Cultura e fauna

Manifestação popular deve respeitar direito dos animais

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27 de setembro de 2006, 7h00

A proposta do presente estudo tem por base uma análise de um tema bem recente que vem sendo discutido pela melhor doutrina ambientalista, qual seja, a colisão entre o princípio da proteção das manifestações de culturas populares e o princípio da proteção a fauna, com a vedação das práticas que submetam animais à crueldade.

O estudo se desenvolve em torno do caso sobre a manifestação folclórica em solo catarinense, chamada de farra do boi, tendo sido objeto de análise pela própria suprema corte, em sede de Recurso Extraordinário, porém pode-se considerar, da mesma forma, o caso dos leões que sofrem crueldades dentro dos circos.

Conforme ensina o antropólogo Eugênio Pascele Lacerda1, a origem da farra do boi remonta ao povoamento da costa litorânea do estado de Santa Catarina pelos luso-brasileiros a partir da segunda metade do século XVII e à sua efetiva ocupação pelos “casais açoreanos” em meados do século XVIII, vez que, neste período, as touradas ocorriam praticamente em todo o arquipélago Açores.

Parte dos doutrinadores ambientalistas contemporâneos defendem que, devido ao fato de que ambos os princípios encontram respaldo na Constituição Federal, o caso da farra do boi envolveria uma colisão de princípios. De um lado, o princípio da proteção das manifestações das culturas populares, previsto no artigo 215, parágrafo 1°, da Constituição Federal, e de outro, o da proteção da fauna, com a vedação das práticas que submetem os animais à crueldade, estabelecido no artigo 225, parágrafo 1°, VII, da mesma carta.

Imprescindível mencionar a teoria de Robert Alexy que procura dar resposta a essas indagações com pretensão de cientificidade. Argumenta que, para que se pondere princípios, deve-se ter em conta a intensidade e a importância da intervenção em um direito fundamental, que pode ser entendida da seguinte maneira: “quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção”2.

A bem da verdade, Alexy, por meio dessa máxima, procura explicar racionalmente o grau de importância das conseqüências jurídicas de ambos os princípios em colisão. Em outras palavras, coloca as conseqüências jurídicas dos princípios em colisão numa balança (metáfora do peso), a fim de precisar qual delas é racionalmente mais importante naquele caso concreto.

Nessa esteira, Carolina Medeiros Bahia3 defendeu, baseada nos ensinamentos do jurista Robert Alexy4, que, no caso da farra do boi, percebemos que a defesa do animal contra um sofrimento desnecessário apresenta maior peso que a manutenção de uma tradição. Impera, nesse caso, o reconhecimento da precedência do princípio da proteção dos animais em relação ao princípio da proteção das manifestações culturais.

Note-se que a posição da autora fundamenta-se no fato de que as práticas culturais sofrem modificações com o tempo, sob influência das mudanças sociais, políticas e econômicas e das condições de vida dos grupos, consistindo na necessária adaptação entre tradição e modernidade, senão vejamos. Se a historiografia afirma que a primeira preocupação gerada pela farra tinha cunho meramente econômico e patrimonial, torna-se claro que, atualmente, a condenação à prática encontra fundamento ético.

Registre-se, porém, que não se trata de uma questão meramente axiológica, isto é, focada em valores sociais de determinada época, mas o que Alexy busca enfocar é o caráter de cientificidade dos princípios, definindo-os como uma categoria deôntica (eis que são mandados de otimização) e não axiológica ou antropológica.

Deve-se, antes de qualquer premissa, definir se a proteção do ambiente e a proteção à manifestação cultural são princípios, conforme os vêm tratando a recente doutrina, ou verdadeiras regras jurídicas. Isto porque se encontram positivadas na própria legislação brasileira, como também estão vinculadas à determinada sanção caso não haja sua observância.

Como se sabe, o ordenamento jurídico não pode ser composto de duas normas contrárias ou contraditórias, caso este em que uma das duas deverá ser invalidada. Não obstante, nesse caso, não se está diante de conflito entre normas uma vez que não há conflito.

Para que haja conflito entre regras, segundo o mestre italiano Norberto Bobbio, é necessário que sejam contrárias ou contraditórias, estarem no mesmo âmbito de validade e dentro de um mesmo sistema jurídico. Estes fatores não estão presentes no caso da farra do boi, vejamos as razões.

As regras em análise, apesar de estarem no mesmo sistema jurídico, não são contraditórias, uma vez que ambas prescrevem uma obrigação, qual seja, preservar a fauna e preservar a cultura. Note-se que um caso de contradição seria uma regra prescrever proibido pisar na grama e obrigatório pisar na grama, o que não é o caso.

Tanto isso é verdade que o ministro Maurício Corrêa, quando do julgamento do RE/SC 153.531-8, assim se manifestou:

“Não há antinomia na Constituição Federal. Se por um lado é proibida a conduta que provoque a extinção de espécies ou submetem os animais à crueldade, por outro, ela garante e protege as manifestações das culturas populares, que constituem patrimônio imaterial do povo brasileiro. Ora, subverter um preceito constitucional que estabelece a vedação da prática da crueldade a animais — por ser regra geral —, para o fim de produzir efeitos cassatórios do direito do povo do litoral catarinense a um exercício cultural com mais de 200 anos de existência, parece-me que é ir longe demais, tendo em vista o sentido da norma havida como fundamento para o provimento do recurso extraordinário. Esta é uma questão meramente de fato que deve envolver o aparato policial para seu combate e não o provimento do extraordinário para pôr termo a outro bem que é garantido constitucionalmente”.

Note-se que, na verdade, o que ocorre é um conflito sociológico entre uma norma jurídica de proteção da fauna e a moralidade ética de um povo.

Conforme se sabe, não há possibilidade de existir um conflito jurídico entre uma norma moral e uma norma jurídica, porque a relação entre elas expressa um conflito de deveres, sob o prisma ético e não sob o ponto de vista jurídico.

Não se pode falar, portanto, em conflito jurídico ou incompatibilidade jurídica entre duas normas de ordenamento diferentes, uma do ordenamento normativo moral e outra do jurídico. Isto porque, para que fique caracterizada uma antinomia, é necessário passarmos por três etapas, a saber, identificar a contrariedade entre as normas e, ainda, verificar se as normas pertencem ao mesmo sistema, — que atuem sob o mesmo âmbito de validade — eis que nunca teremos regra do direito natural, por exemplo, em conflito com as regras de direito positivo.

O fato é que não basta que ambos preceitos sejam imperativos, sendo cogente que sejam normas jurídicas, para que, aí sim, se possa confrontá-las. Tanto é assim que matar boi por ser também uma crueldade estaria violando, da mesma forma, uma regra jurídica de base constitucional.

Portanto, o fato de que há crueldade de animais nos circos ou nas festas populares não é fator jurídico para caracterizar colisão de princípios, tampouco de regras, haja vista que, segundo a Teoria Geral do Direito, para que exista um conflito entre normas, etapas devem ser observadas.

Assim, pode-se concluir que as normas existentes no ordenamento jurídico, se existem, é porque se complementam. Em decorrência, nada impede que, em manifestações populares, se utilizem bois ou leões contanto que haja limites, em observância a outra norma de direito, in casu, da proteção aos animais.

Notas de rodapé

1 – LACERDA, Eugênio Pascele. As farras do boi no litoral de Santa Catarina. Florianópolis, 1994, Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Curso de Pós-Graduação, Universidade de santa Catarina, p.14;

2 – ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p.160;

3 – BAHIA, Carolina Medeiros. A Farra do Boi à Luz do Princípio da Proporcionalidade. Direito Ambiental Contemporâneo, p 85;

4 – Robert Alexy é professor de Direito Público e Filosofia do Direito na Universidade Christian-Albrechts, em Kiel na Alemanha.

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