Republiqueta dos bacharéis

Se está na lei imposição da vaidade, por que não usá-la?

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12 de setembro de 2006, 7h00

Há homens que são excelentes a míngua de qualquer cargo e há os que o são apenas por ele. Sem o paletó, beca ou toga, tornam-se patéticos, definhando no esquecimento imediato. Talvez por isso, tantos são apagados da memória imediatamente ao dia em que perdem a majestade do cargo. Há alguns que, muito ao contrário, mesmo sem vínculo com o poder público, dobram os demais pela força do conhecimento e outros, em maior escala, pretendem ser reconhecidos pelo pronome de pompa e circunstância.

Na republiqueta dos bacharéis, é normal que o pronome de tratamento que precede o nome seja sinal de nobreza. Como em terras tupiniquins nunca houve nobiliarquia, é necessário distinguir classes também por forma de tratamento, além de tantas outras distinções honorificas e simbólicas que pontuam o distanciamento entre o povo e as becas. Até mesmo o largo uso de brocardos latinos de enfeite já tiveram seu lugar nas molduras de petições e sentenças, a fim de esconder o conteúdo ao leigo, firmando-se um código mesquinho que monopoliza o poder pelo eruditismo vazio.

É assim que pensam os atuais “excelentíssimos” detentores de poder que fazem questão de serem chamados de “excelência”, até mesmo em correspondência. É mesmo possível voltar a carta, caso não encontre o destinatário correto — o excelentíssimo. Afinal não se trata de pessoa física e sim de uma entidade pública ambulante. Ora, se está na lei imposição da vaidade, por que não lançar mão dela? Que o remetente receba do correio lição de titulação e pronomes. Mas a exigência da estampa em correspondências tornou visível o que era até então risível. É o caso de uma determinação do Ministério Público em comarca do interior de Mato Grosso, conforme informa o site da OAB do estado.

Pobre a nossa formação republicana que exige em leis o reconhecimento por patentes e intima os cidadãos a enxergarem a excelência, onde não há nada de excelente. Em outras democracias, não já juízes que mandam porteiros do condomínio dirigirem-se aos mesmos como excelência; em outras quadras, o correio não distingue a pessoa física com e sem o pronome imposto.

No Brasil, há séculos o patrimônio público é fundido e confundido com as relações privadas de apropriação. Tratou-se de amealhar o bem público por anos a fio, na constância de cargos por indicação do Reino. Após, mapeado o poder imperial, foi difundida a prática de concessões de títulos — vivíamos nos tempos de muitos barões e quase nenhum duque. Finalmente, com o alvorecer da República, já não havendo os baronatos ou ducados, a máquina pública foi loteada com os compadrios, enxertando em lugares estratégicos os vampiros do erário.

Vieram os concursos, amoldando-se ao mérito de uma república. Contudo, aquela premência de poder e de distinção de outrora ganhou uma nova roupagem — era necessário impor um tratamento condigno ao cargo e não ao ocupante. Portanto, mistificou-se a função pública, delegando-se o prestígio nobiliárquico por decreto, criando foros de prerrogativa, concedendo cargos de confiança. Vieram os “doutores” sem doutorado, os “mestres” sem mestrado e, finalmente, os “excelentíssimos” sem a menor excelência.

Toda vez que escuto falar que esse ou aquele exige ser antecedido pelo pronome de tratamento, relembro daquela vez que o professor chegava ao fórum e esbarrou com um servidor público que se ria da derrapagem no vernáculo do estagiário ao escrever na petição “esselentíssimo” com “ss” e não com “xc”. O cátedra não viu problema algum, já que o neófito dirigia-se como “esse lentíssimo” — o erro foi não separar as palavras. É preciso aprender que o ocupante da função pública é servidor do povo e não servido por ele.

O juiz, o promotor, o defensor, o advogado formam um quarteto essencial à democracia que deve abrir mão de ranços monárquicos, sem o menor sentido. A república é servida por mérito, eficiência, impessoalidade, valores incompatíveis aos rococós do servilismo de antanho: ser é maior que ter. Sejam excelentes o tratamento, o estudo, o respeito e a produção — é o que basta.

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