Valor do crime

Princípio da insignificância se aplica a crime cometido por militar

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24 de outubro de 2006, 16h25

O princípio da insignificância pode ser aplicado aos crimes praticados por militares. O entendimento é do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Celso de Mello suspendeu o andamento de uma Ação Penal que tramita na Justiça Militar contra o oficial Marcos Fernando Rodrigues Lopes. Ele é acusado de furtar um celular no valor de R$ 59.

O oficial recorreu ao Supremo contra a decisão do Superior Tribunal Militar, que acolheu a denúncia oferecida pelo Ministério Público contra ele. O pedido já tinha sido rejeitado em primeira e segunda instâncias. No Supremo, Celso de Mello aplicou ao caso o princípio da insignificância. O ministro observou que à época do fato, maio de 2004, o valor do objeto frutado representava 22,69% do valor do salário mínimo vigente. Hoje, R$ 59 representariam pouco mais de R$ 16% do salário em vigor.

“O Direito Penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor não represente prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.” Celso de Mello ainda esclareceu que o princípio da insignificância exige a presença de determinadas características, perfeitamente aplicáveis ao caso, “tais como a mínima ofensividade da conduta do agente; a nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada”.

“Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano — efetivo ou potencial — impregnado de significativa lesividade.”, explicou Celso de Mello.

A Ação Penal em trâmite ficará suspensa até o julgamento final do pedido de Habeas Corpus do militar.

Ossos do ofício

Há aproximadamente dois anos, o mesmo ministro concedeu liminar para determinar a suspensão da condenação de oito meses de reclusão imposta a um rapaz que furtou uma fita de videogame, avaliada em R$ 25. Celso de Mello começou fundamentando sua decisão com base em uma pergunta: “revela-se aplicável, ou não, o princípio da insignificância, quando se tratar de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 25?”. Para, ao final, decidir que a condenação imposta ao rapaz foi ausente de justa causa.

Na ocasião, o ministro ressaltou que o STF, quando se trata de crime que envolve tráfico de entorpecentes, “tem assinalado que a pequena quantidade de substância tóxica apreendida em poder do agente não afeta nem exclui o relevo jurídico-penal do comportamento transgressor do ordenamento jurídico, por entender inaplicável, em tais casos, o princípio da insignificância”.

Leia a decisão

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 89.104-7 RIO GRANDE DO SUL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): MARCOS FERNANDO RODRIGUES LOPES

IMPETRANTE(S): MÁRCIO XAVIER DE OLIVEIRA

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR

EMENTA: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA: POSSIBILIDADE DE SUA APLICAÇÃO AOS CRIMES MILITARES. IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL. CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. DELITO DE FURTO. INSTAURAÇÃO DE “PERSECUTIO CRIMINISCONTRA MILITAR. “RES FURTIVANO VALOR DE R$ 59,00 (EQUIVALENTE A 16,85% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR). DOUTRINA. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CUMULATIVA OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS PERTINENTES À PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO E AO “PERICULUM IN MORA”. MEDIDA CAUTELAR CONCEDIDA.


DECISÃO: A presente impetração insurge-se contra decisão emanada do E. Superior Tribunal Militar, proferida em julgamento no qual essa Alta Corte judiciária, após afastar o princípio da insignificância, recebeu a denúncia oferecida pelo Ministério Público Militar.

O ilustre impetrante – que postula o reconhecimento, na espécie, da ocorrência de uma “causa supralegal de exclusão da tipicidade penal” (fls. 07) – assim expôs os fatos subjacentes ao ajuizamento do presente “writ” (fls. 03):

O paciente foi denunciado pelo MPM em 18/03/2005 e a peça acusatória foi REJEITADA pela Juíza-Auditora da 2.ª Auditoria da 3.ª CJM, em 29/04/2005. Em maio, o Procurador da Justiça Militar ajuizou Recurso Criminal, o M.M. Juízo ‘a quo’ manteve sua decisão de rejeição da denúncia. O STM, por sua vez, deu provimento ao recurso ministerial CASSANDO a decisão de primeira instância e recebe a Denúncia oferecida contra o Paciente. Assim, tornando-se, o STM, Autoridade Coatora, em 16/08/2005, por infração em tese, que teria sido cometida em final de maio de 2004, ao disposto no art. 251, § 1.º, I, do CPM, nos autos do Processo Crime n.º 14/05-6;

A denúncia foi ofertada alegando que o acusado dispôs de um aparelho celular avaliado no valor de R$ 59,00 (cinqüenta e nove reais), consoante cópia de denúncia e auto de avaliação (…).” (grifei)

O exame da presente causa propõe, desde logo, uma indagação, consistente na aplicabilidade, ou não, do princípio da insignificância, quando se tratar, como sucede na espécie, de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 59,00 (cinqüenta e nove reais).

Essa indagação, formulada em função da própria “ratiosubjacente ao princípio da insignificância, assume indiscutível relevo de caráter jurídico, pelo fato de a “res furtivaequivaler, à época do delito (maio/2004), a 22,69% do valor do salário mínimo então vigente, correspondendo, atualmente, a 16,85% do novo salário mínimo em vigor em nosso País.

Como se sabe, o princípio da insignificânciaque deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material (HC 84.687/MS, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), consoante assinala expressivo magistério doutrinário expendido na análise do tema em referência (LUIZ FLÁVIO GOMES, “Delito de Bagatela: Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato”, “in” Revista dos Tribunais, vol. 789/439-456; FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, “Princípios Básicos de Direito Penal”, p. 133/134, item n. 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal Comentado”, p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal – Parte Geral”, vol. 1/10, item n. 11, “h”, 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, “Princípio da Insignificância no Direito Penal”, p. 113/118, item n. 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g.).

O princípio da insignificância – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal.


Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano – efetivo ou potencial – impregnado de significativa lesividade.

Revela-se expressivo, a propósito do tema, o magistério de EDILSON MOUGENOT BONFIM e de FERNANDO CAPEZ (“Direito Penal – Parte Geral”, p. 121/122, item n. 2.1, 2004, Saraiva):

Na verdade, o princípio da bagatela ou da insignificância (…) não tem previsão legal no direito brasileiro (…), sendo considerado, contudo, princípio auxiliar de determinação da tipicidade, sob a ótica da objetividade jurídica. Funda-se no brocardo civil minimis non curat praetor e na conveniência da política criminal. Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico quando a lesão, de tão insignificante, torna-se imperceptível, não será possível proceder a seu enquadramento típico, por absoluta falta de correspondência entre o fato narrado na lei e o comportamento iníquo realizado. É que, no tipo, somente estão descritos os comportamentos capazes de ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razão, os danos de nenhuma monta devem ser considerados atípicos. A tipicidade penal está a reclamar ofensa de certa gravidade exercida sobre os bens jurídicos, pois nem sempre ofensa mínima a um bem ou interesse juridicamente protegido é capaz de se incluir no requerimento reclamado pela tipicidade penal, o qual exige ofensa de alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico.” (grifei)

Na realidade, e considerados, de um lado, o princípio da intervenção penal mínima do Estado (que tem por destinatário o próprio legislador) e, de outro, o postulado da insignificância (que se dirige ao magistrado, enquanto aplicador da lei penal ao caso concreto), na precisa lição do eminente Professor RENÉ ARIEL DOTTI (“Curso de Direito Penal – Parte Geral”, p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense), cumpre reconhecer que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.

A questão pertinente à aplicabilidade do princípio da insignificância – quando se evidencia que o bem jurídico tutelado sofreuínfima afetação” (RENÉ ARIEL DOTTI, “Curso de Direito Penal – Parte Geral”, p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense) – assim tem sido apreciada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DELITO DE FURTO – CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE – ‘RES FURTIVA’ NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) – DOUTRINA – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF – PEDIDO DEFERIDO.

O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.


O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina.

Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR.

– O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.

(RTJ 192/963-964, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

ACIDENTE DE TRÂNSITO. LESÃO CORPORAL. INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO. PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME NÃO CONFIGURADO.

Se a lesão corporal (pequena equimose) decorrente de acidente de trânsito é de absoluta insignificância, como resulta dos elementos dos autos – e outra prova não seria possível fazer-se tempos depois -, há de impedir-se que se instaure ação penal (…).

(RTJ 129/187, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO – grifei)

Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal, por falta de justa causa.

(RTJ 178/310, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – grifei)

HABEAS CORPUS. PENAL. MOEDA FALSA. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONDUTA ATÍPICA. ORDEM CONCEDIDA.

……………………………………………….

3. A apreensão de nota falsa com valor de cinco reais, em meio a outras notas verdadeiras, nas circunstâncias fáticas da presente impetração, não cria lesão considerável ao bem jurídico tutelado, de maneira que a conduta do paciente é atípica.


4. Habeas corpus deferido, para trancar a ação penal em que o paciente figura como réu.

(HC 83.526/CE, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – grifei)

As considerações ora expostas levam-me a reconhecer, por isso mesmo, que os fundamentos em que se apóia a presente impetração parecem evidenciar, na espécie, possível ausência de justa causa, eis que as circunstâncias em torno do evento delituoso – “res furtivano valor de R$ 59,00, equivalente, na época do fato, a 22,69% do salário mínimo então vigente e correspondente, hoje, a 16,85% do atual salário mínimo – autorizariam a aplicação, no caso, do princípio da insignificância, sendo irrelevante, para esse efeito, que se cuide de delito militar.

Vale relembrar, ainda, por oportuno, além dos precedentes que venho de referir na presente decisão, também o recentíssimo julgamento que a colenda Primeira Turma desta Corte proferiu no exame do HC 87.478/PA, Rel. Min. EROS GRAU (Informativo/STF nº 438/2006), no qual, por entender aplicável, aos delitos castrenses, o princípio da insignificância, deferiu ordem de “habeas corpusem favor de militar que havia sido denunciado pela suposta prática do crime de peculato (CPM, art. 303).

Cabe ressaltar, finalmente, que essa mesma orientação foi reafirmada quando do julgamento do RHC 89.624/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, no qual a colenda Primeira Turma desta Corte, dando provimento a recurso ordinário, concedeu ordem de “habeas corpusem favor de militar da Marinha que estava sendo processado pela suposta prática de crime militar (furto de uma mochila, de um par de coturnos e da quantia de R$ 154,57).

Sendo assim, considerando as razões expostas, e tendo em vista que concorre, igualmente, na espécie, situação configuradora do “periculum in mora”, defiro, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, o pedido de medida liminar, em ordem a suspender a tramitação do procedimento penal (Forma Ordinária nº 14/05-6), em curso perante a 2ª Auditoria da 3ª CJM ou, se for o caso, paralisar a própria eficácia da sentença penal condenatória nele eventualmente proferida.

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal Militar e ao eminente Juiz- -Auditor da 2ª Auditoria da 3ª CJM.

2. Oficie-se, igualmente, ao Juízo da 2ª Auditoria/3ª CJM, solicitando-lhe informação sobre a fase em que presentemente se acha o procedimento penal em questão.

Publique-se.

Brasília, 13 de outubro de 2006.

Ministro CELSO DE MELLO

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