Não aos superpoderes

Jornais de SP criticam projeto que pretende dar autonomia à PF

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24 de outubro de 2006, 12h54

Os dois maiores jornais de São Paulo — Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo — publicaram, nesta terça-feira (24/10), editorial criticando proposta que tramita no Senado e tem como objetivo dar autonomia para a Polícia Federal. A Proposta de Emenda Constitucional 37 foi apresentada pelo senador Valmir Amaral (PTB-DF).

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O Estado de S. Paulo

Em parte devido a um processo de criminalização da vida política do país, em parte decorrente da tremenda confusão de valores — éticos, sociais, jurídicos, institucionais ou de que outra ordem sejam — imposta à perplexa sociedade brasileira, entre as idéias disparatadas que têm surgido para dar solução a conflitos, buscando alterar a estrutura de instituições, sem atentar para sua própria natureza, está a da “autonomia” da Polícia Federal (PF), sobre a qual já há projeto em tramitação no Senado, de autoria do senador Vilmar Amaral (PTB-DF).

É importante que, desde já, se definam conceitos e competências. As polícias, em geral — e a Polícia Federal, em particular —, devem dispor de autonomia funcional, no sentido de não estarem submetidas aos interesses políticos dos governos, porquanto são instituições permanentes do Estado. Devem realizar suas investigações a partir de critérios técnicos, apolíticos, impessoais, que lhes garantam a isenção. Mas, por outro lado, não há democracia no mundo em que polícias de qualquer espécie possuam plena autonomia institucional, como se constituíssem um Poder à parte, não submetido, hierarquicamente, a nenhum outro (Executivo, Legislativo ou Judiciário). Na tradição das democracias contemporâneas a única instituição que, na defesa dos interesses difusos da sociedade, desfruta de um status de autonomia especial, em relação aos Poderes, é o Ministério Público.

Não é sem razão, pois, que entidades associativas de magistrados, de procuradores e demais categorias funcionais de alta responsabilidade pública se preocupam com a proposta de mudança da Constituição, tendo em vista conferir status de ministro-chefe ao diretor da Polícia Federal, assim como a prerrogativa, a seus delegados, de assumir a exclusividade das investigações, determinar prisões e quebrar sigilos sem autorização judicial. A concessão de plena autonomia repressiva a órgãos da administração – a que pretexto seja -, sem o necessário controle do Judiciário, deixará os cidadãos desprotegidos da tutela jurisdicional e assim sujeitos a qualquer tipo de arbítrio de autoridades públicas, o que é aberrante para um regime democrático.

Claro está que a inserção da Polícia Federal no epicentro da atual crise política, quando às vésperas de uma eleição presidencial todas as maiores expectativas se concentram nas investigações em torno do malfadado dossiê Vedoin — e da bolada de R$ 1,75 milhão em dinheiro vivo, apreendida junto com petistas integrantes da campanha reeleitoral do presidente Lula, que com ela pretendiam comprar supostas informações comprometedoras dos candidatos tucanos —, tem dado margem a grandes conflitos e divergências. Dúvidas são colocadas sobre o interesse de a Polícia Federal – subordinada ao Ministério da Justiça, cujo titular criminalista é dos defensores mais engajados do governo — em revelar os nomes dos principais responsáveis pelo dossiêgate antes do segundo turno, por motivos eleitorais óbvios. O vice-presidente da CPI dos Sanguessugas, deputado Raul Jungmann (PPS-PE), reclama do fato de não ter recebido “nenhuma folha” do relatório parcial do inquérito preparado pela PF sobre a trama envolvendo a compra do dossiê, no que é contestado pelo diretor-geral da instituição policial federal, Paulo Lacerda, que afiança estar sendo a atuação da PF “de Estado, republicana e transparente”, isto é, sem nenhuma conotação político-eleitoral.

Já por toda essa celeuma pode-se considerar a discussão sobre a “autonomia institucional” da Polícia Federal um puro casuísmo. Pretende-se mexer em questões estruturais, de competência constitucional, por motivos de intempéries políticas que, mesmo com todas as suas implicações éticas e jurídicas, dizem respeito a impasses circunstanciais, relativos a contratempos e desentendimentos próprios do atual momento e da atual luta pelo poder. Ora, não se mexe em instituições permanentes desse jeito e por tais motivos. E, se assim se fizer, comprometida estará, pelo viés do casuísmo, quaisquer inovações até aparentemente oportunas que se busquem implementar.

Folha de S. Paulo

É escandalosa a Proposta de Emenda Constitucional 37, apresentada pelo senador Valmir Amaral (PTB-DF), que propõe autonomia para a Polícia Federal. “Autonomia”, entretanto, é um termo suave demais para descrever os superpoderes que a PEC pretende atribuir à instituição e a seus delegados.

Para começar, a PF, doravante denominada Gabinete da Polícia Federal, seria galgada à condição de ministério. Mais do que isso, contaria com autonomia funcional, administrativa, financeira e orçamentária, prerrogativas na maioria das vezes reservadas a Poderes autônomos.

É evidente que a PF, como qualquer polícia, não pode subordinar-se aos interesses dos governantes de ocasião. Precisa ter autonomia para investigar e atuar mesmo que contra os desejos dos poderosos. É justamente aí que reside a diferença entre uma polícia de Estado e uma guarda pretoriana. Daí não segue, entretanto, que a PF deva ser uma organização acima ou à parte do Executivo.

No sistema de freios e contrapesos que caracteriza as democracias, aqueles que detêm a prerrogativa de fazer uso legítimo da violência precisam estar sob o controle firme de um Poder. Pela tradição brasileira, é o Executivo, com a intermediação do Judiciário e sob a fiscalização do Legislativo.

Não é, porém, apenas contra a lógica institucional que a PEC atenta. Ela também configura grave ameaça a direitos e garantias individuais, ao atribuir a delegados da PF o poder de requisitar, “no interesse da investigação criminal”, informações cadastrais públicas ou privadas de qualquer natureza, incluindo registros de ligações telefônicas, conexões na internet e movimentações financeiras. Pior, a redação da proposta sugere que a “requisição” independe da autorização do Poder Judiciário.

Se tal norma for aprovada e prevalecer a interpretação segundo a qual não há necessidade de a Justiça manifestar-se, será a morte do Estado de Direito no Brasil. Delegados da PF tudo poderão contra qualquer cidadão, que se verá privado dos meios para defender-se.

Como se isso ainda fosse pouco, o projeto de emenda à Carta concede mais algumas regalias aos delegados da PF, como foro especial no Tribunal Regional Federal e o direito de só ser preso por ordem judicial ou flagrante delito de crime inafiançável. Ou seja, não será preso nem se espancar um desafeto em praça pública e à luz do dia.

É claro que delegados, bem como servidores de várias outras carreiras típicas de Estado, precisam ser protegidos contra demissões arbitrárias, transferências políticas ou processos intimidatórios. Tais proteções, porém, já existem. Pode-se até discutir ampliá-las mais um pouco, se houver consenso de que são insuficientes. O que não faz sentido, como parece querer a PEC, é estendê-las a ponto de macular a própria igualdade republicana dos cidadãos.

Se há um serviço que o Legislativo pode prestar à sociedade é sepultar de vez esse verdadeiro ataque que a proposta desfere contra a cidadania.

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