Justiça de fora

Reflexões sobre as vitórias do caso Damião Ximenes

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8 de setembro de 2006, 11h21

Em 4 de outubro de 1999, morreu Damião Ximenes Lopes, pessoa com doença mental, na instituição psiquiátrica denominada Casa de Repouso Guararapes em Sobral (CE). Então com 30 anos, Damião foi sujeito à contenção física, amarrado com as mãos para trás e a necrópsia revelou que seu corpo sofreu diversos golpes, apresentando escoriações localizadas na região nasal, ombro direito, parte anterior dos joelhos e do pé esquerdo, equimoses localizadas na região do olho esquerdo, ombro homolateral e punho. No dia de sua morte, o médico da Casa de Repouso, sem fazer exames físicos em Damião, receitou-lhe alguns remédios e, em seguida, se retirou do hospital, que ficou sem nenhum médico. Duas horas depois, Damião morreu.

Desde então, sua família luta para que seja feita justiça: sejam os culpados punidos criminalmente e haja o pagamento da devida indenização pelos danos materiais e morais sofridos. Porém, passados quase sete anos da morte de Damião, não há sequer sentença nos autos do processo penal movido pelo Ministério Público cearense contra os responsáveis pela morte ou nos autos da ação de indenização cível interposta pela família.

Seria este mais um caso de dramas pessoais e familiares olvidados pela lentidão e inépcia da máquina judicial pública. Eis que surgiu, no plano internacional, a esperança de justiça que as instâncias internas negaram à família e à memória de Damião Ximenes Lopes: foi publicada a primeira sentença de mérito da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil, declarando a violação de vários direitos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José) e condenando o Estado a reparar os danos causados.

Para que se chegasse a tal sentença, foi necessária a superação de várias etapas. Com efeito, após petição dos familiares e da Justiça Global à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (sede em Washington), foi aberto procedimento contra o Brasil na comissão e seu informe conclusivo (1º Informe) não foi cumprido pelo Estado. Sendo assim, a comissão processou o Estado brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A corte, em um primeiro momento, não acolheu a alegação do Estado brasileiro de extinção do processo sem julgamento de mérito, por não terem sido esgotados os recursos internos disponíveis.

De fato, o esgotamento prévio dos recursos internos, previsto como requisito de admissibilidade de uma demanda no plano interamericano e que concretiza a chamada subsidiariedade da jurisdição internacional dos direitos humanos, não permite recursos lentos ou ineficientes. Logo, no caso concreto, como poderia o Brasil alegar com sucesso a falta de esgotamento de recursos internos se, nos dias de hoje, ainda não foram prolatadas nem a sentença criminal de primeiro grau nem a cível!

Esperar o esgotamento (trânsito em julgado) de tais ações em curso no Poder Judiciário do Ceará poderia implicar em mais uma dezena de anos sem justiça. Bem decidiu a corte, então, em prosseguir no julgamento do caso. Por outro lado, o Brasil reconheceu parcialmente sua responsabilidade internacional por violação dos direitos à vida (artigo 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos) e integridade física (artigo 5º) de Damião. Negou-se, todavia, a reconhecer a violação do direito à integridade psíquica dos familiares da vítima e tampouco o direito à reparação dos danos materiais e morais.

Ouvidas as testemunhas, os peritos e juntados os documentos, a corte, então, prolatou, no dia 4 de julho de 2006, a histórica decisão, por sete votos a zero e com voto concorrente do juiz brasileiro e professor Antônio Augusto Cançado Trindade, como se vê a seguir.

Principais pontos da sentença

Reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro por ato de particular sob a supervisão e fiscalização do poder público

A corte, além de atestar a confissão do Brasil de ser responsável pela violação dos direitos à vida e à integridade física de Damião, enfatizou que os atos imputados aos funcionários da Casa de Repouso de Guararapes eram de inegável responsabilidade do Estado brasileiro, uma vez que aquele ente estava sendo pago e supervisionado, então, pelas verbas públicas do Sistema Único de Saúde. Assim, o Estado é livre para delegar a execução dos serviços de saúde pública, mas tal delegação aos entes privados não elide sua responsabilidade primária sobre eventuais abusos ou negligências.

As pessoas com deficiência, por sua extrema vulnerabilidade, exigem do Estado maior zelo e prestações positivas de promoção de seus direitos

Esta sentença, além de ser a primeira de mérito contra o Brasil, é também a primeira na qual a corte analisou violações de direitos humanos de pessoa com doença mental. Por isso, a corte considerou que os deveres genéricos dos Estados de respeito e garantia dos direitos previstos no Pacto de San José (ver artigos 1º e 2º) concretizam, no caso das pessoas com deficiência, os deveres de cuidar, regular e fiscalizar. Logo, a corte determinou que não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas que é essencial que implementem “medidas positivas”, que devem ser adotadas em função das necessidades particulares de proteção do indivíduo.


O dever de cuidar implica em reconhecer que o Estado deve, para as pessoas que necessitam de atenção médica, possuir um zelo que evite o amesquinhamento de suas condições de vida. No caso de ser o tratamento assumido por entes privados, há o dever do Estado de regular e fiscalizar tais entes, impedindo situações aviltantes, como as retratadas como corriqueiras na Casa de Repouso de Guararapes.

A Convenção Interamericana dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência e o Pacto de San José: supervisão por ricochete

Outro ponto importante da sentença foi o reconhecimento de que a Convenção Interamericana sobre os Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência (Convenção da Guatemala) é vetor de interpretação dos direitos do Pacto de José, quando aplicado a casos envolvendo pessoas com deficiência. Assim, fica sanada uma importante lacuna da Convenção da Guatemala, que era justamente a impossibilidade de se processar um Estado signatário (como o Brasil) que a desrespeitasse perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Criou-se, assim, uma supervisão por ricochete: caso o Brasil desrespeite a Convenção da Guatemala, pode tal desrespeito ser considerado uma violação de algum dos direitos genéricos do Pacto de San José (como, por exemplo, o direito à igualdade) e, com isso, ser desencadeado o mecanismo de controle do pacto (petição à comissão e, após o trâmite adequado, ação perante a corte).

Presunção do livre-arbítrio da pessoa com deficiência mental e a autodeterminação do tratamento

A corte aproveitou a oportunidade para dar mostras de sua visão sobre os direitos específicos das pessoas com deficiência, em especial aquelas com doenças mentais. Assim, a corte enfatizou que a doença mental não pode servir para que seja negada a autodeterminação da pessoa e há de ser reconhecida a presunção de que tais pessoas são capazes de expressar sua vontade, que deve ser respeitada pelos médicos e pelas autoridades. Por seu turno, uma vez que seja comprovada a impossibilidade da pessoa para consentir, caberá aos seus familiares, representantes legais ou à autoridade pública decidir sobre o tratamento adequado.

Com isso, ficou consagrado que os indivíduos com deficiências mentais confinados em instituição psiquiátrica têm direito ao consentimento informado e, em conseqüência, o direito de recusar tratamento. Por isso, o uso injustificado e forçado de medicação psicotrópica deve ser considerado uma forma de tratamento desumano e degradante e uma violação do artigo 5.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

O tratamento forçado só poderia ser justificado em situação de dano iminente e urgência, o que não ocorreu no caso. Quanto à contenção de Damião, ficou provado que ele foi submetido à sujeição com as mãos amarradas para trás entre a noite do domingo e a manhã da segunda-feira, sem uma reavaliação da necessidade de prolongar a contenção, e se permitiu que caminhasse sem a adequada supervisão. A corte observou que o uso da sujeição apresenta um alto risco de ocasionar danos ao paciente ou sua morte e que as quedas e lesões são comuns durante esse procedimento.

Além disso, Damião morreu sem ser assistido por nenhum médico, já que a casa que se encontrava internado para cuidados psiquiátricos não dispunha de sequer um médico naquele momento. Logo, não se prestou a Damião a menor assistência e o paciente quedou-se, em virtude da falta de cuidados, à mercê de todo tipo de agressão e acidentes, o que ocasionou violação de sua integridade física e, após, sua morte.

Violação à integridade psíquica dos familiares de Damião

Em que pese a resistência do Estado brasileiro, a corte acabou por reconhecer que o sofrimento aos familiares pela perda de Damião Ximenes Lopes constitui-se em violação do direito à integridade psíquica. Assim, ficou consagrado que os familiares das vítimas de violações dos direitos humanos podem ser, por sua vez, vítimas.

A corte considerou violado o direito à integridade psíquica e moral de alguns familiares da vítima em virtude do sofrimento adicional por que passaram, em conseqüência das circunstâncias especiais das violações praticadas contra seu ente querido e ainda em virtude das posteriores ações ou omissões das autoridades estatais frente aos fatos.

Direito à vida é um direito que exige políticas públicas para implementar um mínimo existencial

A corte, citando precedentes anteriores, reiterou seu entendimento sobre os deveres amplos do Brasil para a proteção do direito à vida. Não basta, então, não violar de modo ilegítimo o direito à vida em virtude da ação ou omissão de seus agentes públicos, mas também deve adotar as medidas necessárias para criar um marco normativo adequado que dissuada qualquer ameaça ao direito à vida.


Por isso, urge que o Estado estabeleça um sistema de justiça efetivo, capaz de investigar, punir e reparar toda privação arbitrária da vida, bem como deve o Estado assegurar condições que assegurem uma vida digna. Assim, a corte aproximou-se do conceito do direito a um mínimo existencial como componente essencial do artigo 4º (direito à vida) previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Delonga do Poder Judiciário na punição penal é violação de direitos humanos

O direito à duração razoável do processo já havia sido reconhecido pela corte quer para a acusação (Caso Geny Lacayo), quer para a defesa (Caso Suárez Rosero). Na presente sentença, a corte foi particularmente dura com a delonga em se julgar a ação criminal e cível (indenização) no Poder Judiciário do Ceará (“A demora do processo se deveu unicamente à conduta das autoridades judiciais” — parágrafo 199 da sentença). De fato, na esfera criminal, a delonga é aliada implacável dos acusados, favorecendo a impunidade. Na esfera cível, a tutela tardia é tutela injusta.

A constatação da violação do direito à duração razoável do processo exige o estudo do caso concreto. O tempo razoável de duração de um processo, então, leva em consideração a complexidade do caso e ainda o comportamento das partes (autor e réu). No caso em comento, os maus tratos e o homicídio de uma pessoa, cujo corpo foi localizado e que morreu em local conhecido, cujo acesso era restrito a somente, algumas pessoas não foi considerado caso de complexidade elevada pela corte.

Aliás, a corte criticou a falta de objetividade e clareza das perícias levada a cabo pelo Instituto Médico Legal do Ceará, justamente um dos locais de trabalho do médico responsável pela Casa de Repouso de Guararapes. Também o comportamento das partes não ocasionou nenhuma demora significativa. Assim, a falta de sentença de primeiro grau após quase seis anos da propositura da ação penal foi considerada violação do direito a um processo de duração razoável.

Por outro lado, cabe aqui uma observação sobre o raciocínio jurídico pelo qual a corte chegou a conclusão de que a delonga na esfera criminal é violação de direitos dos indivíduos, uma vez que no processo penal típico brasileiro o acusador da ação penal pública é o Estado (via Ministério Público) e os indivíduos são os réus, justamente os beneficiados com a prescrição e a impunidade.

A corte considerou que houve violação dos direitos da família de Damião, uma vez que, na leitura da corte, os artigos 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos concedem o direito de acesso à Justiça por meio do devido processo legal. Logo, as vítimas de violações de direitos humanos e seus familiares têm sim o direito à verdade e à justiça na esfera penal por meio da investigação e castigo penal dos violadores de direitos humanos.

A corte não considera tal direito um retorno a teses antigas de “vendeta” ou vingança pessoal, inadmissíveis no processo penal contemporâneo, mas tão-somente um direito essencial à dignidade dos vivos e dos mortos (Caso Bámaca Velásquez) e que impede a repetição de tais condutas odiosas (garantia de não-repetição).

Cabe mencionar, ainda, que o juiz Cançado Trindade, em seu voto concorrente, conclamou a corte a avançar e reconhecer que o direito de acesso à Justiça em prazo razoável constitui-se parte do jus cogens internacional, ou seja, parte das normas imperativas, o que também será de preciosa valia para todos que se defrontam com a lentidão e a falência do sistema de Justiça penal no Brasil.

As reparações fixadas

Foi determinado pagamento de indenização pelos danos materiais e morais aos familiares de Damião. A título de danos materiais, foi fixado o pagamento de US$ 11,5 mil aos familiares da vítima. No tocante aos danos morais, determinou-se o pagamento de um total de US$ 125 mil a diversos parentes, com valores desiguais mensurados pela corte. Quanto às custas e gastos, a corte determinou que o Brasil pague US$ 10 mil a um familiar de Damião, como valor justo pelos gastos no acesso ao sistema interamericano.

Ademais, a corte decidiu que o Estado deve investigar e sancionar os responsáveis pelas lesões e morte de Damião. Assim, reconheceu-se que os familiares das vítimas têm o direito e os Estados têm o dever de investigar e punir. De modo expresso, a corte advertiu o Brasil de que o processo interno destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos deste caso deve surtir efeito em um prazo razoável, conferindo aplicabilidade direta no direito interno às normas de proteção da Convenção Americana de Direitos Humanos (parágrafo 248).

Por seu turno, a corte assinalou que o Brasil deverá publicar, no prazo máximo de seis meses, no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação nacional, uma só vez, o Capítulo VII, relativo aos fatos provados da sentença e sua parte resolutiva.

Ainda, deve o Brasil continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem, bem como para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o tratamento a ser oferecido às pessoas portadoras de deficiência mental, de acordo com as normas internacionais sobre a matéria e as dispostas nesta sentença.

Os prazos para cumprimento do dispositivo da sentença são variáveis: de até um ano para os pagamentos das quantias fixadas (os valores podem ser pagos em dólar ou convertidos em reais), de seis meses para a publicação da sentença e ainda um “prazo razoável” no que tange ao dever de punir e ao dever de formar e capacitar o pessoal de atendimento de saúde mental.

A execução do dispositivo da sentença: dever legal do Estado brasileiro

O Brasil deve cumprir as sentenças da corte, como obrigação que lhe incumbe ex vi o artigo 68.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (“Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”). No caso de ausência de cumprimento da sentença sponte própria, cabe aos interessados e ao Ministério Público Federal (fundado no artigo 109, inciso III da Constituição) exigir o cumprimento das obrigações e responsabilizar, inclusive por improbidade, as autoridades morosas.

No que tange especificamente à delonga quanto ao dever de investigar e punir, há de se invocar, se a delonga continuar, o disposto no novo artigo 109, parágrafo 5º da Constituição (federalização das graves violações de direitos humanos).

Conclusão

A sentença do caso Damião Ximenes Lopes expõe as mazelas do Brasil. Um cidadão com as mãos amarradas é morto em situação de extrema vulnerabilidade e somente sete anos após é que uma sentença, internacional, diga-se, restaura, em parte, a justiça, concedendo indenizações e exigindo punições. Do Judiciário local, nada.

Para aqueles que confiavam no Direito Internacional dos Direitos Humanos, é esta sentença motivo de aplauso. Nas palavras de Cançado Trindade, em seu voto concorrente no caso: “(…) Não obstante, ainda que privado da felicidade, e abandonado ao acaso (como, no presente caso perante esta Corte, o Sr. Damião Ximenes Lopes, que, confiado à “previdência” social em uma casa de “repouso”, aí encontrou a morte violenta), o ser humano não pode abandonar a luta pela justiça, enquanto mantiver a capacidade de indignação”.

Mantida a chama da indignação acesa, é de se esperar, no futuro, que tais casos não se repitam.

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