Ética e Poder

Político tem de ter identidade filosófica e retidão

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5 de setembro de 2006, 7h00

Há dois mil anos, recolheu-se o pensamento grego clássico e, reciclando-o para novos tempos, passou a se conviver, no Ocidente, com o cristianismo e suas raízes judaicas.

Captou-se as fontes do Direito Natural. Revelou-se o Direito Divino, como informa a teologia. Elaborou-se o Direito Positivo, desde a antiguidade remota. Vieram os padres da Igreja e, entre eles, Tomas com sua Suma Teológica. Platão, divulgado por Agostinho, esmaeceu até o surgimento da Reforma.

Entre sangue de reis e plebeus, as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa elaboraram princípios que se tornaram dogmas. A inviolabilidade do homem e sua dignidade foram proclamadas. Os frutos da arvore do conhecimento foram devorados um após o outro.

Ao se iniciar o século XXI, muros recém ruídos e ideologias sepultadas pareciam indicar que a paz kantiana, finalmente, se estabelecera. As torres, figuras de forte simbologia, lembrando Babel e a escalada impossível, ao ruírem fizeram ruir as esperanças.

O ser humano é efetivamente degenerado. A árvore do conhecimento matou a árvore da vida.

É dentro deste cenário repleto de descrença que ocorre esta convocação para discorrer sobre a Ética e a Política. É bom que isto aconteça.

Os dois termos colocados à exposição, muitas vezes, incompreendidos estão no cerne da contemporaneidade, onde os vocábulos política e ética e seus devidos conteúdos foram substituídos por força e ganância.

As sociedades não podem viver apenas suportadas pela força, por mais aterradora que esta possa parecer e muito menos pelo lucro, por mais hedonista que seja o prazer da acumulação.

Há uma ausência da prática política no mundo contemporâneo. O capital, inebriado por suas conquistas virtuais, pensa que tudo pode.

Os operadores do capital acreditam possível dobrar todas as dificuldades e consciências e, a partir de uma racionalidade cartesiana, esquecem o valor da intuição, que antevê os fatos e indica soluções, evitando conflitos.

Ora, a política, como arte de difundir idéias, persuadir pessoas e conduzir comunidades, suporta-se em determinados fundamentos peculiares. Os clássicos apontam como elemento essencial da ação política o conhecimento da história.

A história é repositório de acontecimentos e estes, alteradas as circunstâncias de tempo, lugar e pessoas, tende a se repetir e, se isto não ocorrer, restará o exemplo de como se conduziram os políticos — aqui entendidos como imperadores, reis, líderes religiosos ou representantes populares — em momentos complexos de suas vidas. Temos, pois, na história, um dos elementos fundamentais para atividade política.

Mediante a aplicação do método comparativo, o ontem pode ser aproximado ao hoje e, recolhidos os traços equivalentes, avançar para o futuro, sem a prática dos mesmos erros cometidos no passado. A intuição, já referida, deve ser apontada como outro indispensável instrumento da ação política.

O verdadeiro político tem a capacidade do conhecimento direto, imediato, sem recurso a racionalização. Ele antevê o futuro e as conseqüências dos atos presentes. Ainda mais.

O político deve reconhecer as qualidades de seus adversários e, necessários, recolher exemplos em suas atuações, sem nunca, todavia, abdicar dos valores que constituem seu arcabouço intelectual e ético.

Não existe político sem conteúdo doutrinário. Os que se dizem políticos, mas não possuem identidade filosófica, na verdade são marionetes conduzidos por terceiros, muitas vezes ocultos. Vivem algum tempo. Não persistem, porém.

Ser político é exercer uma tarefa missionária e uma ação pedagógica. Não é político o populista falastrão, deixa de ser político o que se dobra a qualquer insinuação ou adversidade. Estes são atores que recitam texto alheio.

O político verdadeiro luta por seus princípios. Opõem barreiras a má vida e repele as adversidades. Procura, mediante a persuasão, levar a comunidade a bons caminhos, afastando os obstáculos e fazendo-a atingir seus objetivos.

Até aqui, porém, ainda não temos um político em sua plenitude. A figura plena do político só é atingida quando, em amálgama perfeita, a personalidade acima descrita, com seus atributos e instrumentos, se conduz com retidão.

O que é a retidão na política? Em registro meramente explicativo, portanto não exaurindo o tema, retidão em política é ser leal.

A felonia é a mais degradante ação humana. O traidor é agente de degradação social, fragiliza as relações, levando a insegurança e a desconfiança a todos os setores da sociedade.

É vilania trair e agir sorrateiramente. O verdadeiro político age às claras. Toma posições sobre a luz do sol. Não abandona companheiro. Repele insinuações malévolas contra terceiros.

Em segundo lugar, é retidão na política, não confundir o espaço público com o espaço privado. O que é de terceiro — particular ou Estado — se encontra em esfera alheia ao espaço próprio do agente político.

Respeita o político o bem público e preserva os bens existentes em espaços particulares. Não deve, na vida pública, buscar benesses. Deve possuir o verdadeiro político nítido em sua consciência que sua atividade é derivada da vontade popular direta ou indireta e esta não pode ser fraudada sob pena de se agir contra uma vontade, que por ser coletiva, em determinado momento, pode ser erguer com a irracionalidade de um Leviatã.

Deve agir, portanto, o verdadeiro político impulsionado por duas éticas:

– A ética da convicção, que lhe dá segurança na atuação;

– A ética da responsabilidade, que lhe permite agir, em determinadas circunstâncias, mesmo que contrariando sua vontade profunda.

Mesmo que o agente político aja com retidão — entendendo-se, aqui, retidão como ética (ou seja, o viver de acordo com princípios valores estabelecidos por determinada sociedade em determinada época) — o político deve compreender que, na política, não há nenhum sabor salvátíco, pois ela trabalha em torno do poder e este, em sua essência, no dizer de Weber, é conduzido pelas forças diabólicas da história.

Ora, como sobreviver a esta visão pessimista da política e de seu locus o Poder? A democracia é a única forma de governo que pode mitigar as forças diabólicas a que se referia o pensador de Heidelberg.

Esta forma de governo, que permite a participação de todos nos negócios públicos ou acompanhar os processos administrativos e parlamentários, permite a plena fiscalização de todas as atividades estatais e pessoais e, assim, permite que a antiga política dos vizinhos, das velhas Ordenações do Reino, se coloque, em pleno século XXI, em toda plenitude.

A democracia, para ser plena, deve ser acompanhada pelo princípio da transparência, pois onde há espaços secretos existe fissuras para a prática de atos corruptos.

A rotatividade nos cargos administrativos é fundamental. Toda vez que um titular da administração permanece por longo no poder, este se fragiliza e fragilizam-se os seus integrantes.

Restam algumas reflexões. A democracia tem inimigos que a corrompem. Ela exige tolerância. O paradoxo da tolerância indica, porém, que, quando esta é concedida ilimitadamente, possibilita aos intolerantes assumir o poder e, uma vez instalados, colocam fim à tolerância e, com a sua morte, à própria democracia.

A corrupção, apesar de endêmica, porque própria da natureza degradado do homem, tem, hoje, limitações de todas as ordens. A corrupção não pode ser permitida, pois fere as relações interpessoais e deve ser afastada por agredir o bom senso médio. Este exige a preservação dos bens públicos, que não pertencem a ninguém, porque são patrimônio de todos.

Não terão sossego os corruptos. Os mecanismos internacionais de coerção às suas ilícitas atividades estão presentes por toda parte e de toda a parte os farão correr até atingir o julgamento definitivo dos tribunais e da história, mediante a aplicação do devido processo legal.

Há estados soberanos que, por seus tribunais superiores, já declaram:

“o ato administrativo contrário à regra da moral resulta em nulidade absoluta, que o faz inclusive imprescritível, pois o tempo não pode purgar esse vício. O que é imoral não pode se auto-sanar pelo decurso de tempo. O tempo é impotente para transformar o imoral em moral” (Corte Suprema de Justiça do México).

Mais ainda. Os órgãos fiscalizadores trocam informações por intermédio das modernas formas eletrônicas (e-mails), fugindo das avoengas cartas rogatórias que impediam o pronto conhecimento das múltiplas verdades, preservando as soberanias em detrimento da moralidade pública internacional e das múltiplas comunidades nacionais.

O pessimismo imposto, no inicio desta exposição, deve agora ser mitigado. A pesar de todos os males existentes — inclusive a forte presença da corrupção nos países emergentes, como o Brasil — há motivos para esperança.

A política passa a ser entendida dentro dos contornos éticos, neste inicio de milênio. Os imorais e os amorais podem aprontar suas valises de mão. A hora do cárcere está próxima. Vencerão, a longa batalha, a ética e o poder. O poder, limitado pela lei, se conduzirá visando o interesse da sociedade e não de grupos ou/e poucas pessoas.

Resta a derradeira reflexão: o poder humano nasce do medo cósmico e este acarreta, como dizia Kant, um medo sublime. É este medo que cada um de nós — consciente ou inconscientemente — sempre sente perante o poder. Ele, com suas forças diabólicas, pode produzir o bem ou o mal, de acordo com a vontade e intenções de seus titulares.

Daí a necessidades de estarmos sempre atentos, exigindo a preservação das instituições e a transparência de todos os atos de quem ocupa o poder.

Com a sua possibilidade de impor violência, falsidade, alarmes e medo, o poder tende a praticar crimes suprajurídicos, isto é, não previstos em qualquer norma. Daí, registre-se, a necessidade de se preservar a ética e, na iminência de qualquer atitude inusual do poder, estarmos atentos a alertas.

Reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Outubro/2001

Conferência proferida no 10° Encontro Nacional de Direito Constitucional, em São Paulo, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no período de 4 a 6 de outubro de 2001. Na época, Cláudio Lembro era reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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