Medida do poder

OAB contesta resolução que regulamentou investigação pelo MP

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30 de outubro de 2006, 21h18

A OAB vai entrar com Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Resolução 13 do Conselho Nacional do Ministério Público. A resolução regulamenta a investigação criminal por parte de membros do MP. A medida foi aprovada por unanimidade pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

O relator da ação no conselho da Ordem, César Bitencourt argumentou que o Ministério Público está atribuindo um poder à classe que não está previsto na legislação. “Nem a Constituição, nem a Lei Orgânica do Ministério Público dão ao MP o poder de investigação criminal, apenas investigação civil,” diz.

Segundo o relator, a medida do Conselho Federal da OAB pretende garantir a segurança jurídica, já que, de acordo com Bitencourt, quem investiga não pode acusar depois porque “há um desequilíbrio entre a acusação e a defesa”.

Além disso, o relator alega que na Assembléia Constituinte em 1988 todos os pedidos que falavam sobre o poder de investigação criminal do Ministério Público foram recusados. Também diz que a Constituição não deixa lacunas sobre o assunto e deixa bem claro que o poder de investigar é da polícia civil. Por isso, o CNMP além de não ter legitimidade para legislar a respeito, não poderia decidir em questão que está sob júdice no Supremo Tribunal Federal.

No STF, três ministros já votaram a favor da investigação criminal pelo MP e dois contra. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Cezar Peluso.

Para o advogado Luís Guilherme Vieira “a resolução do Ministério Público é um atentado à Constituição.” Na opinião do advogado “a posição adotada pela ordem é um importante passo para a cidadania e para o Estado Democrático de Direito.”

O memorando com pedido para que o Conselho Federal tomasse providências a respeito foi entregue nesta segunda-feira (30/10), em nome de oito grandes associações de advogados.

São elas: a Associação dos Advogados de São Paulo, o Instituto dos Advogados de São Paulo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o Instituto Carioca de Criminologia, o Instituto de Criminologia e Política Criminal, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais e o Movimento de Defesa da Advocacia.

Leia a íntegra do memorando:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO (AASP), INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO (IASP), INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM), INSTITUTO CARIOCA DE CRIMINOLOGIA (ICC), INSTITUTO DE CRIMINOLOGIA E POLÍTICA CRIMINAL (ICPC), INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA (IDDD), INSTITUTO TRANSDISCIPLINAR DE ESTUDOS CRIMINAIS (ITEC) e o MOVIMENTO DE DEFESA DA ADVOCACIA (MDA) vêm à presença de V.Exa. oferecer o presente MEMORIAL, nos seguintes termos:

Não é demais recordar que o tema dos poderes investigatórios criminais do Ministério Público, no ordenamento nacional, está submetido à apreciação do Supremo Tribunal Federal, no inquérito nº 1.968/DF. Até o momento, foram proferidos três votos reconhecendo tais poderes e dois contrários. Pediu vista dos autos o Ministro Cezar Peluso.

Os principais fundamentos que conduzem à conclusão da inexistência de poderes investigatórios criminais por parte do órgão ministerial, no ordenamento vigente, são de envergadura constitucional.

Os defensores do reconhecimento dos poderes investigatórios em foco sustentam que o texto constitucional assegurou ao Ministério Público referidos poderes na esfera processual penal porque são eles inerentes às atribuições elencadas no art. 129 da Constituição Federal: a titularidade da ação penal pública, em caráter exclusivo; o controle externo da atividade policial; o poder para expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência e de requisitar informações e documentos para sua instrução; o poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade.

Contudo, a leitura da norma constitucional em questão permite constatar, de plano, que não foi previsto o poder de investigar infrações criminais, entre as atribuições ministeriais.

É preciso ter em conta, nesse ponto, que a retrospectiva sobre a elaboração da norma constitucional citada revela que as propostas de introdução de texto específico versando sobre a condução de investigação criminal pelo Ministério Público foram rejeitadas. Ou seja, foi uma escolha deliberada da Assembléia Constituinte de 1988 não atribuir poderes de investigação criminal ao Ministério Público.

Desse modo, é incompreensível que o legislador constituinte cuidasse de indicar expressamente o poder do Ministério Público de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, deixando de constar o poder do órgão ministerial de investigar diretamente as infrações criminais.


Acrescente-se que a Constituição distinguiu perfeitamente, em incisos diferentes, a atuação ministerial em procedimentos administrativos de sua competência, como o inquérito civil, daquela referente à investigação criminal, limitando, no último caso, a atividade do Ministério Público à requisição de inquérito policial e de diligências investigatórias.

Portanto, o inciso VI do art. 129 do texto constitucional, que diz respeito à expedição de notificações, pelo órgão ministerial, nos procedimentos administrativos de sua competência (como os preparatórios de ação de inconstitucionalidade ou de representação por intervenção), a fim de requisitar informações e documentos para instruí-los, não se refere à atuação do Ministério Público nas investigações criminais. O mesmo ocorre com referência ao inciso IX do mesmo dispositivo constitucional (“exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade…”), atribuição que não pode ser estendida para abranger também a investigação criminal.

A norma constante do art. 129 da Constituição é suficientemente clara, dispensando-se interpretação, em atendimento à máxima in claris non fit interpretatio.

Por outro lado, tem-se argumentado, para reconhecer poderes investigatórios ao Ministério Público na esfera processual penal, que implicitamente estariam eles agasalhados no art. 129 da Constituição da República, uma vez que “quem pode o mais, pode o menos”. Nessa ótica, se o Ministério Público é o titular exclusivo da ação penal pública, pode também investigar o crime.

Importa consignar que a denominada doutrina dos poderes implícitos tem raízes na escola clássica do constitucionalismo norte-americano, centrada em concepção do Estado liberal. Cuida-se de regra interpretativa, concebida no bojo da Constituição americana, que atribuía tão amplos poderes ao governo dos Estados Unidos, incumbindo-lhe assegurar também os mais amplos meios para sua execução.

A doutrina constitucional afasta a aplicação da doutrina dos poderes implícitos quando houver outra norma constitucional que cuide da competência que se pretende reconhecer implicitamente. Ou seja, somente se permite invocar essa regra de interpretação onde haja lacuna constitucional. Outra possibilidade de reconhecimento de poderes implícitos se dá quando se trata de haver uma competência explícita e justificável que se pretende aprofundar e não alargar.

No caso, porém, não se verifica nenhuma das duas hipóteses. Primeiro, não há lacuna constitucional na competência em questão. A norma do art. 144 da Constituição da República atribui expressamente a função de Polícia Judiciária às polícias civis, federal e estaduais. Se assim é, a Constituição indicou o meio, não sendo possível atribuí-lo indistintamente a outro órgão, sem que o próprio legislador originário o tenha feito. Em segundo lugar, não se cuidaria de aprofundar atribuição do Ministério Público, mas de alargá-la, uma vez que, expressamente, a Constituição não atribuiu poderes investigatórios ao órgão ministerial, no âmbito processual penal (ressalvada a hipótese de crime cometido por seus membros).

Aplicada, portanto, a doutrina dos poderes implícitos no caso examinado haveria violação aos princípios da conformidade funcional, da tipicidade e indisponibilidade de competências, conforme assinala Canotilho.

Por fim, deve-se salientar que nem mesmo as Leis Orgânicas que regem as atividades do Ministério Público dispuseram sobre os poderes investigatórios desse órgão na esfera processual penal.

A Lei Orgânica Nacional do MP (Lei nº 8.625, de 12.2.1993), em seu art. 25, inciso IV e art. 26, inciso I, elenca, entre as funções ministeriais, a promoção e a instauração do inquérito civil, mas não a de presidir o inquérito policial. Quanto a ele, limita-se a estabelecer, no art. 26, inciso IV, que poderá o Ministério Público “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, observado o disposto no art. 129, inciso VIII da Constituição Federal”.

Outro argumento que se articula com freqüência para sustentar os poderes investigatórios do Ministério Público, na esfera processual penal, é que no ordenamento nacional, a Polícia Judiciária não monopoliza a investigação criminal, na medida em que outras autoridades diversas dela podem exercer funções investigatórias. É o que se verifica nos delitos praticados por membros da Magistratura, que são investigados pela autoridade judiciária, bem como nos delitos atribuídos a membros do Ministério Público, que são apurados pelo Procurador-Geral da República ou pelo Procurador-Geral da Justiça, conforme o caso. Outro exemplo que costuma ser citado, nessa esteira, é o das Comissões Parlamentares de Inquérito que, entretanto, não têm atribuição para investigar infrações criminais.


Entretanto, é preciso considerar que os exemplos citados constituem claras exceções à regra geral, que é a apuração das infrações penais por parte da Polícia Judiciária, consubstanciada no art. 144 e parágrafos da Constituição Federal e no art. 4º “caput” do Código de Processo Penal. As exceções a essa regra geral dependem, obrigatoriamente, de expressa previsão normativa, o que não se verifica no caso dos poderes investigatórios do MP, no âmbito processual penal.

Na doutrina, observa-se que a concentração da investigação criminal pelas Polícias, como regra, é imposição do princípio da legalidade, sob a ótica administrativa, segundo a qual a Administração Pública somente poderá agir diante de texto de lei que a autorize a agir.

Além disso, é direito do cidadão e da sociedade saber previamente a quem incumbe investigar determinada infração criminal, operando-se esse regramento pela Constituição e pelas leis. Essa exigência decorre também da segurança jurídica, valor a ser preservado no Estado de Direito.

É importante frisar, ainda, que a exclusão de poderes investigatórios do Ministério Público garante a imparcialidade e a impessoalidade da acusação, a igualdade de partes e de armas e o devido processo legal.

É inegável que a realização de investigação diretamente pelo órgão ministerial poderá comprometer o resultado da apuração dos fatos. Haverá nítida tendência a selecionar aqueles elementos probatórios que favoreçam a acusação, especialmente considerando-se que é atribuição do Ministério Público promover, com exclusividade, a ação penal pública. Decorrência natural disso é a propensão de manter-se o averiguado totalmente alheado da investigação e a predisposição para acusar. Até mesmo a manifestação do Ministério Público quanto a eventual arquivamento restará comprometida pela prática de atos investigatórios criminais por sua parte.

A atividade investigatória do Ministério Público também atinge a igualdade de partes e de armas, inclusive pela equivocada tendência em atribuir-se maior valor probatório aos elementos colhidos unilateralmente por ele, em vista daqueles apurados pela Polícia Judiciária. Emerge daí a desigualdade em relação à defesa, que se limitará à atividade probatória na fase processual.

Por isso, o MP não deve assumir a veste de investigador, mas sim a de eventual acusador, quando os elementos para a promoção da ação penal se apresentarem.

Já na atividade da Polícia Judiciária, ao apurar as infrações criminais, não se identificam esses comprometimentos, principalmente porque ela não atua na fase subseqüente. Coleta os elementos de convicção e os remete, compilados no inquérito policial, ao Ministério Público, sem a preocupação de subsidiar, necessariamente, a tese acusatória.

O fato de ser o inquérito policial facultativo e dispensável para o exercício da ação penal por parte do MP não se presta a sustentar o reconhecimento de poderes investigatórios penais ao órgão ministerial.

Dispondo de elementos de convicção suficientes, poderá o MP promover a ação penal, mesmo que inexista inquérito. Entretanto, se não dispuser, o que o texto constitucional autoriza, em seu art. 129, inciso VIII, é que o Ministério Público requisite a instauração de procedimento investigatório criminal, que ficará a cargo da Polícia Judiciária. A investigação poderá ser dinamizada pelo órgão ministerial por meio de requisição de diligências investigatórias e efetivo controle externo da atividade policial.

Por fim, argumentos metajurídicos costumam ser invocados para justificar os poderes investigatórios do órgão ministerial, especialmente quanto à eficiência nas investigações.

Realmente, as críticas em relação à ineficiência e morosidade nos inquéritos policiais procedem em muitos casos. Entretanto, essas deficiências poderiam e deveriam ser corrigidas pela própria atuação do MP, no desempenho de suas atribuições constitucionais, sem qualquer necessidade de o órgão ministerial realizar diretamente as investigações.

Ocorre que, em que pese a pendência de julgamento da questão pela Corte Suprema, recentemente o Conselho Nacional do Ministério Público aprovou a Resolução de nº 13, de 9.10.06, a pretexto de regulamentar o art. 8º da Lei Complementar nº 75/93 e o art. 26 da Lei nº 8.625/93, disciplinando a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal, no âmbito do órgão ministerial.

Entretanto, emerge, com clareza solar, a inconstitucionalidade dessa Resolução, porquanto escancaradamente violou o art. 22, inciso I, da Constituição Federal, ao legislar em matéria processual penal.

Aliás, a respeito, é de se salientar que a Emenda Constitucional nº 45 não outorgou ao Conselho Nacional do Ministério Público essa competência que, conseqüentemente, também não foi prevista no seu Regimento Interno.

Além disso, como antes se realçou, a Resolução pretende criar, normatizando com força de lei, atribuições criminais investigatórias imprevistas ao Ministério Público. Ou seja, inexiste regulamentação no caso, mas verdadeira criação, com força de lei, de poderes investigatórios em favor do órgão ministerial, ao arrepio da Constituição Federal, na pendência de exame da matéria pelo Supremo Tribunal Federal.

Competências e poderes privativos do Poder Judiciário também foram invadidos na referida Resolução. Autoriza-se o órgão ministerial a promover o arquivamento do “procedimento investigatório criminal”, sem qualquer controle por parte do Judiciário. Atribui-se o poder de requisitar condução coercitiva de testemunhas. Franqueia-se ao órgão ministerial o acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública. Ademais, ressalta-se que “nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido” (§ 1º do art. 6º da Resolução). Desse último aspecto citado emerge claro que o Ministério Público terá atribuições/poderes que não poderão ser questionados/limitados por qualquer outra autoridade pública, inclusive os Tribunais Brasileiros.

Verifica-se, assim, que a Resolução em questão ofende à Constituição Federal sob vários aspectos, sendo de rigor o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, sobretudo para preservação do Estado Democrático de Direito. Desta forma, s.m.j., é o caso de ajuizamento, com a urgência que o caso requer, de ação direta de inconstitucionalidade.

Salvador, 30 de outubro de 2006

ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO

INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO

INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

INSTITUTO CARIOCA DE CRIMINOLOGIA

INSTITUTO DE CRIMINOLOGIA E POLÍTICA CRIMINAL

INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA

INSTITUTO TRANSDISCIPLINAR DE ESTUDOS CRIMINAIS

MOVIMENTO DE DEFESA DA ADVOCACIA

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