poderá ser considerada como se fora lei ordinária, sob pena de se prestigiar a usurpação de forma.

185. – Mas, nas inúmeras hipóteses em que a Constituição exige simplesmente a edição de lei infraconstitucional sem discriminar a espécie, a opção do legislador por uma determinada espécie é legítima e não pode ser modificada pelo Poder Judiciário, para tratar como lei ordinária o que se editou como lei complementar.

186. – Existem leis complementares expressamente exigidas pela Constituição, e leis complementares implicitamente admitidas pela Constituição: “umas são expressamente requeridas e outras só implicitamente admitidas” (Geraldo Ataliba, Lei Complementar na Constituição, Ed. Revista dos Tribunais, págs. 28 e 29 ).

187. – Quando a Constituição exige expressamente a lei ordinária e se edita lei complementar a lei complementar será constitucional quanto ao conteúdo e inconstitucional quanto à forma. Do que decorre ser razoável que se lhe derrogue apenas a forma, trazendo-a ao patamar de lei ordinária.

188. – Mas, quando a Constituição exige simplesmente lei, pelo gênero, e o legislador escolhe a espécie lei complementar não há nenhuma inconstitucionalidade de forma. Ocorre o exercício de uma liberdade constitucional de legislar. Tratar como categoria menor as leis complementares não exigidas, mas admitidas pela Constituição, rebaixando-as à condição de lei ordinária, significa desrespeitar o sistema constitucional e violentar legítima opção do legislador infraconstitucional.

XIII. – LEIS TRIBUTÁRIAS E CONSTITUIÇÃO

189. – O direito tributário está histórica e intimamente ligado ao direito constitucional. Na MAGNA CARTA (Magna Charta Libertatum – 1215) que o rei João da Inglaterra, dito João Sem-Terra, assinou, em 15 de junho de 1215, perante o alto clero e os barões do reino da Inglaterra, se estabeleceu pela primeira vez, no confronto do poder real com a força crescente dos senhores feudais e da Igreja, a limitação constitucional ao poder de lançar impostos: “Não lançaremos taxas ou tributos sem o consentimento do conselho geral do reino (commue concilium regni), a não ser para resgate da nossa pessoa, para armar cavaleiro nosso filho mais velho e para celebrar, mas uma única vez, o casamento da nossa filha mais velha; e esses tributos não excederão limites razoáveis. De igual maneira se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres, E, quando o conselho geral do reino tiver de reunir para se ocupar do lançamento dos impostos, exceto nos três casos indicados, e do lançamento de taxas, convocaremos por carta, individualmente, os arcebispos, abades, condes e os principais barões do reino; além disso, convocaremos para dia e lugar determinados, com a antecedência, pelo menos, de quarenta dias, por meio dos nossos xerifes e bailios, todas as outras pessoas que nos têm por suserano; e em todas as cartas de convocatória exporemos a causa da convocação; e proceder-seá à deliberação do dia designado em conformidade com o conselho dos que não tenham comparecido todos os convocados”.

190. – As constituições que se sucederam na história dos povos a partir da Carta Magna da Inglaterra cuidaram de assegurar a estrutura do Estado, os serviços públicos e a representação popular em coexistência com as liberdades individuais, as garantias políticas e as garantias econômicas. Em praticamente todas as constituições se cuidou de limitar o poder de tributar, mediante a edição de princípios constitucionais tributários.


191. – Não foi e não tem sido diferente no Brasil. Na Constituição brasileira os impostos foram larga e amplamente tratados na Constituição, que exigiu expressamente a edição de lei complementar para dar executoriedade às disposições constitucionais tributárias (art.146). Já houve quem dissesse, sem nenhum desdouro para o Supremo Tribunal Federal que este, a corte constitucional do Brasil, seria também o seu tribunal tributário por excelência, tal o número de incidências entre o direito tributário e o direito constitucional.

192. – A Constituição Federal de 1988 definiu no Capítulo I do Título IV o Sistema Tributário Nacional. Como o nome esclarece, disciplinou todos os tributos em um sistema, vale dizer de forma organizada, concatenados uns tributos em relação aos outros de forma consistente e operativa. Dentro do Sistema Tributário Nacional existem única e exclusivamente as seguintes espécies de tributos: a) impostos (art.145, I); b) taxas (art.145, II); c) contribuição de melhoria (art.145, III); d) empréstimos compulsórios (art.148); e) contribuições sociais (art. 149); f) contribuições de intervenção no domínio econômico (art. 149); e g) a contribuição de interesse das categorias profissionais ou econômicas (art.149). Fora dessas espécies tributárias não existem quaisquer tributos amparados na Constituição. 193. – No que se refere à espécie impostos, dentro do gênero tributos, a Constituição adotou dois critérios de proteção ao contribuinte, ambos exigentes de lei complementar, com toda a formalidade de quorum e rito que essa modalidade de lei observa, para segurança e estabilidade jurídicas. O primeiro critério foi o de exigir lei complementar para estabelecer as regras de conflito de competência em matéria tributária, limitações ao poder de tributar, e normas gerais em matéria de legislação tributária (art. 146). O segundo critério foi o de enumerar taxativamente todos os impostos que a União pode cobrar (art.153) e determinar que nenhum outro imposto pode ser criado pela União a não ser por meio de lei complementar (art.154). Exceção exclusivamente para os impostos extraordinários em caso de guerra externa. Portanto, a espécie impostos, dentro do gênero tributos, não admite nenhum imposto que não tenha sido taxativamente enumerado na Constituição ou expressamente criado por lei complementar, sempre dentro de princípios estabelecidos por lei complementar geral, a que se refere o art.146.

194. – No que se refere à espécie empréstimos compulsórios, dentro do gênero tributos, a previsão constitucional é clara, simples e direta. O Artigo 148 exige lei complementar.

195. – No que se refere à espécie contribuição, dentro do gênero tributos, a constituição prevê três espécies, ou três modalidades de contribuição: a contribuição social, a de intervenção no domínio econômico, e a contribuição de interesse das categorias profissionais ou econômicas. Fora dessas hipóteses constitucionais, não existe contribuição tributária legítima.

196. – Ocorre que, ao tratar da espécie contribuição social, o legislador constitucional não exige nem afasta qualquer espécie de lei. Não faz alusão nem à lei complementar, nem à lei ordinária. No artigo 149, em que trata da contribuição social, da contribuição de intervenção no domínio econômico e da contribuição de interesse das categorias profissionais ou econômicas, o legislador constitucional sequer usou a palavra “lei”: “Art.149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo”.

197. – A exigência de lei prévia aparece no artigo 149 por referência ao artigo 150, I.

198. – No art. 195 em que trata da contribuição social para o financiamento da seguridade social, o legislador constitucional se referiu a “lei”, sem formular exigência expressa de lei ordinária ou lei complementar: “Art.195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: …”

199. – Pelo princípio da interpretação sistemática, e no silêncio de manifestação expressa da Constituição, é inteiramente descabido afirmar-se que a criação de contribuições sociais estivesse dentro da reserva constitucional da lei ordinária.

Primeiro, porque a Constituição, ao tratar da contribuição social, não se refere a lei ordinária. E, segundo e mais importante, porque para as duas outras espécies do gênero tributo, ou seja, para o imposto e para o empréstimo compulsório, a Constituição exigiu expressamente a lei complementar. Por tanto, pelo princípio da interpretação sistemática e no silencio da Constituição, andou bem o legislador ao, no exercício do seu poder de legislar, escolher a lei complementar para instituir contribuição social. Não merece a censura do Poder Judiciário.


200. – É extraordinariamente importante considerar que, por mais argutas ou sofisticadas que sejam as formulações teóricas tentativas de classificar a contribuição social como uma espécie diferenciada de tributo, o fato é que a contribuição social está sujeita aos mesmos princípios e regras constitucionais a que se submetem todos os tributos. Não fora assim, bastaria aos governantes e legisladores chamar de contribuição social a um novo tributo, para escamoteá-lo das garantias constitucionais.

201. – Na sua acepção semântica e no seu conteúdo ontológico contribuição social nada mais é do que um tributo. Contribuição social é o aporte financeiro que a sociedade faz para um determinado serviço público. A expressão “contribuição” é um eufemismo, que deixa no fundo do pensamento a idéia de espontaneidade, contrastando com a idéia de imposição, inerente ao imposto, ou contrastando com a idéia de eventualidade, ou de transitoriedade, que impregna o empréstimo compulsório. Mas, é evidente que a contribuição social de que se cuida é imposta, é compulsória, e possui todos os elementos essenciais do tributo. Portanto, está sujeita às mesmas regras constitucionais a que se submetem os tributos. Entre essas regras, aquela do artigo 146, que prevê a necessidade de lei complementar.

202. – Além das inferências da interpretação sistemática, pode-se afirmar que existe exigência implícita na Constituição para que a contribuição social, seja a prevista no art.149, seja a prevista no art. 195, sejam criadas por lei complementar.

203. – No artigo 149, ao prever a contribuição social de intervenção no domínio econômico e da contribuição social de interesse das categorias profissionais ou econômicas, a Constituição faz referência expressa à necessidade de observância ao artigo 146, III, que exige lei complementar para estabelecer a definição dos fatos geradores, das bases de cálculos e dos contribuintes dos tributos previstos na Constituição.

204. – Quanto ao financiamento da seguridade social, previsto no art. 195, a exigência implícita de lei complementar é ainda mais fortemente perceptível. Não passe sem ser notado o fato de que o §11 do art. 195 da Constituição expressamente exige que o teto para a remissão ou anistia das contribuições sociais seja estabelecido em lei complementar: “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: § 11. É vedada a concessão de remissão ou anistia das contribuições sociais de que tratam os incisos I, a, e II deste artigo, para débitos em montante superior ao fixado em lei complementar” ((Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

205. – Afronta a consistência de qualquer interpretação sistemática afirmar-se que para a instituição da contribuição social, a definição de seu fato gerador e respectivas bases de cálculo, assim como identificação dos contribuintes, das isenções e imunidades se pudesse prescindir de lei complementar. Mas, exclusivamente para fixar o teto das pertinentes anistias se exigiria lei complementar.

206. – Por último, neste capítulo, acentue-se que constitui prática corrente do sistema legislativo brasileiro a instituição e a eliminação de tributos pela via da lei complementar. Assim foi para apenas mencionar as leis complementares posteriores à Constituição de 1988, com o próprio Código Tributário Nacional, recepcionado como lei complementar e com a: Lei Complementar – 59 de 22/12/1988

Dá nova redação ao parágrafo 3 do artigo 91 da Lei 5.172, de 25 de Outubro de 1966 (Código Tributário Nacional). Lei Complementar – 61 de 26/12/1989

Estabelece normas para a participação dos Estados e do Distrito Federal no produto da arrecadação do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI, relativamente às exportações. Lei Complementar – 63 de 11/01/1990

Dispõe sobre critérios e prazos de crédito das parcelas do produto da arrecadação de impostos de competência dos Estados e de transferências por estes recebidas, pertencentes aos municípios, e dá outras providências. Lei Complementar – 65 de 15/04/1991

Define, na forma da alínea A do inciso X do artigo 155 da Constituição, os produtos semi-elaborados que podem ser tributados pelos Estados e Distrito Federal, quando de sua exportação para o exterior. Lei Complementar – 77 de 13/07/1993

Institui o Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – IMPF e dá outras providências. Lei Complementar – 84 de 18/01/1996

Institui fonte de custeio para a manutenção da seguridade social, na forma do parágrafo 4 do artigo 195 da Constituição Federal, e dá outras providências. Lei Complementar – 85 de 15/02/1996


Altera o artigo 7 da Lei Complementar 70, de 30 de dezembro de 1991, que estabelece a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – Cofins. Lei Complementar – 87 de 13/09/1996

Dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências. Lei Complementar – 92 de 23/12/1997

Altera a legislação do imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Lei Complementar – 99 de 20/12/1999

Dá nova redação ao inciso I do artigo 33 da Lei Complementar 87, de 13 de Setembro de 1996, que dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências. Lei Complementar – 100 de 22/12/1999

Altera o Decreto-Lei 406, de 31 de Dezembro de 1968, e a Lei Complementar 56, de 15 de Dezembro de 1987, para acrescentar serviço sujeito ao imposto sobre serviços de qualquer natureza. Lei Complementar – 102 de 11/07/2000

Altera dispositivos da Lei Complementar 87, de 13 de Setembro de 1996, que “Dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências”. Lei Complementar – 104 de 10/01/2001

Alteração, Dispositivos, Código Tributário Nacional. Critérios, Limitação, Competência Tributária, Proibição, União Federal, Estados, (DF), Municípios, Cobrança, Impostos, Obrigação Tributária, Crédito Tributário, Imposto de Renda. Lei Complementar – 110 de 29/06/2001

Institui contribuições sociais, autoriza créditos de complementos de atualização monetária em contas vinculadas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e dá outras providências. Lei Complementar – 114 de 16/12/2002

Altera dispositivos da Lei Complementar 87, de 13 de setembro de 1996, que dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências. Lei Complementar – 116 de 31/07/2003

Dispõe sobre o imposto sobre serviços de qualquer natureza, de competência dos municípios e Distrito Federal, e dá outras providências. Lei Complementar – 118 de 09/02/2005

Altera e acrescenta dispositivos da Lei 5.172, de 25 de Outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, e dispõe sobre a interpretação do inciso I do artigo 168 da mesma Lei. Lei Complementar – 120 de 29/12/2005

Altera dispositivos da Lei Complementar 87, de 13 de Setembro de 1996, que dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências.

207. – A conclusão que se propõe é a de que, toda vez que a Constituição não tenha expressamente indicado o fato gerador, a base de calculo e os contribuintes, ou que não tenha criado norma auto-executável, ou que o Código Tributário Nacional não torne auto-executável, exige-se lei complementar, nos casos expressamente previstos na Constituição, ou cabe lei complementar, nos casos implicitamente previstos na Constituição e nos casos politicamente escolhidos pelo legislador, segundo o seu poder discricionário de legislar.

XIV. – A LEI COMPLEMENTAR 70/91

208. – As premissas e pressupostos acima enunciados já permitem que se enfrente a questão central. Portanto, resta saber se, ao editar a Lei Complementar 70/91, que instituiu a cobrança de contribuição social para financiamento da Seguridade Social, nos termos do inciso I do artigo 195 da Constituição Federal, devida pelas pessoas jurídicas, inclusive a elas equiparadas pela legislação do Imposto sobre a Renda, destinadas exclusivamente às despesas com atividades fins das áreas de saúde, previdência e assistência social e isentou de pagamento as sociedades civis, o legislador agiu dentro dos limites constitucionais, elaborando normas para as quais a Constituição tivesse admitido, previsto, ou exigido lei complementar.

209. – Inicialmente observe-se que a contribuição social para financiamento da seguridade social, ou das despesas de saúde, previdência e assistência social, foi criada pela Lei Complementar 70/91 para se equiparar a outros programas de interesse social, o Programa de Integração Social, o PIS, e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, o PASEP. Tratam-se de três programas similares, de interesse social, com fontes de custeio da mesma natureza tributária. Diz o artigo 1º da Lei Complementar nº 70/91: “Art. 1º – Sem prejuízo da cobrança das contribuições para o Programa de Integração Social – PIS e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PASEP fica instituída contribuição social para financiamento da Seguridade Social….”


210. – Não por mera coincidência, o Programa de Integração Social PIS foi criado pela Lei Complementar 07 de 7 de setembro de 1970. E o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público foi criado pela Lei Complementar 08, de 03 de dezembro de 1970. Portanto, não faz sentido imaginar-se que para criar as contribuições sociais ao Programa de Integração Social e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público a Constituição exigisse lei complementar, mas a contribuição social para financiamento da Seguridade Social teria “implicitamente” ficado na reserva constitucional da lei ordinária. Similis similibus curantur.

211. – A primeira conclusão que se sustenta é a de que qualquer que seja ou que fosse a matéria da Lei Complementar 70/91, a Constituição não distingue entre leis complementares de forma ou leis complementares por matéria, e não proíbe a edição de lei complementar fora das hipóteses em que a exige. Portanto, a Lei Complementar 70/91 tem o pleno e completo status de lei complementar, com a estabilidade que disso decorre, especialmente para o efeito de não poder ser revogada por lei ordinária.

212. – Vencida que fosse, por hipótese, essa conclusão, restaria saber se a matéria da Lei Complementar 70/91 se insere, ou não, entre aquelas para as quais a Constituição exige, ainda que implicitamente, lei complementar. A resposta é, outra vez, afirmativa.

213. – A contribuição social de que cuida a Lei Complementar 70/91 está prevista no artigo 195 da Constituição: “Art. 195 – A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

b) a receita ou o faturamento; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

c) o lucro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

III – sobre a receita de concursos de prognósticos.

IV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)”.

214. – Quer se trate de contribuição instrumento de intervenção no domínio econômico, quer se trate de financiamento da seguridade social, as contribuições fazem parte, repita-se, do Sistema Tributário Nacional.

215. – No capítulo do Sistema Tributário Nacional, mais especificamente no artigo 146, a Constituição expressamente exige lei complementar para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição dos tributos, fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes: “Art. 146. Cabe à lei complementar:

I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)”

216. – O Código Tributário Nacional editado pela Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966, e renomeado pelo Ato Complementar nº 36 de 13 de março de 1967, foi recepcionado pela Constituição de 1988 com a força de Lei Complementar a que alude o referido artigo 146. Esse o entendimento predominante da doutrina e da jurisprudência.

217. – Entretanto, o Código Tributário Nacional não faz qualquer alusão a contribuições sociais para o fim de financiar a seguridade social. A expressão e o conceito “contribuição social” não aparecem uma única vez no Código Tributário Nacional. Em outras palavras, o Código Tributário Nacional não satisfaz no que se refere às contribuições sociais, a exigência de lei complementar contida no artigo 146.


218. – Portanto, e apesar da exigência do artigo 146 da Constituição, e exceto pela Lei Complementar 70/91, não existe lei complementar definindo, em complementação ao artigo 195 da Constituição, o fato gerador, a base de cálculo os contribuintes, a obrigação, o lançamento e o crédito referentes às contribuições sociais a que genericamente se refere o artigo 195 da Constituição.

219. – Quando se procede à interpretação dessas disposições constitucionais, merece situar-se acima de qualquer questionamento a afirmação de que a Constituição exige lei complementar para a definição dos fatos geradores, definição das bases de cálculo e definição dos contribuintes dos impostos discriminados na Constituição.

220. – Há quem sustente que a exigência de lei complementar para definir fatos geradores, bases de cálculo e o universo de contribuintes se aplica exclusivamente aos impostos discriminados na Constituição, conforme expressamente exige o seu artigo 146, III. Não se aplicaria à generalidade dos tributos. Entretanto, a limitação dessa exigência aos impostos discriminados da Constituição faria letra morta do artigo 149 da mesma Constituição, que expressa, taxativa e enfaticamente manda observar, também com relação às contribuições sociais, a regra do artigo 146, III.

221. – Ou seja, quando a Constituição se refere a um determinado imposto, o faz por normas incompletas, programáticas, e a definição do respectivo fato gerador, da base de cálculo e do universo de contribuintes será feita por lei complementar. Confira-se, por repetição didática, a letra (a) do inciso III, do art. 146: “a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a (definição) dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”. A mesma regra, da necessidade de lei complementar para definir o fato gerador, a base de cálculo e o universo de contribuintes se aplica às contribuições sociais, por força do artigo 149, que expressamente reenvia o regramento das contribuições sociais à norma do artigo 146, III.

222. – A letra “a” do artigo 146, inciso III, prevê que o fato gerador, a base de cálculo e os contribuintes estejam definidos em lei complementar. Para o comum dos impostos, e especialmente para os impostos já previstos na Constituição, considera-se que a lei complementar a que se refere o artigo 146, inciso III, letra “a” é o próprio Código Tributário Nacional. Entretanto, para a contribuição social de financiamento da seguridade social, posterior ao Código Tributário e prevista no art.195, I, como lei a ser criada, não existe lei complementar anterior que defina o fato gerador, a base de cálculo e os contribuintes.

223. – Para os impostos já expressamente previstos na Constituição, basta a lei complementar geral, prevista no art.146 (a que o Código Tributário Nacional equivaleu por recepção), exceto quando a própria Constituição exige, expressamente, lei complementar para um ou outro caso ou alíquota. Para os impostos novos, é necessário lei complementar (art. 154).

224. – Já no que se refere às contribuições sociais, o artigo 195, I da Constituição Federal não é norma auto-executável. É daquelas normas abertas que exigem lei que as complementem. O que, aliás, está expressamente previsto no artigo 149. Que lei deverá completar a Constituição nesse aspecto? Nada impedia que fosse a lei complementar. A interpretação sistemática identifica exigência implícita de lei complementar. Veja-se a letra “d” do inciso III do art. 146 que expressamente exige lei complementar para a definição de tratamento diferenciado e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais, no caso das contribuições sociais a que se refere o art. 195, I. Veja-se o artigo 146 A, que expressamente exige lei complementar para estabelecer critérios especiais de tributação.

225. – Foi exatamente o que fez a Lei Complementar 70. Ao definir, como manda o artigo 146, III, “a”, os contribuintes da contribuição social prevista no artigo 195, I, equiparou as sociedades civis às empresas de pequeno porte e as isentou de contribuição. Em síntese, criou para as sociedades civis um regime especial, que as coloca à salvo da incidência da contribuição social para a seguridade social.

XV. – CONCLUSÃO

226. – O quanto aqui se expôs permite presumir que estejam devidamente fundamentadas as seguintes conclusões:

(i) A Constituição fixa para a lei complementar exclusivamente requisitos de forma, relacionados ao processo legislativo;

(ii) Não existe na Constituição qualquer proibição à edição de leis complementares a respeito de matérias em que não haja expressa exigência constitucional de lei complementar, desde que tais matérias não constituam reserva constitucional expressa da lei ordinária;

(iii) Lei complementar não se confunde com lei orgânica. O fato de determinada lei complementar não ter o conteúdo de lei orgânica não a descaracteriza como lei complementar;

(iv) Lei complementar não pode ser reformada por lei ordinária, exceto quando trate de matéria expressamente reservada para a lei ordinária;

(v) As contribuições sociais não foram previstas ou disciplinadas no Código Tributário Nacional, do que resulta que lei complementar específica deverá definir, em relação às contribuições sociais, o fato gerador, a base de cálculo, os contribuintes, e as isenções;

(vi) A Lei Complementar 70/91 cuida de matéria para a qual a Constituição, implicitamente e por interpretação sistemática, exigia lei complementar;

(vii) Ainda que assim não fosse, o sistema constitucional brasileiro não proíbe que o legislador, no exercício do poder discricionário de legislar, eleja determinadas matérias para ser objeto de Emenda Constitucional, lei complementar ou lei ordinária;

(viii) A Lei Complementar 70/91 é, formal e materialmente, lei complementar.

Mas ainda que fosse apenas formalmente lei complementar, tanto bastaria para assegurar às respectivas normas a estabilidade jurídica desejada pelo legislador.

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