Multas e confisco

Não cabe ao fisco ameaçar os contribuintes

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4 de setembro de 2006, 16h40

Recentemente, uma autoridade da Receita Federal, aqui em São Paulo, deu amplas entrevistas à imprensa, informando que teriam sido descobertas fraudes relacionadas com o não pagamento da Cofins e do PIS, o que resultaria em milhares de autos de infração contra empresas do Estado que, segundo a autoridade, ficariam sujeitas a “pesadas multas”. A matéria teve ampla repercussão em vários órgãos da imprensa, especialmente na mídia impressa.

O Código Tributário Nacional , em seu artigo 198, proíbe que servidores públicos divulguem “informação obtida em razão do ofício”. Embora a lei fale apenas em situação econômica ou financeira, claro está que qualquer empresa pode ter seu crédito abalado caso sobre ela paire alguma dúvida relacionada com possíveis autuações que possa sofrer.

Assim, não é ético que a autoridade fazendária, mesmo sem nomear qualquer empresa, venha a fazer de público um anúncio genérico, mencionando milhares de empresas, dentre as quais pode estar, quem sabe, aquela empresa com ações negociadas em Bolsa, cujos acionistas podem ficar preocupados com a inevitável desvalorização de seus títulos ante a possível autuação, acrescida de “pesadas multas”.

Parece que as autoridades resolveram ignorar o Código de Ética do servidor público e os preceitos constitucionais, a começar pelo preâmbulo da nossa carta magna.

Como a legislação tributária brasileira é extremamente complexa, instável e insegura, o seu cumprimento vem se tornando cada vez mais difícil, pois os contribuintes muitas vezes não conseguem acompanhar suas alterações, inclusive no que respeita aos diversos prazos de recolhimento dos inúmeros tributos a que estão sujeitos. Esses prazos mudam com muita freqüência, de tal forma que mesmo as empresas bem organizadas correm o risco de, involuntariamente, cometerem irregularidades.

Em praticamente todas as obrigações comerciais e civis, tem sido admitido que, se o seu vencimento ocorrer em dia não útil (sábado, domingo, feriado), prorroga-se automaticamente para o dia útil imediato. Mas a lei fiscal diz que os tributos federais devem ser antecipados. O governo que não devolveu os empréstimos compulsórios desde 1986, que não devolve com rapidez o Imposto de Renda retido na fonte a maior, que não paga pontualmente as suas dívidas, exige que o contribuinte antecipe o recolhimento do tributo numa evidente violação ao princípio da isonomia, cláusula pétrea de nossa Constituição.

E assim, com fundamento na lei votada às pressas pelo Congresso, em épocas diferentes da atual, quando a inflação estava nas alturas, a Receita Federal vem lavrando autos de infração onde cobra multa de até 75% do valor do tributo, quando não a eleva a 150% a pretexto de suposta “fraude”.

Quando a nossa carta magna foi promulgada, os constituintes, em nome do povo brasileiro, diziam instituir um Estado Democrático destinado a assegurar, dentre outros , “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna” , para o que invocaram “a proteção de Deus”.

A lei vigente, ao viabilizar uma multa com efeito claramente confiscatório, nega vigência aos primeiros cinco artigos da Constituição e não pode ser utilizada como vem sendo.

Determinada empresa, que recolheu com um único dia de atraso o tributo que entendia vencido naquela data, recebeu um auto de infração onde, apesar de ter sido pago o tributo (cujo valor não se sabe se foi corretamente aplicado), é aplicada uma multa por atraso de cerca de R$ 1 mil e uma “multa isolada” de quase R$ 120 mil, que ultrapassa o seu próprio patrimônio!

A Constituição, no artigo 150, IV, faz referência apenas ao tributo quando proíbe sua cobrança com efeito confiscatório. Todavia, a jurisprudência e a doutrina entendem perfeitamente aplicável às multas a mesma limitação. Nesse sentido é a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (DJU de 20/8/99, página 341):

“A multa, a pretexto de desestimular a reiteração de condutas infracionais, não pode atingir o direito de propriedade, cabendo ao Poder Legislativo, com base no princípio da proporcionalidade, a fixação dos limites à sua imposição. Havendo margem na sua dosagem, a jurisprudência, com base no mesmo princípio, tem , no entanto, admitido a intervenção da autoridade judicial”.

Ou seja: a Justiça pode, constatando que a multa é confiscatória, interferir no lançamento e adequá-la aos princípios constitucionais que mencionamos.

Ainda que seja legal uma multa, porque prevista em lei, trata-se de lei inconstitucional, iníqua, injusta, que qualquer Congresso sério deveria ter vergonha de aprovar e qualquer governo igualmente sério mais vergonha ainda de aplicar.

Também o Superior Tribunal de Justiça, no Processo 1998.010.00.50151-1, decidiu que:

“Não é confiscatória multa de 20%, inferior a percentual maior (30%) considerado razoável pelo SFT (RE 81.550-MG, in RTJ 74/319)”.

Veja-se que o STJ, embora não tenha discutido a multa de 75%, adotou um parâmetro de 20% para considerar como não confiscatória a multa por infração fiscal nesse percentual.

Em sua obra Multas Tributárias (Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2002, pág. 205), preleciona Ricardo Corrêa Dalla:

“Os critérios para a fixação das multas tributárias devem obedecer aos padrões do princípio da razoabilidade, isto é, devem levar em conta também se a situação ocorrida foi agravada com dolo ou culpa”.

A doutrina pátria tem declarado serem ilegais e inconstitucionais multas com efeitos confiscatórios. A matéria foi exaustivamente examinada e debatida no XXIV Simpósio de Direito Tributário promovido pelo Centro de Extensão Universitária em São Paulo no ano 2000, do qual resultou a obra coletiva Direitos fundamentais do contribuinte, coordenada pelo professor Ives Gandra da Silva Martins (Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000) e da qual podem ser extraídos os seguintes trechos:

“O alcance do preceito constitucional que veda o confisco é também extensivo às penalidades, pois sendo desdobramento da garantia do direito de propriedade (art. 5º, XXII e art. 170, II) proíbe o confisco ao estabelecer prévia e justa indenização, nos casos em que autoriza a desapropriação, não poderia ficar de fora do alcance dessa proteção constitucional a imposição de multas confiscatórias. O valor das multas a serem aplicadas deve ser proporcional ao valor objeto da obrigação tributária, sob pena de destruição do bem de onde surgirão os recursos para o Estado, à título de tributo, ou seja, a proporcionalidade da multa se impõe sob pena de destruição da fonte do tributo, que é o contribuinte.” (professora Marilene Talarico Martins Rodrigues, obra citada, página 338).

Registra ainda a doutrinadora paulista na mesma obra e página que:

“O Supremo Tribunal Federal tem entendido que , sequer nos casos de fraude inequívoca, em que as medidas punitivas são mais rigorosas em face do dolo comprovado, poderão subsistir penalidades confiscatórias, tendo na ADIN 551-RJ, concedido medida liminar, consoante se lê da ementa:

‘Ação Direta de Inconstitucionalidade — Parágrafos 2º e 3º do art. 57 do ADCT do Estado do Rio de Janeiro , que dispõem sobre multa punitiva nas hipóteses de mora e sonegação fiscal. — Plausibilidade da irrogada inconstitucionalidade, face não apenas à impropriedade formal da via utilizada, mas também ao evidente caráter confiscatório das penalidades instituídas.” (RTJ-138/55)’.

Há ainda uma outra questão a ser levantada nessa enorme quantidade de autos de infração que o fisco federal diz que vai enviar a milhares de contribuintes: o Decreto 70.235/75, que regula o processo administrativo fiscal, em seu artigo 11, determina que o contribuinte, antes de ser autuado, deve ser previamente notificado para que possa se defender. Isso é norma prevista no artigo 5º, inciso LV, da Constituição, que trata do devido processo legal.

O 1º Conselho de Contribuintes, órgão julgador da segunda instância administrativa no âmbito do Ministério da Fazenda, já decidiu que:

“Tendo a infração sido averiguada mediante revisão da declaração, realizada no âmbito da repartição lançadora, o lançamento deve ser feito mediante notificação, conforme o artigo 11 do decreto 70.235/72.” (Acórdão nº 101-79.888/90, Diário Oficial da União de 05/06/90).

A Justiça vem repelindo a cobrança de multas desproporcionais à infração cometida, mesmo quando previstas em lei. Não se trata de o juiz substituir o legislador, mas sim de adequar a lei aos princípios constitucionais, especialmente os do artigo 37 da lei maior.

Essa enorme quantidade de autuações que informa o fisco federal que vai emitir, poderá criar uma série de dificuldades para os contribuintes, que serão obrigados a defender-se administrativa ou judicialmente, abarrotando ainda mais nossa Justiça Federal. E, como certamente alguma alta autoridade dirá, pode surgir uma nova “indústria de liminares”.

Não tem qualquer sentido prático a autoridade fiscal convocar a imprensa para anunciar que vai autuar alguém. Seu dever é autuar e seu dever maior é observar o sigilo. O que se fez foi ameaçar e, por não ter sido citado quem seriam os supostos “fraudadores”, a ameaça foi uma generalização que se tornou injusta e desnecessária. Mais uma vez, o Fisco consegue unir o inútil ao desagradável.

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