Regras claras

OAB quer que uso de algemas seja expressamente regulamentado

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31 de outubro de 2006, 17h55

O Conselho Federal da OAB aprovou, por unanimidade, um parecer para que o uso de algemas seja expressamente regulamentado. A idéia é encaminhar uma proposta legislativa ao Congresso Nacional para que seja elaborada uma regra específica que restrinja e discipline o uso de algemas. O relator do tema é o advogado criminalista, Alberto Zacharias Toron, conselheiro do Conselho Federal pelo estado de São Paulo.

O parecer sugere que o artigo 284 do Código de Processo Penal seja acrescido de um parágrafo único com a seguinte redação: “É vedado o emprego de algemas, salvo quando haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso”.

O artigo 284 do CPP diz que: “Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.” Segundo o conselheiro, o parágrafo único deixaria ainda mais claro, para que não reste dúvidas, de quais são os casos em que o uso de algema é permitido.

Para Toron, embora o Código de Processo Penal não regule expressamente o emprego de algemas, o artigo 284 e o princípio da dignidade humana (artigo 1º, inciso III, da CF) já sinalizam que o uso de algemas não pode ser indiscriminado, como tem ocorrido em alguns casos. O novo parágrafo deixaria essa situação ainda mais explícita.

Segundo o conselheiro, a providência para regular o uso de algemas “é de bom alvitre, até para que o cidadão não fique ao sabor da melhor ou pior interpretação do agente estatal incumbido de realizar a prisão”.

O parecer também será encaminhado ao Ministério da Justiça, que deverá repassá-lo à Polícia Federal, para que o uso indiscriminado de algemas seja combatido. O abuso tem sido praticado em alguns casos, segundo o parecer, como na prisão do filho do deputado federal Paulo Maluf, Flavio Maluf, e do presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia, Sebastião Teixeira Chaves.

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Leia o voto de Toron:

PRO – 0055/2006

Assunto: Uso indevido de algemas.

Relator: Alberto Zacharias Toron

I- Introdução:

Em data não muito distante o país assistiu a uma cena no mínimo estranha: o filho de um conhecido político paulista entregava-se à prisão e, como não estava em São Paulo, veio pilotando o próprio helicóptero do local em que se encontrava para a sede da Superintendência Regional da Polícia Federal (PF). De carona, com o detido, vieram os agentes federais executores da prisão. Como por razões que se desconhece o helicóptero não pousou no heliponto da PF e sim num local onde se encontrava um conhecido repórter da Rede Globo de TV, um dos policiais tomou a iniciativa de algemar o preso diante da Câmera da Globo. Mais recentemente, ao executar a prisão do Presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia, as algemas também foram empregadas pela mesma PF.

Em ambos os casos os detidos foram exibidos com os grilhões à imprensa, como uma espécie de exigência de uma sociedade sequiosa de representações fortes, nas quais a palavra não é suficiente, as prisões com sua ampla cobertura pela imprensa, fornecem, como os Autos de Fé outrora, o suporte visual da argumentação vitoriosa. O espetáculo é definitivo. Trata-se, antes de mais nada, de uma apresentação pública de abjuração, da reconciliação e do castigo.

A questão que se coloca é a de se saber se num Estado Democrático de Direito é possível (lícito) o emprego de algemas fora dos casos de real necessidade. Sim, pois num Estado que tem, de um lado, na dignidade humana um princípio reitor e, de outro, na presunção de inocência uma garantia, ambos com assento constitucional, não se pode permitir o emprego abusivo de algemas e, muito menos, com o fim de degradação do ser humano, rico ou pobre, negro ou branco, homem ou mulher.

Como o tema foi alvo de discussão no Plenário deste Conselho Federal e a matéria reclama urgente regramento para balizar o emprego das algemas, o il. advogado Antonio Sergio de Moraes Pitombo, filho do saudoso Professor Pitombo, honra e glória do pensamento processual penal brasileiro, enviou-me um valioso trabalho da lavra de seu pranteado pai que nos dá uma segura direção no que concerne à proposta em foco. Antes, porém, de se abordar o tema de um ponto de vista jurídico, parece imprescindível advertir para o engano daqueles que pensam que a questão das algemas só despertou interesse porque ricos e poderosos passaram a ser aguilhoados.

Desde os anos 70, parafraseando uma campanha da CNBB, dizia-se que a opção preferencial do Direito Penal no Brasil eram os pobres. A crítica não se resumia à denúncia do caráter seletivo das leis penais e do seu sistema: polícia, tribunais e penitenciárias. Denunciavam-se também os arbítrios praticados contra aqueles que excluídos econômica, social e politicamente, eram submetidos a maus tratos (eufemismo para a tortura), escrachos públicos pela imprensa e, por fim, jogados em masmorras fétidas e indignas.

Com a crescente democratização da sociedade ampliou-se a incidência do sistema penal. Não foram apenas novas leis criminalizando o Colarinho Branco, mas, fundamentalmente, órgãos de controle como a polícia, Procuradorias das diferentes Fazendas, Ministérios Públicos dos Estados e o Federal, entre outros, com uma nova mentalidade e vontade política, que passaram a investigar condutas de um outro segmento social até então tidas como irrelevantes ou que ficavam em aberto ou, pior ainda, encobertas.

Mas, com a aparição dos ‘novos’ personagens do mundo do crime, os abusos que antes eram objeto de viva repulsa, passaram a ser não apenas tolerados, como, de certa forma, incentivados. Assim, prisões preventivas são requeridas e decretadas amiúde, empresários e homens de governo são publicamente escrachados, mesmo que se tratem de meros suspeitos. Tem-se a impressão de que se cultiva uma ideologia da “hora e a vez da burguesia na polícia”. Com esta forma de pensar esquece-se que, numa sociedade edificada sobre a base da dignidade humana, estampada na Constituição como valor reitor (art. 1º, inciso III) e que presume a inocência do cidadão (art. 5º, inc. LVII), não se pode conviver com a execração pública, degradação e linchamento moral dos cidadãos, ainda que abastados, como forma de exercício do poder, tal qual se fazia sob o absolutismo. Por outras palavras, o que se combateu como opressão dirigida aos segmentos desfavorecidos, porque afrontoso aos Direitos Humanos, não pode, perversamente, vir validado e aplaudido como se fosse a “democratização do direito penal”, que agora também atinge os ricos.

Por outras palavras, admitir que os ricos e ocupantes de cargos do poder público possam ser algemados sem qualquer necessidade, mas para o cumprimento de um costume injusto e revelador de uma desmedida prepotência, traduzindo, portanto, uma espécie de regra de isonomia gritantemente abusiva, é permitir que se crie um caldo de cultura de violência por parte dos agentes do Estado que ofende a dignidade humana. A se seguir tal linha de raciocínio, seus cultores, ficaram felizes por verem os pobres (como sempre) e os ricos (como nunca) espezinhados. De qualquer modo, em ambos os casos, prevalecerá o emprego abusivo e desnecessário da força.

II- O emprego válido das algemas:

Lembra o mestre Pitombo num trabalho clássico, intitulado “Emprego de Algemas – notas em prol da sua regulamentação”(1), que já no art. 180 do Código de Processo Criminal de Primeira Instância do Império havia menção ao emprego “de força necessária” para efetuar a prisão quando o réu não obedecesse; caso contrário “o uso da força é proibido” (cf. f. 05). Surgia, assim, “implicitamente, permitido o emprego de algemas, no instante da prisão. Ramalho, comentando a norma processual, lecionava: emprega-se a força necessária para chama-lo à obediência, se resiste com armas, fica o executor autorizado a usar dos meios, que julgar indispensável a sua defesa” (idem). Bem por isso, Pimenta Bueno, salientava que “fora do caso de resistência, ou diligência de evasão, é absolutamente proibido todo e qualquer mau trato contra o preso, pena de responsabilidade” (idem).

Mas foi com a Lei n. 2.033, de 20/09/1871, regulamentada pelo Decreto n. 4.824 de 22 de novembro do mesmo ano, que no art. 28 deste diploma, ao cuidar da prisão, estabelecia o seguinte: “… O preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor…” (idem).

Sem querer me aprofundar na exposição de caráter histórico que o trabalho do Prof. Pitombo esgota, mas nas águas dele, vale recordar que o Projeto de Código de Processo Penal de 1935, ao tratar da prisão, preceituava que “é vedado o uso de força ou o emprego de algemas, ou de meios análogos, salvo se o preso resistir ou procurar evadir-se” (f. 06). O Projeto não vingou e só em 1941 irrompeu o Código de Processo Penal, ainda em vigor, que sai do ventre do Estado autoritário de Getúlio, conhecido por Estado Novo, sem, porém, aludir ao emprego das algemas.

Não obstante, como elucida Pitombo, no CPP em vigor vamos encontrar no art. 284 uma regra que lembra o já referido art. 180 do Código de Processo Criminal do Império, eis o seu teor: “não será permitido o emprego de força salvo o indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. Assinala Pitombo que, diante deste artigo e do que dispõe, ao tratar do flagrante, o art. 292 do mesmo diploma, “parece não haver dúvida de que, se com as algemas o executor da prisão pode vencer a resistência, ele está autorizado a usá-las”. Fora daí, dizemos nós, não.

Na linha do que se expõe e anota Pitombo, é de se observar que o Código de Processo Penal Militar, promulgado em 1969, alude ao emprego de algemas no §1º do art. 234, de forma muito feliz, verbis: “O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso e de modo algum será permitido nos presos a que se refere o art. 242”, isto é, nos Ministros de Estado, Governadores, respectivos Secretários e chefes de polícia; membros do Congresso Nacional, magistrados, cidadãos inscritos no Livro do Mérito das ordens militares ou civis reconhecidos em lei, oficiais das forças armadas, inclusive os da reserva, diplomados por curso superior, ministros de confissão religiosa etc.

Embora se possa questionar as exceções que o CPPM abre para determinados ocupantes de cargos públicos ou detentores de diploma, ou exercentes de certas funções, a regra constante do §1º do art. 234 é salutar no que concerne à restrição ao emprego de algemas, admitido este apenas quando haja perigo de fuga ou de agressão por parte do preso. Este modelo deve, sem a ressalva do art. 242 do mesmo Código, ser aplaudido e indicado pelo Conselho Federal da OAB ao Legislativo como regra a ser estabelecida no campo do Código de Processo Penal. Sugere-se, portanto, que o artigo 284 do CPP seja acrescido de um parágrafo único com a seguinte redação:

É vedado o emprego de algemas, salvo quando haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso”.

Não obstante inexistir diploma legal regulando expressamente o emprego de algemas, o uso destas representa o emprego de força que o próprio artigo 284 do CPP em vigor não tolera e nem condiz com um tratamento respeitador da dignidade humana. Portanto, a partir de uma interpretação sistemática, mesmo sem a existência do alvitrado parágrafo único para o artigo 284 do CPP, não pode a polícia empregar indiscriminadamente algemas nos presos. Ao fazê-lo pratica, inegavelmente, abuso de poder passível de sanção.

É o voto.

Salvador, 30 de outubro de 2006.

ALBERTO ZACHARIAS TORON

Conselheiro Federal

Ementa:

Embora o Código de Processo Penal em vigor não regule expressamente o emprego de algemas, decorre do disposto no seu art. 284 e do princípio de proteção à dignidade humana (CF, art. 1º., inc. III), que o emprego destas não pode ser indiscriminado. Ao contrário, deve circunscrever-se aos casos de real necessidade representada pelo perigo de fuga ou agressão do preso.

O disposto no §1º do art. 234 do CPPM, sem a ressalva do art. 242 do mesmo diploma, deve servir de modelo para regular a matéria.

A despeito de uma interpretação conforme a Constituição tornar dispensável a inserção de uma norma no CPP para regular o emprego das algemas, é de bom alvitre, até para que o cidadão não fique ao sabor da melhor ou pior interpretação do agente estatal incumbido de realizar a prisão, que seja acrescido ao CPP um parágrafo único com a seguinte redação: “É vedado o emprego de algemas, salvo quando haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso”.

A OAB repudia todas as formas de violência e, em especial, as que revelam abuso de poder mediante o emprego desnecessário de algemas.

Nota de Rodapé:

(1) Trabalho publicado na Revista dos Tribunais, v. 592, p. 275, de fev. de 1995.

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