Comércio internacional

Não esqueça do lado humano; comércio não é só técnica

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12 de setembro de 2006, 19h35

O direito do comércio internacional não é abstrato. Não se destina a ser fim em si mesmo. Antes, destina-se a coisas bastante concretas: antes e durante a realização dos negócios, se traduz na negociação e redação de contratos internacionais; depois destes, quando necessário, para permitir a solução das eventuais controvérsias que possam entre as partes ocorrer. Mas exige capacitação não somente técnica, mas também humana e humanística. Como se propõe considerar.

Na negociação de contratos, cabe procurar a lei mais adequada, para permitir regular a relação entre comprador e vendedor do modo mais seguro e mais adequado, para permitir que o contrato não se torne fim em si mesmo, mas opere dentro da normalidade — tenha cumprido sua função e desapareça, após o pleno adimplemento das obrigações estipuladas para as partes contratantes.

A escolha da lei aplicável, da forma e do conteúdo contratual mais adequados não se deve nortear por considerações teóricas, mas por razões muito concretas: quando, como e onde pode ser mais adequado e mais eficaz situar aquela relação contratual. Qual a lei nacional ou outra norma ou conjunto de princípios, independentemente do direito positivo deste ou daquele estado, pode mais adequadamente atender às necessidades daquela relação contratual.

Na solução de controvérsias, a experiência em comércio internacional ensina que não se trata de transformar o problema em fim em si mesmo. Tem de ser visto e ser tratado como acidente de percurso, que pode ocorrer, mesmo entre partes contratantes, atuando de boa-fé e imbuídas do propósito de bem cumprir o que haviam, entre si, contratualmente estipulado. Problemas acontecem, mas não podem ser transformados em fins em si mesmos.

A solução de controvérsias serve para permitir seja incidente superveniente sanado e eliminado, permitindo a restauração ou, melhor ainda, a continuidade das relações contratuais entre as partes. Esta pode ser judicial ou arbitral, caso não seja possível superar a controvérsia mediante negociação direta e composição alcançada entre as partes interessadas.

Considerável volume de referências nacionais e internacionais poderiam ser apontadas em relação a contratos internacionais e a solução de controvérsias. Qualquer um pode descobrir isso e mergulhar nos relevantes e instigantes meandros de cada um desses temas. Gostaria de falar sobre algo menos concretamente tangível, mas igualmente necessário, quando se trata de comércio internacional.

O lado humano dessas questões e as necessidades referentes à formação dos profissionais da área do comércio internacional, e mais especificamente, para os profissionais da área jurídica, atuando no direito do comércio internacional. O profissional jurídico não pode nem deve pretender substituir o técnico ou o operador em comércio internacional, em cada um dos múltiplos e tão distintos setores nos quais este se compartimenta. Deve ter a compreensão do papel do direito nessas operações e transações.

Qual a dimensão humana e humanística a ser considerada no direito do comércio internacional? Justamente ai se inscreve o dado mais oportuno e mais relevante, na minha opinião.

O dado humano que me parece relevante apontar para o operador da área jurídica no comércio internacional é muito simples: não se esqueça do lado humano; comércio não é somente técnica. Você precisa ser capaz de ouvir, de se comunicar e de se fazer entender pelo seu cliente, primeiro, e também pelo contratante estrangeiro e seus representantes comerciais e legais. É preciso estabelecer e manter abertos os canais de comunicação. É preciso afastar as interferências, para que a comunicação possa fluir.

Por mais que se tenha a ênfase na dignidade e na relevância do português como língua oficial do Brasil, não podemos nem devemos esperar que o mundo todo venha nos falar em vernáculo. Somente o atual governo, depois de afastar a obrigatoriedade do francês, agora coloca como classificatória e não eliminatória a pontuação dos candidatos a diplomatas em língua inglesa. Os atuais dirigentes da diplomacia brasileira parecem ter-se esquecido a lição de Rio Branco quanto a serem os diplomatas “remédio para uso externo”.

A atuação no comércio internacional, e para os profissionais da área jurídica, a atuação no direito do comércio internacional se fazem mediante a comunicação em língua que possa ser compartilhada, com o cliente e com o co-contratante deste: não espere que venham aprender a nossa língua. Não espere poder atuar de modo válido e eficiente com algumas vagas noções de “portunhol” de aeroporto, suficientes, talvez, para final de semana em Buenos Aires, mas certamente muito aquém do necessário para negociar e redigir contratos internacionais em outro idioma.

Podemos e devemos aproveitar a oportunidade para demonstrar maturidade e aprendermos a operar a aplicar as normas e os mecanismos operacionais do Gatt 1 e demais acordos na OMC — Organização Mundial do Comércio, para defendermos os clientes nacionais, à altura dos acontecimentos, aplicando essas mesmas regras. Está na hora de superarmos a síndrome terceiro-mundista, ou complexo do primo pobre, que se sente sempre discriminado e perseguido, para enxergar o lado positivo do desafio que para nós se coloca, na medida em que, não obstante a pequena parcela da participação brasileira no comércio mundial (hoje representaria no máximo 1% do total), estamos incomodando gente grande, o suficiente para ser visados e atacados.

Desde a queda do muro de Berlim, virou história antiga a divisão leste-oeste, passando a ser o comércio a grande arma de poder no mundo atual. Isto faz com que passemos a ter necessidade cada vez maior de profissionais habilitados em direito internacional e direito do comércio internacional, preparados para brigar, manejando as normas e casos julgados na OMC. Ainda existe falta de profissionais nesta área, não obstante o excesso de bacharéis em direito.

A diplomacia brasileira e o governo estão tentando fazer sua parte, quando a ideologização das relações internacionais não acarreta mais prejuízos que vantagens, na visão às vezes distorcida das prioridades e das reais necessidades do país pelo atual governo. Ainda precisam aprender a básica regra do “amigos, amigos, negócios à parte”. Quem sabe, antes que façam mais estragos.

Hoje, está em consideração o setor privado. Esse aprendizado começa a estar presente, mas ainda se faz de modo incipiente, até que o setor privado venha a organizar-se, de modo mais ativo e presente, na proteção de seus interesses no exterior, atuando preventivamente e brigando, de modo mais técnico, para melhor defender o setor visado, diante de riscos concretos. Isso se há de fazer preventivamente, não depois do fato consumado. Isso o Brasil já sabe, mas ainda precisa aplicar de modo mais presente e mais consistente. Para ficar somente em exemplo de economia nacional mais ou menos equivalente à brasileira, os sul-coreanos são muito mais ativos, internacionalmente, na defesa de seus interesses nacionais.

Como tantas outras, a controvérsia Brasil e Canadá, entre aviões e carne bovina, em 2001, mostrou ser antes política do que técnica. Nem o grande irmão orwelliano poderia pretender tão absoluto controle da realidade. Foi, felizmente, possível aproveitar a ocasião da controvérsia Brasil e Canadá para mostrar que aprendemos a jogar o jogo (play by the rules). A crise nos ensejou ser eficientes em lugar de nos fazer repetir o papelão da guerra da lagosta com a França nos anos 60. Esta teria ensejado o venenoso comentário do então todo poderoso governante Charles de Gaulle, quanto a não serem sérios os brasileiros — “les brésiliens ne sont pas sérieux”.

O setor privado, descolando-se do discurso terceiro-mundista, datado e falto de resultados e de dimensão de estratégia estatal e comercial viável, no qual permanece empedernido o atual triste governo, está mostrando ter aprendido com as lições do passado. Não mais pode ser somente política a negociação no comércio internacional. Esta se faz cada vez mais técnica e jurídica. Este pode ser exemplo e momento para mostrarmos que aprendemos a lição. Na guerra cada vez mais atroz e competitiva por boas fatias do comércio internacional, não adianta somente gritar.

É preciso dominar o instrumental técnico, as normas do comércio mundial e os precedentes julgados pela organização, que permitirão rebater as em boa medida destituídas de fundamento e desastradamente lançadas pretensões governamentais: misturar simpatias ideológicas com estratégias comerciais não foi, não é nem vai ser maduro nem razoável da parte destes. Vamos ser maduros. O setor privado começa a mostrar o engajamento no estudo e na operação das ferramentas do direito do comércio internacional.

Nota de rodapé

1 – Gatt é a sigla do Acordo Geral de Tarifas e Comércio, assinado em Havana, em 1947, regulando o conjunto do comércio mundial, até o advento da OMC — Organização Mundial do Comércio, que sucede e incorpora o anterior acordo, reforçando a instituição e aperfeiçoando o mecanismo de solução de controvérsias, com a criação de segunda instância, para revisão e uniformização dos casos julgados pelos painéis de árbitros da organização. A OMC foi criada por Tratado internacional, assinado e ratificado por mais de centena de países, a Ata Final de Marraqueche, de 15 de abril de 1994, em vigor no Brasil conforme Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994.

O autor foi eleito um dos advogados mais admirados em Direito Internacional em pesquisa feita pela revista Análise Advocacia. Os prêmios dos escolhidos serão entregues no dia 19 de setembro em São Paulo.

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