Heranças da história

Depois de séculos, clamor popular ainda dita Justiça

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28 de setembro de 2006, 7h00

Como agravante, temos que essa decisão é baseada principalmente no tal clamor popular, tanto em voga nos dias de hoje, que seria, em tese, a manifestação da indignação da sociedade. Há que se lembrar que era o clamor popular que impulsionava os brutais linchamentos do passado, transformando pacatos cidadãos em bárbaros e cruéis assassinos.

Por outro lado, lembremo-nos que a Santa Inquisição (período mais negro da História da humanidade) começou exatamente desta forma, com clamor popular, supostamente em defesa da doutrina católica, lá no Concílio de Verona, por volta de 1186. Ante a verdadeira histeria coletiva (clamor popular) que tomava corpo na população, anos mais tarde, o Papa Gregório IX lançou a bula Excommunicamus, adotando leis e jurisprudências acerca dos “crimes” relativos à feitiçaria, blasfêmia, usura e heresias. Essa verdadeira histeria que se agigantou (uma verdadeira caça às bruxas), se manifestou por meio de movimentos organizados, influenciando fortemente o ambiente com intensa propaganda.

Dessa forma, milhões de pessoas foram sumariamente julgadas (pois os julgamentos eram uma farsa), praticamente sem chance de defesa, sendo, finalmente, cruelmente punidas ou assassinadas — tudo “em nome de Deus”.

Tal como agora. Decorridos mais de 800 anos, nada mudou, pois o clamor popular tem ditado a pauta da Justiça e até a do Congresso Nacional. E isso é preocupante porque decisões e julgamentos que devem ser o mais isentos possíveis passam a ter conteúdo emocional.

Em primeiro lugar, é de sabedoria geral que as restrições para o exercício dos direitos políticos e de cidadania têm de estar expressas na Constituição (ou em lei, desde que com autorização constitucional), pois esses direitos consistem em cláusulas pétreas. Assim, não bastam boas intenções dos julgadores ou dos procuradores e promotores (as ditaduras começam assim: sempre com um sujeito bem intencionado). Dizem que de boas intenções o inferno está cheio.

O novo entendimento do TSE indica que a moralidade vai ser considerada e que as decisões do TCU e TCEs terão efetividade. Não vai bastar que o candidato entre com uma ação na Justiça contestando o parecer do tribunal de contas. Será preciso que ele, para continuar elegível, obtenha sentença judicial que diga e fundamente que sua ação contra o parecer do tribunal de contas é válida.

Sabemos que qualquer sentença judicial demora anos. E sabemos também que os TCEs são verdadeiros celeiros de indicações políticas, onde nem todos os conselheiros são agentes técnicos, mas sim verdadeiros agentes políticos, agindo sob a conveniência deste ou daquele grupo político. Em outras palavras, o TSE disse que a saída, para o candidato é: não tem saída! (igual à Santa Inquisição). Agora, basta que um adversário seu plante um processo, levando-o até o Tribunal de Contas local, que fará o resto.

Acontece que tal “boa intenção” do TSE viola a Constituição e a lei. Nem de longe é isso que está disposto na ordem constitucional e jurídica do Brasil, de forma que causa espanto aquele comentário do procurador Lucas Furtado (que faz parte de uma Instituição que tem como missão a defesa da supremacia da Constituição e da lei). Por outro lado, o TSE não é legislador para fazer tal inovação.

A Constituição é claríssima no seu artigo 14, parágrafo 9º, quando diz que a lei complementar tratará de “casos de inelegibilidade, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato”.

De fato, logo depois veio a LC 64, conhecida como Lei das Inelegibilidades. Mas, o que diz essa lei, lá no seu artigo 1º, I, g? Simples. A LC 64 diz que são inelegíveis para qualquer cargo aqueles que tiverem suas contas rejeitadas pelos órgãos competentes (TCU e TCEs), salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário.

Até mesmo a Lei 9.504/97 (Lei das Eleições) diz o mesmo, em seu artigo 11º, parágrafo 5º, quando ressalva “os casos em que a questão estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário”. Portanto, qualquer pessoa minimamente capaz entende o que o aquele preceito legal quer dizer. Ou seja, que, ao contrário da decisão evidentemente inconstitucional do TSE e que foi comemorada com euforia por um membro do Ministério Público Federal, basta, sim, que se entre com a ação para a apreciação do Poder Judiciário para ter sua candidatura viabilizada. Cabe apenas ao Judiciário a devida celeridade processual — coisa que esse Poder não vem cumprindo —, nos termos do previsto na Constituição, em seu artigo 5º, LXXVIII, quando diz que, no âmbito judicial, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

o TSE não pode se transformar num tribunal de exceção (o que é proibido pela Constituição, lá no artigo 5º, XXXVII), nem inventar ou elaborar leis, ou dizer o que o legislador não disse. Nem mesmo o singelo e piegas argumento de que a decisão abriria precedente para que sanguessugas, mensaleiros e outros que enfrentam processos judiciais tenham suas candidaturas impugnadas pode servir de pretexto para que se viole a lei.

Como disse no início, o mais grave não é a decisão em si, mas os precedentes que se criam e que, aos poucos, vão minando e erodindo todo o Estado Democrático de Direito. Esse é o ponto fundamental da questão, pois é justamente esse Estado de Direito que está em jogo. Ou a Constituição e as leis são respeitadas, ou não são. Se as coisas continuarem nesse passo, as leis terão se transformado em meros conselhos morais, podendo ou não serem cumpridas, de acordo com a conveniência do cidadão. Aí será tarde demais.

Penso que a sociedade não precisa de uma babá, ou de alguém que a tutele. Ela mesma tem os seus próprios mecanismos para excluir aqueles que ela, bem ou mal, considera como nocivos à ordem pública. E o principal deles é o voto.

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