Desconto do IPTU

Contribuinte tem de juntar nota por 138 anos para obter prêmio

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31 de outubro de 2006, 12h49

A implantação da chamada nota fiscal eletrônica parece ser uma beleza. Racionaliza os serviços, diminui a burocracia, reduz a sonegação, etc. e tal. Fazemos votos de que se trate de um sistema absolutamente seguro, que impeça fraudes e que ninguém consiga romper sua inviolabilidade.

Todos sabemos que a informatização veio para nos ajudar. O fantástico desenvolvimento das ciências e da tecnologia nos últimos anos trouxe-nos mais conforto, mais segurança, mais acesso às informações, melhoria nas comunicações, enfim, ninguém de bom senso pode hoje duvidar das vantagens desses avanços todos.

Todavia, já temos muitos exemplos de confusões que resultaram disso tudo. Um dos mais conhecidos é o que se refere às dificuldades de obtenção de certidões negativas.

Antes da informática, o contribuinte, portando as guias de recolhimento de tributos dos últimos 12 meses, dirigia-se à repartição e rapidamente recebia a certidão negativa. Como se sabe, essas certidões são relativas, pois não impedem a cobrança de débitos que declaram não existir, caso eles realmente existam.

Mas hoje o contribuinte faz ou tenta fazer tudo pela internet. Quando não consegue, mesmo sem nada dever ao fisco, acaba sendo vítima da idiotice dos envelopamentos, da dessídia de alguns funcionários ou da arrogância das autoridades e termina entupindo o Judiciário com ações que não deveriam existir.

Tudo obra do tal sistema, uma entidade abstrata, quase uma ordem iniciática, culpada por todas as falhas da administração, como se as pessoas hoje fossem escravas das máquinas, criadas para nos servirem.

Com a nota fiscal eletrônica criada no âmbito do ISS, o município de São Paulo teve a “brilhante” idéia de instituir um desconto do IPTU para quem exigir a nota de prestação de serviços. Pretende a Secretaria das Finanças de São Paulo que o contribuinte do IPTU a ajude a fiscalizar o imposto sobre serviços, assim recebendo um “prêmio”.

Com essa carga tributária excessiva que temos hoje, qualquer desconto em imposto parece ser um grande alívio. Vamos, portanto, ajudar a prefeitura e ganhar o nosso “prêmio”, ou nosso “alívio”. E aí a coisa fica curiosa ou divertida.

Quem possui um imóvel de valor venal pouco acima de R$ 500 mil (um bom apartamento ou uma boa casa) pagará cerca de R$ 10 mil no próximo ano a título de IPTU. Assim, em tese, poderá ter um desconto de até R$ 5 mil. Basta juntar notas fiscais eletrônicas.

O máximo de desconto permitido é para nós, pessoas físicas. Mas ganhamos 30% do ISS que o prestador de serviços efetivamente recolher. Assim, se tivermos a sorte de só utilizar serviços de contribuintes idôneos, sérios, que pagam direitinho seus tributos, bastaria adquirir serviços no valor anual de R$ 333,3 mil, ou seja, cerca de R$ 28 mil por mês.

O estacionamento aqui ao lado meu escritório tem a tal nota fiscal eletrônica e cobra cerca de R$ 200 por mês para ali deixar meu carro. Basta, portanto, que eu use os serviços dessa empresa por cerca de 138 anos!

Tenho vários cachorros em minha casa e gasto por mês um R$ 1 mil no pet shop. Assim, bastariam apenas 28 anos para conseguir o desconto de 50% no IPTU do próximo ano! Pena (ou alívio, sei lá) que antes desse prazo os cachorros todos já morreram, eu também e ninguém pode saber se essa lei “maravilhosa” ainda vai valer.

Vi hoje na TV que alguém já criou uma “bolsa” para comprar e vender esses descontos. Ou seja: o benefício fiscal já vai virar moeda de troca.

Com essas e mais aquelas, fica a impressão de que nós, contribuintes, somos um bando de otários. Que vamos ficar juntando notas fiscais durante 138 anos ou, quem sabe, um pouco menos, para ajudar a prefeitura a fazer sua obrigação, que é fiscalizar os sonegadores.

Sonegação, como qualquer ginasiano sabe, combate-se com fiscalização. Nessa direção anda bem a prefeitura, abrindo concurso para fiscais e procuradores. Não precisa, não deve, nem pode, dar descontos ilusórios a esse pretexto.

Dias atrás, ao votar, encontrei na seção eleitoral uma senhora com um nariz de palhaço, protestando contra a nossa farsa democrática. Parece que nós, contribuintes, também precisamos usar esse interessante adereço.

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