Acesso à Justiça

Entrevista: Eduardo Flores Vieira, defensor público-geral da União

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10 de setembro de 2006, 7h00

Eduardo Flores - por SpaccaSpacca" data-GUID="eduardo_flores.png">Prevista na Constituição de 1988, a Defensoria Pública só foi criada efetivamente em 1994, mas só entrou em funcionamento em 2002. Ainda hoje conta com apenas 112 defensores para atender uma clientela potencial de 92 milhões de brasileiros.

Diante desse quadro, é compreensível que o defensor-geral da União Eduardo Flores Vieiradefina a instituição como o “primo pobre” da magistratura e do Ministério Público. O órgão é muito recente e esse é um bom argumento para explicar suas fraquezas.

Eleito para chefiar a instituição em maio de 2005, Flores tinha uma ambição a concretizar nos dois anos de mandato, que termina em maio próximo: dar à Defensoria o status do Ministério Público. Mas reconhece que está longe disso.

O defensor-geral contabiliza apenas ganhos parciais. Tramita no Congresso uma proposta para a criação de 900 novos cargos defensores da União. Em sua opinião, o número ideal seria de 6 mil, igual ao número de procuradores federais da União. “De um lado, temos 6 mil procuradores defendendo a União e suas autarquias, do outro, 112 defensores públicos responsáveis pela defesa do cidadão. O desequilíbrio é muito grande.”

Mesmo assim, Eduardo Flores Vieira não gosta da idéia de contar com a “residência jurídica”, que funcionaria nos moldes da residência médica para suprir a instituição de profissionais em início de carreira. “O pobre não pode servir de laboratório de experiências”, justifica. Contesta também os convênios de assistência judiciária, como o existente em São Paulo, por considerá-los inconstitucionais.

As alegações, que levam em conta mais os direitos trabalhistas dos defensores do que as necessidades dos defendidos, têm uma clara conotação corporativista.

Para que a Defensoria Pública se consolide ele defende que seja cumprida a lei, que prevê autonomia financeira e orçamentária para a instituição.

Eduardo Flores Vieira nasceu em São Leopoldo, na Grande Porto Alegre. Foi aprovado no primeiro concurso público para a Defensoria da União, em 2001. Em 2005, foi indicado pelo presidente da República, a partir de uma lista tríplice feita pelo defensores, para ocupar o cargo de chefe da instituição.

Leia a entrevista com o defensor público-geral da União

ConJur — A Defensoria Pública existe para aumentar o acesso à Justiça. Mas, o que a Justiça menos precisa é de aumento de demanda, pois já está atolada de processos. Não é um paradoxo?

Eduardo Flores — O papel do defensor público não é só dar assistência judiciária. Ele tem de ser um transformador social, um instrumento de inclusão e de conscientização dos direitos de cada um. Seu papel é orientar e tentar a conciliação, não só provocar o Judiciário. Existe um estudo que diz que onde há defensoria pública, a criminalidade diminui e aumentam as soluções extrajudiciais de conflitos.

ConJur — Quem é o cliente da defensoria?

Eduardo Flores — É aquele que não tem condições de pagar um advogado.

ConJur — Existe um critério objetivo?

Eduardo Flores — Em matéria cível, normalmente, o cidadão auxiliado pela defensoria é aquele que recebe até dois salários mínimos. Mas isso não impede que quem receba mais tenha acesso à defesa gratuita. Um exemplo é o do cidadão cuja renda não dá para sustentar a família. Em matéria criminal, o auxílio da defensoria independe da renda. Se o cidadão não tem advogado, o juiz é obrigado a nomear um defensor para ele. Nos casos em que o acusado está foragido, o Estado tem de propiciar o direito de defesa dele.

ConJur — Segundo o IBGE, 92 milhões de brasileiros ganham até dois salários mínimos. São quantos defensores para atender a toda essa demanda?

Eduardo Flores — São 112, número muito pequeno. O nosso objetivo é aumentar o número de defensores para triplicar a cobertura que podemos dar à população. Em 2005, tivemos 220 mil novos casos. Acho que tempos condições de triplicar esse número, desde que tripliquemos a estrutura da instituição. Só eu, neste ano, tenho 2.600 processos no Supremo, que defendo com a ajuda de um defensor público auxiliar e de três assessores.

ConJur — Essa carência não poderia ser suprida com a contratação de estagiários? O senhor acha viável criar uma espécie de residência, como na Medicina: o bacharel em Direito fica dois anos prestando serviço para a Defensoria, por exemplo?

Eduardo Flores — Não. O pobre não pode servir como um laboratório de experiência. Por que temos um Ministério Público e uma Magistratura fortes?

ConJur — A Defensoria da União está em todos os estados?

Eduardo Flores — Não. Maranhão, Amapá e Mato Grosso ainda não têm unidades da Defensoria da União. A idéia é fortalecer o atendimento nas capitais e permitir uma atuação nas outras cidades pelo serviço itinerante. Como se já não fosse pequeno o número de defensores, por falta de cargos de apoio, os poucos que temos ainda são obrigados a se envolver em questões administrativas. Com isso, gasta com a atividade meio o tempo que deveria dedicar à sua função.


ConJur — A Defensoria da União só tem representação nas capitais dos estados . Não seria melhor se estivesse em todas as cidades?

Eduardo Flores — O serviço ainda é limitado pela falta de agentes públicos. Para contornar essa deficiência contamos com a Defensoria Itinerante, que é uma unidade móvel que se desloca pelas cidades do interior, para prestar o serviço de orientação jurídica. O serviço é prestado no interior do Rio Grande do Sul, no Amazonas e em Alagoas. Muitas vezes, a Defensoria e a Justiça Federal vão juntas para o local. Tomam o depoimento e, se for o caso, iniciam a ação judicial.

ConJur — Qual seria o número ideal de Defensores da União?

Eduardo Flores — Fizemos uma proposta de aumentar para mil cargos, mas o ideal é que o número de defensores públicos fosse igual ao de procuradores públicos federais, responsáveis pela defesa da União. No quadro atual, temos 6 mil procuradores defendendo a União e as autarquias contra 112 defensores públicos, responsáveis pela defesa do cidadão.

ConJur — Qual a diferença entre a Defensoria Pública da União e a dos estados?

Eduardo Flores — A Defensoria Pública da União atua nas causas que têm como parte a União, suas autarquias ou empresas públicas. Cabe ao defensor público-geral da União tratar das questões que chegam ao Supremo Tribunal Federal. Todas as outras ações, que não envolvem União, autarquias e empresas públicas, são de competência da Defensoria estadual.

ConJur — Existe algum tipo de cooperação entre a Defensoria estadual e da União?

Eduardo Flores — Não. As defensorias estaduais ainda não têm condições de absorver a demanda da Defensoria da União por falta de especialização. O concurso para se tornar defensor estadual não envolve questões federais. Por isso, não há essa cooperação para que não haja prejuízos à população. A parceria que temos é no espaço físico. Para baratear os custos, mantemos uma sede só.

ConJur — Com o surgimento dos Juizados Especiais Federais, que possibilitam que a população recorra à Justiça sem advogado, diminuiu a procura pela Defensoria da União?

Eduardo Flores — Não. Muitas vezes, o cidadão chega no Juizado, perante o escrivão, e deduz o que pedir. O juiz, então, julga o pedido inepto porque a parte não soube se expressar. Cabe ao defensor identificar o que o cidadão quer, o que é possível pedir e qual a melhor solução para a questão. Muitas vezes, o defensor consegue resolver o problema na parte administrativa, sem precisar levar ao Judiciário.

ConJur — A população sabe que existe a Defensoria Pública e o que ela faz?

Eduardo Flores — É um órgão muito novo e, por isso, talvez as pessoas ainda não o conheçam. À medida que um maior número de defensores estiverem em atividade, o serviço vai aparecer cada vez mais e as pessoas vão saber que ele existe.

ConJur — O defensor público é pago pelo Estado para litigar contra o Estado. Isso não cria um constrangimento?

Eduardo Flores — Não. O maior violador de diretos do cidadão é o Estado. Nós temos a obrigação de exercer o papel de defensor. Por conta disso, somos independentes para seguir os mandamentos constitucionais.

ConJur — Mas a Defensoria não tem autonomia financeira?

Eduardo Flores — Estamos vinculados ao Ministério da Justiça. Está aí mais um paradoxo: se o ministro da Justiça comete uma ilegalidade, o defensor-geral da União é quem apresenta a ação no Supremo Tribunal Federal. A expectativa é de que até o final do ano seja aprovada a proposta de autonomia financeira e orçamentária da Defensoria da União. Essa autonomia é importante para que possamos prever os gastos de acordo com as necessidades do órgão.

ConJur — Qual é o orçamento da Defensoria da União?

Eduardo Flores — Para esse ano, chegou a R$ 28 milhões. É razoável.

ConJur — Quem pode pagar por um advogado escolhe aquele que mais lhe inspire confiança. Ao cidadão carente não deveria ser dado também o direito de escolher o defensor público de sua preferência?

Eduardo Flores — Não. Quem está à frente do processo é a Defensoria Pública da União. O defensor público apenas representa a instituição no processo. Todos foram igualmente selecionados em concurso público e estão igualmente habilitados para bem defender o cidadão.

ConJur — Mas o ideal não seria que os defensores se especializassem em determinada área como os advogados particulares? Ou que pelo menos o mesmo defensor cuidasse de um caso até o fim para o cidadão saber quem é o seu advogado?

Eduardo Flores — O ideal seria mesmo a especialização, mas não acho que prejudique o cidadão o fato de ser assistido por diferentes defensores, já que todos representam a Defensoria. A administração pública é regida pela impessoalidade. Não acho que isso comprometa a eficiência do serviço prestado.


ConJur — Qual é a matéria da maioria dos casos que chegam à Defensoria?

Eduardo Flores — Na parte cível, a maior parte é previdenciária: concessão de revisão de benefícios, aposentadoria por idade e por invalidez. Na parte criminal, são os crimes de estelionato, contrabando, falsificação de dinheiro e contra a ordem tributária e previdenciária.

ConJur — Existe um Projeto de Lei de autoria do senador Antônio Carlos Magalhães que prevê que o réu que faça parte do crime organizado seja impedido de usar o dinheiro do crime para pagar advogados. Ele teria de ser defendido pela Defensoria. O que o senhor pensa disso?

Eduardo Flores — Esse projeto é inconstitucional. No Estado Democrático de Direito, o réu tem o direito constitucional de escolher um advogado de sua confiança. Esse projeto cerceia esse direito.

ConJur — O Estado valoriza a Defensoria Pública como deveria?

Eduardo Flores — Nos últimos três anos, os governantes começaram a se conscientizar da importância que tem o defensor público na sociedade. O serviço público prestado ao pobre é caro porque mais de 90 milhões de brasileiros estão abaixo do índice de pobreza. Mas o Estado tem de investir para diminuir essas mazelas sociais.

ConJur — E ele tem investido?

Eduardo Flores — No âmbito da União, sim. Nosso orçamento foi incrementado. Não é o ideal, mas já é alguma coisa, ainda mais porque existe um descaso com as Defensorias Púbicas no país.

ConJur — A que se deve esse descaso?

Eduardo Flores — Pelo próprio custo que a implementação de um sistema eficaz acarreta. No entanto, esse custo é compensado porque fica mais barato manter um defensor do que nomear um advogado dativo para as causas. O dativo recebe, em média, R$ 70 por ação do processo. Assim, recebe, em média, R$ 500 para acompanhar um processo do começo ao fim nos juizados. Com um defensor público, o processo completo custa cerca de R$ 60. Dativos não foram previamente selecionados em concurso e pagá-los é inconstitucional. O serviço tem de ser prestado pelo Estado ou, então, se algum advogado quiser fazer de forma graciosa, ele pode.

ConJur — Quando a Defensoria ganha honorários de sucumbência, eles são revertidos para a instituição?

Eduardo Flores — Tem um projeto na Câmara dos Deputados para criar o Fundo da Defensoria Pública da União. Enquanto ele não é criado, o dinheiro da sucumbência fica em juízo. O defensor público não tem direito a honorários, já que ele recebe salário para desempenhar a função.

ConJur — A conclusão é: a Defensoria é uma criança que está começando a andar.

Eduardo Flores — É o primo pobre do Ministério Público e da Magistratura. Mas temos esperanças de que esse quadro mude, inclusive em questões salariais. A Defensoria Pública, como um todo, está passando por uma transformação legal, constitucional e a expectativa é de que, em quatro ou cinco anos, nós tenhamos o mesmo status do Ministério Público, para dar à população carente os mesmos instrumentos que o MP tem para combater as questões que envolvem a ordem jurídica.

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