Jornalista e o Judiciário

Homenagem a Thélio de Magalhães e todos cronistas forenses

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18 de setembro de 2006, 16h10

Nem sempre o cronista forense é levado a sério. Ainda assim, a imagem que a maioria tem da Justiça é reflexo do trabalho desse intérprete privilegiado, que traduz para as ruas o que pode observar no interior dos tribunais.

Para surpresa de muitos na Academia Francesa, a revista Les Annales de setembro de 1955 abriu espaço para o gênero, entre um ensaio de André Maurois sobre Alexandre Dumas e outro de René Lalou sobre Benjamin Constant.

Sob o singelo título “Le chroniqueur Judiciaire”, Pierre Scize faz um balanço da profissão que exerceu durante 35 anos. Trata-se de quase um testamento, pois o cronista do Figaro morreria pouco depois, em dezembro de 1956, quando cobria os jogos olímpicos de Melbourne.

Entre lembranças de julgamentos famosos e retratos de seus colegas de profissão, o cronista faz algumas reflexões que continuam atuais e ajudam a compreender esse verdadeiro ramo do jornalismo.

A história começa com o julgamento, em Versalhes, de Henry Désiré Landru, sedutor e assassino de mulheres, levado à guilhotina em 1922. Pierre Scize conta como então descobriu os usos e cerimônias do tribunal do júri e também a profissão que abraçaria e que consiste em narrar a emoção dos rituais e o desenrolar dos dramas, sem desprezar as pequenas histórias e anedotas que dão sabor e amplificam a dimensão humana dos personagens:

“Havia primeiro o júri, que para mim era uma coisa extremamente emocionante. Eu me dizia que um poder misterioso residia nessas pessoas que tinham sido designadas pela sorte e sobre quem recaia uma magnífica autoridade que as colocava acima dos juízes profissionais e de sua experiência, o que é, quando se pensa nisso, uma coisa bem extraordinária, uma espécie de mistério parecido com o Mistério de Pentecostes. Por que um pequeno agricultor tem precedência em relação a um juiz nomeado por sua cultura e sua inteligência? É uma coisa que necessita de um ato de fé, mais do que de um ato de razão”.

Depois do cenário pomposo, o repórter mostra também o lado patético. Num desses momentos em que todos se felicitam na corte, era cumprimentada uma dama que milagrosamente havia escapado de ser morta por Landru. O acusado se levanta e diz: “Permita, senhor presidente, que me associe à homenagem da corte à senhorita Segret …”. Foram necessários 30 segundos para que o juiz se desse conta do absurdo e mandasse o réu ficar calado.

Apesar de ter executado várias vítimas, Landru nunca abandonou a polidez. No próprio dia da execução, ao ser acordado na cela pelo promotor de Justiça, atirou-se sobre a calça, vestiu-a, perfilou-se e indagou solenemente: “A quem tenho a honra de falar?”

Para o cronista forense, não basta a informação precisa, os detalhes. Esse é o primeiro dever do jornalista. Mas a pura informação deixava Scize indiferente. Importante, dizia ele, é a atualidade vista por meio de um temperamento. Prenuncia e aplaude, nos anos 50, o desenvolvimento da informação pela fotografia, pelo rádio, pela televisão e até projetada na parede dos quartos e conclui: “Quando tivermos visto as imagens, nos restará o prazer incomparável de comentá-las. As imagens darão talvez o aspecto do real, mas não explicam o real. Então virão os jornalistas, cuja tarefa magnífica é de dizer porque tais e tais coisas aconteceram.”

Scize reconhece que a crônica forense é, para o jornalista, uma rubrica ingrata, sofrida e dura, mas, observa que, ao mesmo tempo, é uma das mais lidas. Os faits divers, na França, e as páginas policiais, no Brasil, mantêm grande número de leitores fiéis. O crime é tão antigo como a humanidade e, desde a Bíblia, existe permanente curiosidade sobre as figuras de vítima, criminoso e juiz. Há verdadeiro fascínio pelos julgamentos, que atraem multidões, como os torneios esportivos. Nosso cronista se diz convencido de que não se trata de sadismo. Na imaginação do espectador, a aventura do acusado poderia ter sido a sua própria, ou de seus próximos, e felizmente não o foi.

Alguns erros judiciários ocorridos na França haviam sido denunciados com veemência pela crônica forense. Quando o jornalista contesta uma opinião que parece unânime, aí é que seu papel surge em toda sua dimensão, mesmo que tenha de enfrentar a ira dos juízes ou do público.

Quando os fiéis se joelham na missa, afirma Scize, não é o padre que reverenciam, mas a hóstia consagrada. Assim a corte, quando abre os trabalhos. Todos se levantam, é um momento solene. A reverência, entretanto, não é para os homens de toga, por mais excelentes e imparciais que sejam, mas para a importante função que estão desempenhando.

Também a crítica não é voltada para os juízes, mas para as instituições. A expressão veemente, para o cronista, é uma questão de temperamento. Ela só prova sinceridade e nada mais.

Pierre Scize conclui suas memórias com um apelo e uma profissão de fé na reforma da Justiça. Ele se dizia certo de que ela viria, e rápido. No entanto, lá e cá, a Justiça ainda não conseguiu equacionar muitos de seus problemas. Não vencemos a grande chaga da impunidade, nem conseguimos assegurar julgamento rápido e eficaz para todos.

Levando a sério nossos cronistas forenses, talvez possamos chegar mais perto da realidade judiciária e desvendar a imagem por ela projetada. Importa aplaudir as virtudes. Festejar os avanços. Mas, principalmente, descobrir e apontar as mazelas, para enfrentá-las de peito aberto. A história mostra que a atitude de fechar os olhos pode ser uma verdadeira bomba-relógio.

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