Só faltou inteligência

Ex-chefe do SNI diz que governo Lula surpreendeu

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24 de outubro de 2006, 11h04

Ivan Mendes - por SpaccaSpacca" data-GUID="ivan_mendes.png">A diferença entre a enxurrada de escândalos que faz a fama do governo Lula e o que aconteceu em governos anteriores é que as tantas negociatas e trapalhadas do passado não chegavam ao conhecimento público. Agora, saem na imprensa. E como saem.

A opinião não é de um petista, nem mesmo de um eleitor de Lula. É do último chefe vivo do antigo e poderosíssimo Serviço Nacional de Informações, o SNI — o general Ivan de Souza Mendes, militar que participou ativamente do regime instalado no país em 1964.

O ex-chefe do Serviço não se espanta com o noticiário das traquinagens petistas. “São coisas terríveis, mas elas sempre existiram”, garante. O que espanta é a apreciação que ele faz da gestão petista. “Lula surpreendeu e fez um bom governo”, afirma. Com uma ressalva: “Não que eu esperasse muita coisa, mas é inegável que o país não degringolou em suas mãos”. Souza Mendes votou em Lula, no segundo turno, em 2002. Mas no próximo domingo, dia 29, anuncia que votará em Geraldo Alckmin.

Como especialista em inteligência, o general observa que Lula descuidou dos serviços de informações — o que poderia poupá-lo de situações ridículas, como a do dossiê Vedoin. “Em vez de profissionais corretos, preocupados com o Estado, o presidente parece ter-se cercado de gente ordinária: mais atrapalham que ajudam.”

Embora note que o ambiente mudou, Souza Mendes, chama a atenção para o fato de que os protagonistas da vida política continuam os mesmos. “O Congresso sempre foi isso que está aí — e é impossível governar sem fazer barganhas”, diz, ressalvando que “a questão está em administrar o grau dessas barganhas”. No caso do mensalão, por exemplo, o que aconteceu “passou longe do que se pode considerar tolerável”.

Ao tempo em que serviu o governo José Sarney no Planalto, de março de 1985 a março de 1990, o general era implacável no papel de olhos e ouvidos do presidente. Nesse período, ele mesmo admite hoje, foi preciso enfrentar e bloquear encrencas parecidas com as do governo Lula. Indagado se chegou a impedir aproximações ou nomeações de pessoas com passado duvidoso ou comprometedor, disse que isso fazia parte da rotina. Lembra que teve “vários casos desses” em mãos, mas que a decisão sempre era de Sarney. “Decidir certo ou errado é prerrogativa do presidente. O que ele não pode é dizer depois que não sabia.”

O último homem forte da comunidade de informações no Brasil não aceita o argumento de que Lula só tenha tomado conhecimento das operações de compra de apoio parlamentar — o mensalão — envolvendo integrantes do seu partido e do governo pelos jornais. “Isso não é possível”, afirmou, sem preocupação de disfarçar o sorriso.

Aos 84 anos de idade, o general Ivan vive com sua mulher, Maria Stella, em um apartamento de três quartos, próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Sua alegria são os oito netos e netas que lhe foram presenteadas por suas filhas Leila, Sônia e Márcia e suas duas bisnetas, os xodós da vez.

A entrevista que se segue foi feita em duas rodadas. Da primeira participou o jornalista Robson Pereira, no Rio de Janeiro. A segunda parte foi complementada no último final de semana, por telefone.

A seguir, os principais pontos da entrevista

ConJur — Como o senhor avalia o governo Lula?
General Ivan —
Ele superou minhas expectativas. Mas é preciso dizer que elas não eram tão grandes assim (risos).

ConJur — Como assim?
General Ivan —
 Esperava-se um desastre. E não foi. Estou admirado como ele conseguiu dar uma certa respeitabilidade ao governo. O começo foi muito difícil e as perspectivas eram as piores possíveis. Mas depois deu para perceber que era um governo sério. O que faltava ao Lula, basicamente, era competência. Faltava-lhe estofo. O curioso é que ele falhou na ética, onde era bom e acertou na economia, onde era mal.

ConJur — Por que o senhor acha que ocorreu isso?
General Ivan — É simples: ele acertou com os conselheiros econômicos e errou com os conselheiros políticos. É preciso reconhecer que ele é inteligente. Para a pouca cultura que tem, mostrou-se competente. Conseguiu prestígio internacional e respeito dos chefes de Estado do mundo todo. Notou que o Hugo Chaves era um bobalhão e retraiu-se, o que foi bom. No aspecto eleitoral, soube cuidar do rebanho para garantir a reeleição. E já se pode considerar reeleito.

ConJur — O senhor se surpreende com tantas denúncias de corrupção?
General Ivan — Nem um pouco….

ConJur — Mas são tantos escândalos…
General Ivan — Essas coisas que estão ocorrendo aí são terríveis, mas elas sempre existiram. Políticos envolvidos com dinheiro sempre houve… É quase a mesma coisa que havia lá atrás, por baixo dos panos. Acho que agora aparece mais, mas o Congresso sempre foi mais ou menos assim….

ConJur — Por que isso ocorre?
General Ivan — 
 O político é sempre imediatista. A preocupação do político é sobreviver politicamente. Então, paga o preço que for preciso. Não me surpreendo com isso, nem me surpreendem essas coisas. São coerentes com o comportamento dos políticos.

ConJur — O senhor acha possível que episódios como o mensalão não tenham chegado antes ao conhecimento do presidente Lula?
General Ivan — 
 Não é possível não. A maioria das coisas o presidente deveria saber. Os instrumentos para ele saber existem, mas o político gosta muito de ajeitar as coisas. O presidente deve cercar-se de profissionais. Pessoas corretas. Comprometidas com o Estado, não com facções.

ConJur — O senhor é otimista em relação ao futuro do país?
General Ivan —
 É lógico que sim. Apesar de tudo, estamos caminhando para frente. Devagar e às vezes até dando alguns passos para trás, mas estamos avançando.

ConJur — Como o senhor vê o festival de indenizações para pessoas que dizem ter sido vítimas de perseguição política e já garantiram cerca de R$ 3 bilhões do governo sem precisar ir à Justiça?
General Ivan — Não se pode fazer pouco caso da dor alheia e é preciso respeitar direitos. Mas o que estamos testemunhando, na maior parte dos casos, é marmelada. Uma coisa vergonhosa. Gente de má-fé aproveitando para tirar o pé da lama. Beira o estelionato. É indecente.

ConJur — Como o senhor chegou ao SNI?
General Ivan —
 Fui convidado pelo Tancredo Neves. Acho que foi coisa do Leônidas [Pires Gonçalves, ministro do Exército], que tinha mais intimidade com ele. Depois, quando o Tancredo morreu fui ao Sarney e disse que o cargo estava em suas mãos. Para ele ficar à vontade… Mas ele insistiu que eu ficasse e fiquei até o fim do seu mandato. Não recebi de bom grado o cargo de chefe do SNI, mas era uma missão.

ConJur — Como era o seu relacionamento com o presidente José Sarney?
General Ivan — Sarney era muito político. Inteligente e experiente em matéria de política e estava numa função importante. Eu já encontrei no SNI uma rotina, implementada pelo Octavio [Medeiros]. O chefe do SNI falava com o presidente quatro vezes por dia . De manhã, quando ele chegava; depois quando ele saia para almoçar, quando voltava do almoço e quando ia embora. Eu tinha contato com o Sarney constante. Transmitia para ele certas coisas e respondia o que ele queria saber. Nunca tive maiores problemas nesse relacionamento.

ConJur — Naquela época o senhor chegou a impedir a nomeação de alguém com passado duvidoso ou comprometedor?
General Ivan — Eu falava abertamente o que sabia e transmitia as informações ao presidente sempre de forma direta e objetiva. Tive vários casos desses. Eu falava: presidente, não posso nem quero vetar ninguém, mas não posso deixar de dizer ou mostrar certas coisas. O Sarney não era famoso pela firmeza, mas nunca tive problemas com ele. Eu dizia “isso não deve ser feito”, mas respeitava, evidentemente, a decisão dele. E como ele também respeitava o que eu dizia, passou a ter confiança em mim, tanto que fiquei com ele durante todo o governo. Acho que ajudei muito naquela transição. Eu não tinha intenção de fazer política. Fiz apenas o que achava que deveria ser feito.

ConJur — O senhor acompanha a política atual?
General Ivan —
 Leio os jornais todos os dias. Leio tudo, do começo ao fim.

ConJur — Em quem o senhor votou nas eleições passadas?
General Ivan —
 Votei no Lula, no segundo turno. Só votaria de novo se fosse para impedir a vitória de um pilantra qualquer. Mas como Geraldo Alckmin é um bom candidato, uma pessoa preparada que fez um bom governo em São Paulo, vou votar nele.

ConJur — O senhor chegou a participar de um encontro com o então candidato Lula na campanha de 2002, em um almoço no Rio, junto com outros generais quatro-estrelas…
General Ivan — Estivemos com ele, mas não houve nada relevante neste encontro. Ele levou tudo escrito. Leu a maior parte do tempo e foi muito ponderado. Bobo ele não é. Tanto é assim que virou presidente e o país não pegou fogo.

ConJur — O senhor conheceu o José Genoino?
General Ivan — Bem mais tarde. E tenho respeito por ele. Foi guerrilheiro e arriscou a própria pele.

ConJur — O senhor guarda documentos daquela época?
General Ivan —
 Nenhum. Quando terminou o governo entreguei todos os documentos à agência central do SNI. Cheguei lá e disse: a documentação em meu poder é esta aqui. Não fiquei com nada, apenas o que estava na minha cabeça. Podia ter ficado com muita coisa, mas não fiquei.

ConJur — Muitos problemas devem ter passado pelas suas mãos naqueles cinco anos?
General Ivan — Para o SNI só iam problemas. O que é normal segue o caminho natural, o que não é ia parar no SNI e tínhamos que administrar. Ali, os erros colam e não desgrudam mais. Mas não tive maiores dificuldades. Todos me respeitavam e sabiam que certas coisas eu não faria mesmo. Fui general do Exército, fui até o final da minha carreira. Fui ministro de Estado por cinco anos sem nunca deixar de dormir sossegado.

ConJur — O senhor teve problemas com o ex-presidente Fernando Collor. Ele chegou a chamá-lo de “generaleco”?
General Ivan — [risos] Não chegou a ser uma ofensa, mas um tratamento inadequado. O Collor era um cafajeste.

ConJur — Como foi o episódio?
General Ivan —
 Ele era governador de Alagoas e me pediu uma audiência para o dia seguinte, quando estaria em Brasília. Não chegou a dizer o que queria conversar. Eu aceitei o encontro, mas pela manhã abri os jornais e vi várias declarações dele contra o Sarney. Achei aquilo uma falta de respeito com o presidente da República e mandei cancelar a audiência. Como ele havia chegado em Brasília tarde e caiu na farra, parece que não foi avisado de que a audiência estava cancelada. De manhã, ele chegou lá e levou com a porta na cara.

ConJur — Quando ele assumiu, um dos primeiros atos foi fechar o SNI…
General Ivan — Esse negócio de que o Collor fechou o SNI é uma bobagem. O Collor é um pilantra. Ele nunca fechou. O SNI continuou funcionando, só que servindo a ele. Manteve toda a estrutura e a única coisa que fez foi colocar à frente do órgão uma pessoa dele, o tal Leoni Ramos, um incompetente.

ConJur — Qual foi a sua participação nos acontecimentos que culminaram com o 31 de março?
General Ivan — Eu comandava uma unidade em Aquidauana, no Mato Grosso, e estava longe de tudo e de todos. Em meados de fevereiro de 64, fui transferido para uma diretoria administrativa no Rio. Cheguei sem saber de nada sobre o que estava se passando e me apresentei ao Ernesto [Geisel], com quem tinha muito contato e confiava muito. Coloquei-me à disposição e logo o acompanhei a alguns encontros, no meu próprio carro. Não deu nem tempo para me inteirar das coisas. Eu fazia isso e aquilo, mas não tinha me inteirado do todo. Simplesmente, estava à disposição.

ConJur — Onde o senhor estava no dia em que o presidente João Goulart foi deposto?
General Ivan — 
Em casa. O Orlando, o Geisel e o Castelo, entre outros, faziam reuniões em casas de diferentes pessoas. Mais de uma vez foi na minha, um apartamento onde morava com a minha família, ali na Belfort Roxo, em Copacabana. A última, no dia 31, foi lá. O último pouso do Castelo foi lá em casa. Chegou à paisana e saiu fardado.

ConJur — Seis dias depois da tomada do poder pelos militares, o senhor assumiria a prefeitura de Brasília. Como foi isso?
General Ivan — Com a vitória do novo regime, me apresentei ao Quartel General e fiquei de prontidão. O Geisel disse que precisaria de mim e mandou que eu esperasse. Mas quem chamou mesmo foi o Orlando [general, irmão de Ernesto Geisel]. Como ele foi nomeado para comandar a Vila Militar eu fui com ele. Estava lá quando ele me disse: “Ivan, você foi nomeado para a Prefeitura de Brasília”. Em Brasília tinha a Prefeitura Militar, que era um órgão do Exército, que cuidava dos apartamentos dos militares em todo o país. Eu pensei que era para lá que eu iria e disse a ele: general, não posso aceitar, não quero isso. Ele me interrompeu e disse: “Não é isso. você foi nomeado prefeito da cidade e tem que ir já”. E lá fui eu já no dia seguinte para assumir a prefeitura do Distrito Federal, quase sem roupas. Não era uma situação normal, mas revolução é revolução.

ConJur — O senhor também foi comandante em Belém, no Pará, no auge da Guerrilha em Marabá…
General Ivan — Fui designado para comandar a região, mas a minha atuação era administrativa. Quando assumi, fui instruído que todos os assuntos relacionados à guerrilha ficariam centralizados em Brasília. Disseram que esses problemas o CIE [Centro de Informação do Exército] resolveria. Tudo era com eles.

ConJur — E os episódios de tortura?
General Ivan —
 Os militares agiram duro naquela época, mas quem não estava no rolo não sabia. Quando cheguei em Belém, me chamou a atenção um local coberto e com um buraco. Perguntei o que era aquilo e me disseram que estava tudo preparado para jogar alguém ali dentro se fosse preciso. Eu falei: tampa isso imediatamente, porque eu não quero saber desse negócio. Não deixei. Mandei tampar imediatamente. Enquanto estive lá, não fizeram [tortura].

ConJur — O que o senhor fez quando deixou o SNI? Trabalhou em algum outro lugar?
General Ivan —  Não podia. Não achei ético aceitar emprego na iniciativa privada. Eu tinha sido chefe do SNI, tinha um conhecimento geral sobre vários problemas do País, sabia muito. Tive alguns convites, mas nunca aceitei.

ConJur — Outro não tiveram o mesmo comportamento…
General Ivan — 
Cada um pensa como quer, mas não é correto. Eu não faria isso e não acho correto fazer.

ConJur — E empregar parentes no governo?
General Ivan —
 É a mesma coisa. Pode até não ser errado, mas certamente não é ético. Não arranjei emprego para ninguém. E olha que eu podia nomear à vontade dentro do SNI e, por influência, em outros ministérios também. E tinha muito parente para nomear [riso]. Não fiquei devendo nada para ninguém. Nem na verba secreta eu mexia. Usei muito pouco….

ConJur — Verba secreta? O SNI tinha verba secreta?
General Ivan — 
 Tinha e tem. É um dinheiro para as despesas que você não pode comprovar. E era uma verba alta….

ConJur — O senhor nunca mais trabalhou. Como o senhor vive?
General Ivan — 
 Da minha aposentadoria. Não é muito, mas é o que o país pode pagar.

História — O que foi o SNI

Criado em junho de 1964 com o objetivo coordenar as atividades de informações e contra-informações em todo o território nacional. Possuía secretarias específicas para acompanhar as atividades dos sindicatos, da Igreja e dos vários grupos políticos clandestinos que atuavam no país. Vigiava, também negócios realizados no exterior por empresas privadas e controlava as atividades parlamentares e partidárias em todo o país. Sob a coordenação do SNI operava a Escola Nacional de Informações (ESNI), responsável pela formação de pessoal especializado em informações. Entre os seus diretores, estiveram os ex-presidentes da República Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo, além dos generais Golbery do Couto e Silva, Octávio Aguiar de Medeiros, Newton Cruz e Ivan de Souza Mendes. O SNI foi extinto em 1990 por decisão de Fernando Collor de Mello. As atividades de inteligência ficaram a cargo de secretarias e subsecretarias da antiga Casa Militar — que se valiam dos levantamentos feitos pelos serviços secretos dos ministérios militares, herdeiros do acervo do antigo organismo. Em 1999, o presidente Fernando Henrique Cardoso criou a Abin — Agência Brasileira de Inteligência — que reagrupou remanescentes do antigo SNI e contratou novos funcionários.

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