Jogo de opiniões

Sistema de escolha de juízes nos EUA deve ser exemplo

Autores

  • Marcello S. Godinho

    é doutor em Direito doutorando em Economia e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Gama Filho (RJ). è também visiting scholar na Universidade de Londres.

  • Fernanda Duarte

    é doutora em Direito e professora do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Gama Filho (RJ).

4 de setembro de 2006, 7h00

No início do ano, tomou posse como 110º juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Samuel Alito. Sua confirmação pelo Senado foi uma batalha que começou logo após sua indicação pelo presidente George W. Bush, em 31 de outubro de 2005. Anteriormente, foi indicada Harriet Miers que, devido a fortes resistências, especialmente calcadas em sua pouca qualificação jurídica e profissional, se viu na contingência de renunciar à indicação.

Tal episódio chama atenção para o jogo de forças políticas que culmina na Suprema Corte. Ressalta também as diversas esferas da sociedade que participam desse processo. No particular, duas instituições se sobressaem.

Por mais de 50 anos, a ABA (equivalente à OAB) avalia as credenciais jurídicas dos candidatos para as cortes federais. Além desta avaliação corporativa, o Senado norte-americano também desempenha um papel fundamental. Por meio de seu Comitê Judiciário, é enviado um longo questionário ao indicado, onde constam perguntas que tanto aferem a qualificação jurídica como revelam sua visão sobre o direito e o papel do juiz na sociedade. Após a aprovação do Comitê, segue-se a sabatina no Senado, onde se vê de forma mais explicitada a luta política que representa a escolha de juiz da Suprema Corte.

Esta última nomeação foi interessante e vale ser historiada. Alito já era juiz da Corte Federal de Apelação do 3º Circuito (Filadélfia) — uma das mais liberais no país — e foi considerado pela ABA, em suas duas indicações (Corte Federal e Suprema Corte), altamente qualificado para o cargo. No Comitê Judiciário do Senado, presidido pelo senador Arlen Specter (R-Pensilvânia), sua aprovação se deu por uma apertada margem (10 votos a oito), revelando uma cisão notadamente partidária. Todos os republicanos votaram a seu favor e todos os democratas contra. A última vez que tal fato ocorreu foi na indicação de Louis Brandeis, que ficou na corte de 1916 a 1941.

Durante as audiências, ocorreram grandes debates, nos quais os senadores interrogavam o candidato sobre questões fundamentais para a sociedade norte-americana passíveis de decisão final pela Suprema Corte. Nas argüições, senadores democratas perguntavam porque Alito não respondia às questões ou instigavam-no a revelar suas verdadeiras opiniões sobre questões controvertidas.

Atualmente, considerando-se as sabatinas passadas, aconselha-se ao candidato a ser o mais vago possível, ou, como se diz jocosamente, “a demonstrar ser mais inteligente que o seu inquiridor”. Embora seja da tradição que o Senado aprove o indicado em razão de suas qualificações jurídicas e pessoais, experiência e temperamento, há uma preocupação, sobretudo, com sua filosofia jurídica, visão da Constituição e dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Alguns senadores democratas liderados pelo candidato derrotado à Presidência, John Kerry, tentaram usar a tática parlamentar filibuster, que consiste em prolongar indefinidamente o debate, bloqueando a votação do nomeado. São necessários 60 votos para encerrar a discussão e se passar finalmente à votação. O senador Ted Kennedy, apoiante do filibuster, afirmou que Alito não compartilhava dos valores de igualdade e justiça que fazem dos Estados Unidos um país forte. Para ele, trata-se de um compromisso entre gerações, um teste de consciência. E mais. Kerry disse que esta nomeação era causa para celebração por parte da direita, sendo um golpe de mestre na Suprema Corte.

Os republicanos detêm 55 cadeiras de um total de 100. Apesar de todos os protestos, conseguiram derrotar por 72 a 25 a tática parlamentar dos liberais e encerraram os debates. Na votação final em plenário, Alito foi aprovado por 58 a 42 — a votação mais apertada desde a aprovação por 52 a 48 de Clarence Thomas, em 1991.

A análise dos votos favoráveis aponta que os quatro senadores democratas que apoiaram Alito são representantes de estados em que o presidente Bush obteve vitórias significativas em 2000 e 2004. O único senador republicano que votou contra é tido por moderado e enfrentará uma difícil eleição este ano em seu estado, marcadamente democrata.

Verificamos, porém, que por vezes um juiz toma posições imprevisíveis do ponto de vista de seus apoiadores ideológicos. No primeiro julgamento de que tomou parte o juiz Alito, embora conservador, votou pela suspensão da pena de morte de Michael Taylor, condenado pelo seqüestro, estupro e morte de uma jovem de 15 anos no Missouri. Por seis votos a três — vencidos o presidente Roberts e os juizes Scalia e Thomas — a Corte suspendeu a pena, sob o fundamento de que o mecanismo da execução (injeção letal) causa sofrimento indevido, violando a proteção constitucional contra a adoção de punição cruel e esdrúxula (cruel and unusual).

Hoje, no Brasil, há uma tendência de concentração de poder nos tribunais superiores. Isso se percebe na adoção de diversos institutos, como por exemplo, a súmula vinculante para o Supremo Tribunal Federal e a súmula impeditiva de recursos para os demais tribunais. Nesse contexto, a importância do papel a ser desempenhado por essas cortes aumenta de grandeza.

A sociedade precisa se interessar pela indicação dos seus juizes, inteirando-se de seus pensamentos e opiniões sobre questões fundamentais. A nomeação dessas pessoas é assunto de interesse geral e não pode ser deixada nas mãos de corporações profissionais ou ao alvedrio de preferências pessoais de quem quer que seja. Se a sociedade civil não romper com tal apatia e não se mobilizar, permanecerá refém de interesses particulares, que buscam se legitimar por meio de listas de adesão e apoio de amigos e/ou corporações, sem que a população, contudo, conheça o candidato ou referende sua concepção do direito e do mundo.

O tema é crucial para o bom funcionamento de nossa democracia. E nesse sentido, a experiência norte-americana nos ajuda a compreender a dinâmica do processo de escolha dos juizes da corte maior, fundamental numa sociedade livre e autônoma, dona de seu destino.

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