Voz do delator

Delação premiada é mal necessário que deve ser restrito

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30 de outubro de 2006, 7h00

Delação premiada é o instituto pelo qual um dos acusados de um crime colabora eficazmente com informações importantes à elucidação do mesmo, permitindo a identificação dos co-autores e a liberação das vítimas, se houverem, em troca da extinção ou diminuição da pena.

Com o passar do tempo, as sociedades evoluíram, se modernizaram, se estruturaram de maneira cada vez mais organizada, permitindo o desenvolvimento de projetos e o alcance de metas até então inalcançáveis, buscando saciar os anseios de uma população crescente e paulatinamente mais complexa. Não obstante, os problemas cresceram na mesma proporção do desenvolvimento das sociedades, chegando a ponto da criminalidade se organizar, surgindo o crime organizado.

A partir da profissionalização da atividade criminosa, com sua atuação hierárquica, sigilosa e a participação de vários membros, em que necessariamente poucos conhecem o funcionamento e os integrantes da cúpula da organização criminal, pessoas quase sempre bem sucedidas e com grande poder em suas mãos, que raramente seriam descobertas pelos métodos ordinários de investigação, é que se faz necessária a utilização da delação premiada, como forma de estímulo à elucidação e punição de crimes praticados em concurso de agentes (plurissubjetivos).

De acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, em seu inciso III, “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Dessa forma, é praticamente impossível convencer um criminoso a entregar seus comparsas, o que resultaria na ira dos demais praticantes do crime, bem como na produção de provas contra o próprio acusado, sem, ao menos, oferecer-lhe algum benefício em troca.

Origens e evolução

A origem da delação premiada no Direito brasileiro remonta às Ordenações Filipinas, compilação jurídica que resultou da reforma do Código Manuelino, como conseqüência do domínio castelhano (o rei da Espanha era rei de Portugal), permanecendo vigente mesmo após a queda da Dinastia Filipina, com a ascensão de Dom João IV como rei de Portugal.

As Ordenações Filipinas vigoraram desde 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830. Em seu Livro V, que trata da parte criminal, o Título CXVI tratava especificamente da delação premiada, sob a rubrica “Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros à prisão”, premiando, com o perdão, os criminosos delatores.

Sempre combalida pelos doutrinadores e legisladores pela sua inegável carga moral, ética e religiosa, a delação premiada somente foi instituída pelo ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), que em seu artigo 8º, parágrafo único, dispõe: “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”.

É bem verdade que institutos dessa natureza sempre foram rechaçados pela tradição jurídica brasileira. Não obstante, a partir da década de 90, quando os estragos provocados por quadrilhas organizadas, que contavam inclusive com a participação de empresários, políticos e altos funcionários públicos, começaram a ser sentidos pelo poder público e pela sociedade, a reprimenda teve de ser à altura. Dessa forma, ressurgia a delação premiada no Brasil, considerada verdadeira traição institucionalizada.

A inspiração para emergir tal instituto no nosso país foi buscada nos Estados Unidos (plea bargain), país que sempre se utilizou dessa prática durante o período que marcou o acirramento do combate ao crime organizado, e na Itália (pattegiamento), na famosa Operação Mãos Limpas, que resultou em um processo de investigação que permitiu ao país identificar e punir pessoas ligadas a todo tipo de escândalos envolvendo a máfia italiana e importantes políticos.

Aspectos éticos

O ponto de partida da delação premiada provoca a mais atávica repulsa moral. Com efeito, a história abomina traidores. Muito embora a finalidade deste trabalho não seja teológica, impossível não citar o nome daquele que, até que se prove o contrário, destaca-se como um dos maiores traidores de toda a história, Judas Iscariotes, que entregou Jesus aos soldados romanos em troca de 30 moedas de prata. Quanto à nossa história, os brasileiros associam a imagem de traidor a Joaquim Silvério dos Reis, que denunciou os planos dos inconfidentes mineiros em troca do perdão de sua dívida junto à Fazenda Real.

A importância da confiança transcende a esfera das relações privadas e atinge todo o corpo social, inserindo-se no âmbito do interesse público. Na nossa Constituição Federal, no parágrafo único do seu artigo 1º, temos o princípio representativo: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Assim, inaceitável não acreditar, ainda que alguns considerem utópico, na confiança depositada por cada eleitor em seus representantes.

E não pára por aí. Qualquer tipo de apologia à traição é vista como uma agressão aos objetivos expostos no preâmbulo de nossa própria Constituição, isto é, um atentado à construção de um Estado Democrático de Direito e à própria dignidade da pessoa humana, fundamento basilar da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da CF).

Indubitável a estreita ligação entre a delação e o espírito antidemocrático, visto que na Alemanha nazista os alemães recebiam de 2 a 3 mil delações por dia, destinadas a expor a origem judaica de compatriotas e os hábitos subversivos de alguns indivíduos, bem como no governo ditatorial do Brasil, marcado por inúmeras prisões efetuadas com base em denúncias infundadas feitas ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

Aspectos jurídicos

Prescreve o artigo 61, II, “c”, do Código Penal: “São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: ter o agente cometido o crime: à traição, de emboscada (…)”. Contraditoriamente, os diplomas legais brasileiros ora asseveram a traição, como exposto acima, ora incentivam a traição, como é o caso da delação premiada.

Sob o aspecto jurídico, a delação premiada rompe com o princípio da proporcionalidade da pena, demonstrando sua impropriedade quanto a essa feição, visto que se punirá com penas diferentes pessoas envolvidas no mesmo fato e com idênticos graus de culpabilidade.

Legislação

O instituto da delação premiada está previsto atualmente nas Leis 7.492/86, alterada pela Lei 9.080/95 (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional), 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), 8.137/90 (Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contras as Relações de Consumo), 9.034/95 (Lei do Crime Organizado), 9.613/98 (Lei de Lavagem de Dinheiro), 9.807/99 (Lei de Proteção às Testemunhas), 10.409/02 (nova Lei de Entorpecentes), bem como no próprio Código Penal, mais especificamente no crime de extorsão mediante seqüestro (art. 159, § 4º).

A previsão do instituto em estudo nas legislações supracitadas demonstra a grande preocupação do legislador em punir todos aqueles que, valendo-se de sua condição financeira, de seu status social e político, camuflam suas condutas por meio de seus subordinados, em que muitas das vezes estes são punidos e aqueles não.

É de se ressaltar que as legislações que tratam da delação premiada possuem como conditio sine qua non para sua concessão a eficácia das informações prestadas pelo delator. Em termos práticos, não basta a mera delação para que o criminoso se beneficie, deve resultar a delação na efetiva libertação do seqüestrado, na hipótese de extorsão mediante seqüestro, na recuperação total ou parcial do produto do crime ou, nos casos de quadrilha, associação criminosa ou concurso de agentes, na prisão ou desmantelamento do grupo.

Conclusão

Muito embora a adoção da delação premiada já exponha o reconhecimento da incapacidade do Estado frente às mais variadas formas de ações criminosas, e demonstre a aceitação de sua ineficiência ao apurar ilícitos penais, notadamente os perpetrados por associações criminosas, a intenção revelada é positiva.

É bem verdade que a priori ver o Estado patrocinar a delação cause ojeriza, inobstante trata-se de verdadeiro “mal necessário”, na medida em que nenhum direito é absoluto. Com suas vantagens e desvantagens, a delação premiada vem sendo largamente utilizada, às vezes com pouco ou nenhum critério técnico, mas com resultados satisfatórios.

A delação é uma expressão que encontra muitos opositores, eis que adquiriu conotação pejorativa, tomando o sentido de acusação feita a outrem, com traição da confiança recebida, em razão de função ou amizade. Todavia, em benefício de um Direito Penal funcionalista, utilitário, pragmático e menos idealista, vem ganhando a simpatia do legislador pátrio, inspirado na ordem jurídica de outros países, como forma de fazer frente ao crime organizado.

Certamente a delação premiada continuará sendo amplamente utilizada, independentemente de sua fundamentação ética, e provavelmente será vista como valiosa, dada a sua utilidade e o medo que impera da criminalidade crescente. Não obstante, tem fragilizada a sua aceitação, reconhecida a sua inidoneidade moral e a carência de adaptação do seu conteúdo à evolução da consciência moral de uma sociedade que privilegia a dignidade da pessoa humana e rejeita a traição.

Dessa forma, tendo em vista o teor eticamente reprovável da delação premiada e a necessidade de se legitimar a consecução dos fins individuais e preservar o restante de dignidade do potencial delator, acreditamos que a aplicação do instituto deve ser relativizada e restringida sempre que possível.

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