Responsabilidade dos pais

O que matou jovens cariocas foi conjunto de valores

Autor

21 de setembro de 2006, 7h00

A juíza da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, Ivone Caetano, em matéria publicada no jornal O Globo no dia 8 de setembro de 2006, gerou acirrada polêmica e indignação ao afirmar que é das famílias grande parte da responsabilidade pela morte trágica de cinco jovens num acidente de automóvel na Lagoa, no Rio de Janeiro.

Nas palavras da juíza: “Como os pais não sabem onde seus filhos de 15, 16 e 17 anos estão ou com quem andam? Como não sabem o que estes adolescentes ficam fazendo a madrugada toda na rua? Famílias que não impõem limites a seus filhos não podem transferir suas responsabilidades aos outros. Há, sim, uma proibição de bebidas alcoólicas para menores. Há, sim, uma proibição de crianças e adolescentes em boates. Mas onde estão os pais? Os pais são negligentes, não vigiam seus filhos, não checam suas informações. Isso é próprio da sociedade que não respeita regras. É mais uma prova de que o Estatuto da Criança e do Adolescente só existe para pretos e pobres”.

Concordo com juíza, mas penso que ela não teve a capacidade necessária para avaliar a questão em seu tecido mais profundo, que vai muito além dessa rasa equação legalista, o que mostra, em certo modo, como nossos magistrados são despreparados cultural e filosoficamente para entenderem os precedentes axiológicos da própria legalidade que enaltecem, como se a mesma comportasse o mundo e erigisse a sociedade, quando ocorre justamente o contrário.

O que podemos ver neste acidente? Ivan, um jovem de 18 anos, dirigia em alta velocidade, numa madrugada da noite carioca. O que lhe passava pela cabeça? Certamente, algum tipo de valoração realizava o jovem, já que todo ser humano valora em algum modo sua conduta. Ora, seremos estupidamente superficiais se dissermos que foi tão somente afirmação perante uma comunidade representada pelos seus amigos ou auto-afirmação, apesar de ter sido, em última instância, as duas coisas.

Não. Atrás dessa conduta, há mais do que um psicologismo trivial pode supor, para dizer que é somente afirmação. Para mostrarmos o que é, podemos iniciar com a seguinte pergunta: se, por exemplo, o ídolo desse jovem fosse Mahatma Gandhi ou a sua admiração estivesse voltada para a obra de Chico Buarque, por exemplo, não pensaria ele que era pura imbecilidade correr em alta velocidade, com todos os riscos? Pessoas com alguma agudeza crítica ou sensível jamais se entregariam ao ridículo que lhe levou à morte.

O que matou esse infeliz jovem foi, pois, em essência, o conjunto de valores que possuía, apenas dinamizado naquele momento, e denomino tais valores como próprios da “Era do imbecil vitalista”. Caracteriza-se tal era pela consagração da exterioridade do ser humano. Dentro desse preceito se encontra todo tipo de exibição, que vai desde o status econômico (como um carro caro, potente e novo) até a própria estética, onde o corpo torna-se uma vitrine carnal, mulheres transformam-se em simples bundas e homens um congresso de músculos. Diógenes se entristeceria ante tal sombra simiesca.

Esta axiologia, sim, tem todo um feitio nietzscheano, mas Nietzsche, por sua vez, nada mais fez que traduzir o ímpeto materialista do porvir, elegendo os instintos e a vida na terra como coroa de toda a existência e matizando como falsificação da natureza toda aspiração imaterialista da vida.

Sim. Nosso tempo é filho dessas idéias, e no andar de baixo, flui, impensada, tornada realidade, essa corrente de animalização da vida que, à guisa de liberdade e sanidade vital, tornou-nos a todos os escravos da saciedade.

Se os pais não transmitem, portanto, algo superior aos seus filhos, ou só tratam de amestrar-lhes para o êxito social, se exibem aos mesmos suas posses como se fossem um troféu, se simplesmente não observam o novelo axiológico no qual estão envolvidos os seus rebentos, se não percebem os sinais que eles dão por meio de seu corpo físico e seus ideais, não podem reclamar da tragédia que sobre eles venha desabar, porque todo restante não passará de manobra das conseqüências. São sim integralmente culpados, não pelo acidente em si, mas por tudo aquilo que lhes incutiram, ano após ano, na mesa de jantar, e os filhos somente fizeram algo com o que fizeram deles.

Perante o exposto, vemos que a juíza acertou no que não viu, sedo primária a sua apreciação sobre fatores que transcendem a mera conformação legal do fato.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!