Rei do comércio

Reflexões sobre o cheque pré-datado e o Direito Penal

Autor

14 de setembro de 2006, 7h00

A questão do cheque pré-datado, dado como garantia de dívida e não como pagamento à vista, é polêmica, constituindo-se, verdadeiramente, numa vexata quaestio, entendendo muitos que a sua emissão não constitui nenhum ilícito penal.

É induvidoso que, para se caracterizar o delito tipificado no artigo 171, parágrafo 2º, VI, do Código Penal, urge que o título cambial cubra-se de todos os requisitos legais pertinentes, inclusive que seja emitido como forma de pagamento à vista de dívida contraída pelo emitente. Sendo assim, é evidente que o cheque pré-datado, aquele que visa a um pagamento futuro, não pode e não deve ser considerado como título cambial, o que acarreta a impossibilidade jurídica de sua emissão configurar o delito acima indicado.

Coisa diferente, porém, é o crime previsto no caput do artigo 171 do mesmo código. Para esta figura penal, são exigidos determinados elementos sem os quais não haverá a infração. Se é certo que o cheque transmudado de ordem de pagamento à vista para garantia de quitação futura não traz como conseqüência a consumação daquele delito específico, o mesmo não ocorre quando se fala do crime previsto no estelionato simples.

Para a configuração deste último crime, urge que determinadas circunstâncias e elementos sejam observados: em primeiro lugar que haja vantagem ilícita. Ora, quem emite um cheque como forma de garantir uma compra efetuada a prazo e, na data acertada, sem justificativa nenhuma, não deposita o numerário suficiente para a respectiva quitação, auferiu ou não vantagem ilícita? A resposta é afirmativa, pois o emitente recebeu a coisa e, no entanto, no momento da compensação financeira concertada com a vítima, não honrou o compromisso. Induvidoso, por isso, a vantagem ilícita e em proveito próprio ou de terceiro.

A segunda exigência do tipo penal é o prejuízo alheio. Pergunta-se: o ofendido, ilaqueado em sua boa-fé, lesado na confiança depositada, sofreu ou não desvantagem patrimonial? Afirma-se, também, o presente questionamento, visto que, despojado de bens a ele pertencentes, não teve o ressarcimento devido, ou, em outras palavras, entregou o que possuía e não recebeu a quantia equivalente, tendo, inquestionavelmente, prejuízo financeiro.

O terceiro requisito é a existência de meio fraudulento, induzindo ou mantendo alguém em erro (dolosamente), para a obtenção da vantagem indevida. Aqui, igualmente, encontramos suporte suficiente para adequar o cheque pré-datado ao tipo penal sob análise.

O fato de alguém, na data aprazada, não fazer o depósito necessário para que a sua conta corrente fosse suficientemente abastecida e pudesse, consequentemente, cobrir o cheque que seria depositado, por si só, já indica conduta dolosa no sentido de prejudicar o terceiro mantido em erro, mediante a fraude, que consistiu, especificamente, em emitir um cheque, prometendo pagá-lo em determinada época e, neste momento (sabedor que era da obrigação assumida, em confiança), não honrar o compromisso assumido. Evidentemente que deverá estar provado que o agente agiu com dolo, desde aquele momento inicial da emissão do cheque.

Nestas condições, entendemos que a situação se conforma perfeitamente com o tipo penal do artigo 171, caput do Código Penal.

Não é justo que a vítima, lesada em seu patrimônio, fique desprotegida em detrimento da impunidade e incentivo ao enriquecimento ilícito. Ademais, o cheque pré-datado já é um instrumento corriqueiro no comércio brasileiro, usado indiscriminadamente pelos consumidores.

A propósito, o jornal O Globo, do dia 21 de junho de 1995, mais especificamente no Caderno de Economia, reportou-se a algumas considerações a respeito do fenômeno do cheque pré-datado, reafirmando a disposição da Justiça fluminense em considerar relevantes os efeitos jurídicos advindos da emissão do citado cheque, inclusive transcrevendo opiniões que a seguir mostraremos.

Inicialmente, vejamos trecho de uma sentença do juiz Sebastião Pereira de Souza, onde ele afirma que, “apesar de o cheque pré-datado não existir legalmente, havia, nesse caso, uma relação jurídica entre o comprador e o vendedor.”

Já o procurador de Justiça Hélio Gama entende que, “pelo tempo que vem sendo utilizado, cerca de dois anos, o cheque pré-datado se alçou à condição de nota promissória. Os tribunais têm considerado os cheques pré-datados assim, e não mais somente como pagamento à vista”.

Por sua vez, o advogado Antônio Mallet esclarece ter “o costume modificado a questão jurídica e, mesmo o cheque pré-datado não sendo reconhecido pela lei, existe um contrato entre as partes que deve ser cumprido, e não pode haver prejuízo de nenhum dos lados”.

Na reportagem, a jornalista Nadja Sampaio informa que, “em suas decisões, os juízes vêm entendendo que existe um contrato subentendido no acordo verbal entre consumidor e lojista, e ambas as partes têm de cumpri-lo”.

A matéria jornalística demonstra bem a disposição em aceitar esta operação como juridicamente relevante, o que implica em também aceitá-la, do ponto de vista penal, como juridicamente tutelada.

Aliás, o próprio Nelson Hungria já esboçava, àquele tempo, uma opinião que se coaduna, mutatis mutandis, ao que hoje se procura mostrar nestas razões recursais:

“(…) se falta qualquer dos requisitos formais exigidos pela lei, o título deixa de ser cheque, não se podendo falar, portanto, em ‘fraude no pagamento por meio de cheque’, embora possa ser reconhecido, no caso, o estelionato no seu tipo fundamental (ficando, assim, afastada a objeção de DONNEDIEU DE VABRES, no sentido de que seria estranho que a circunstância de um vício de forma, que em nada atenua a imoralidade ou o caráter delituoso do agente, possa suprimir sua responsabilidade).”1 (grifo nosso).

O que o mestre do Direito Penal disse é que, ainda não se revestindo das formalidades legais exigidas (v.g., como ordem de pagamento à vista), a emissão do cheque poderá vir a configurar o delito de estelionato no seu tipo fundamental.

Também há jurisprudência como veremos a seguir:

“COMPETÊNCIA. ESTELIONATO. EMISSÃO DE CHEQUES PRÉ-DATADOS SEM A SUFICIENTE PROVISÃO DE FUNDOS. HIPÓTESE DO ART. 171, CAPUT, DO CP CARACTERIZADA. JUÍZO COMPETENTE: O DO LOCAL DA EMISSÃO DO CHEQUE. A compra efetuada com cheques pré-datados emitidos em garantia e sem a suficiente provisão de fundos configura o delito da cabeça do art. 171 do CP, e não a hipótese do art. 171, § 2º., VI, do CP, que pressupõe a imediata apresentação da cártula ao estabelecimento bancário sacado; portanto, o Juízo competente para o processo e julgamento é o do local da emissão do cheque e não o da recusa pelo sacado.” (STJ, C. Comp. N.º 16.403 – São Paulo, 3ª. Seção, Rel. William Patterson, j. 23.4.97; v.u.).

“Não se tratando de simples emissão de cheque pré-datado em garantia de dívida, mas de conduta típica do estelionato, tendo em vista a pluralidade de vítimas, a evasão do paciente da praça e o abandono da família, que deixam claro o propósito de fraudar os credores, não cabe o trancamento do processo penal.” (STF – RHC – Rel. Carlos Cadeira – RTJ 119/131).

“Agente que dá cheques em pagamento a serem cobrados na data posterior a emissão, pratica o delito do art. 171, caput (estelionato simples), e não o art. 171, § 2º., VI (fraude no pagamento por meio de cheque), ambos do CP. Assim, se o processo contém fatos descritivos do estelionato simples, e a condenação se dá pela fraude no pagamento por meio de cheques a decisão deve ser reformada com base no art. 621, I, do CPP.”(TACRIM-SP – Rev. – Rel. Tyrso Silva – RJD 7/244).

“Não se aplica a todas as hipóteses de emissão de cheques sem fundos o entendimento de que a sua descaracterização ou transformação, de ordem de pagamento à vista, para simples promessa, não conduz à tipicidade do estelionato. A proteção penal do cheque autêntico está no tipo do art. 171, § 2o., VI do CP. O cheque pode ser instrumento hábil a consumação de outros estelionatos, desde que o sujeito ativo seja impelido pela vontade livre e consciente de, induzindo ou mantendo alguém em erro, obter, mediante fraude, vantagem ilícita, causando prejuízo patrimonial ao sujeito passivo. É o estelionato no seu tipo fundamental. É crime contra o patrimônio.” (TACRIM-SP – Rev. – Rel. Fábio de Araújo – RJD 1/223 – JUTACRIM 97/505, como grifo nosso).

“Já se tem decidido que a emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado pode, em certos casos, não se constituir no delito previsto no art. 171, § 2º., VI, do CP, mas simplesmente tratar-se de um artifício complementar da ação delituosa do estelionato simples.”(Ac. un., de 27/10/70, da 1ª. Cam. TACRIM-SP, Rel. Manoel Pedro, RT, Vol. 423, p. 437).

“Crime contra o patrimônio. Estelionato. Absolvição. Impossibilidade. Farto conjunto probatório. Recurso não provido. Se o agente agiu com dolo ab initio de lesar os sujeitos passivos, a emissão de cheque, mesmo que pré-datado, configura o delito descrito no caput do art. 171 do CP.” (Ac. un. da 2ª. C. Cr. do TA/MG – ACr 347.505-6 –Rel. Juíza Maria Celeste Porto, j. 02/04/02, DJ MG 11/02/03, p. 39 – ementa oficial).

“Cometem o delito de estelionato, na modalidade simples, os agentes que, sabendo do encerramento da conta bancária, continuam passando cheques para compra de mercadorias, em prejuízo das vítimas. O fato de serem os cheques pós-datados não retira a ilicitude do estelionato, na modalidade simples.” (Apelação 70001852003, TJRS, Rel. Des. Tupinambá Pinto de Azevedo).

“Denunciado o agente por estelionato na sua forma simples, e não por fraude no pagamento por meio de cheques (inc. VI do § 2° do art. 171 do CP), não há falar em cheque à vista ou pós-datado, mesmo que eles os tenham entregado como forma de pagamento futuro, porquanto, presente a vontade de enganar a vítima, dela obtendo vantagem ilícita, em prejuízo alheio, empregando artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, caracterizado está o delito na sua forma fundamental.” (Apelação 70004242921, TJRS, Rel. Des. Roque Miguel Fank).

“Agindo o apelante premeditadamente, ao constituir dívidas que sabia não poder pagar, obtendo, assim, vantagem ilícita quanto aos valores descritos na exordial, em prejuízo das vítimas, mediante o uso de cheques pós-datados, tentando, ainda, furtar-se ao compromisso assumido, e fugindo da cidade onde realizara as fraudes, resta demonstrado o dolo com que agiu. Havendo a cártula sido emitida pro solvendo, e não pro soluto, não tem o condão de, por si só afastar o estelionato. Os cheques emitidos serviram de instrumento à obtenção de farta vantagem econômica, em prejuízo de terceiros, induzindo-os em erro.” (Apelação 70004908968, TJRS, Rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack).

Em outra oportunidade, a 1ª Câmara Mista do Tribunal de Alçada de Minas Gerais condenou determinado réu a prestar serviços à comunidade, por um ano, 10 meses e 20 dias, durante uma hora diária, em instituição a ser definida pelo juízo da execução. Ele adquiriu, em agosto de 1998, em uma loja, vários objetos e os pagou com cinco cheques pré-datados. Posteriormente, os cheques foram sustados sob o argumento de que havia sido vítima de roubo.

Os juízes do Tribunal de Alçada mineiro consideraram que o condenado “mediante meio fraudulento, alcançou vantagem indevida”, em prejuízo do lojista. “A culpabilidade é evidente, o motivo do delito foi a obtenção de enriquecimento fácil, em detrimento do patrimônio alheio, as conseqüências foram graves e a vítima não foi ressarcida de seu prejuízo,” observou o relator Eli Lucas de Mendonça (Processo. nº. 413.180-6 – TAMG).

É sabido que a distinção entre ilícito civil e ilícito penal passa, necessariamente, pela existência ou não de um elemento fundamental: o dolo em fraudar ou, nas palavras de Hungria, “o propósito ab initio de frustração do equivalente econômico”. E, na lição de Manzini, a “distinzione tra frode civile e penale è non solo superflua o arbitraria, ma altrasì produttiva di dannosissima confusione, specialmente nei particolari riguardi della truffa (logro, vigarice, trapaça, tramóia…)”.2

Notas de rodapé

1 – Comentários ao Código Penal, Vol. VII, Rio de Janeiro: Forense, p. 250.

2 – Trattato di Diritto Penale, Vol. IX, n. 3.381, pp. 385/386, apud Romeu de Almeida Salles Junior, in Apropriação Indébita e Estelionato, Jalovi, 2ª. ed., 1986, p. 217.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!