Crise penal

Estado tem de efetivar Justiça, sem violar os direitos

Autor

  • Liza Bastos Duarte

    é advogada professora da Universidade Luterana do Brasil especialista em Direito Penal e mestre em Gestão de Negócios do Mercosul pela Uces — Universidad de Ciencias Empresariales y Socialies.

24 de outubro de 2006, 13h13

A crise do Direito Penal se instaurou, pois vivemos sob a égide de soluções prementes para dar conta da visível ineficácia do estado em levar ao cidadão o mínimo de segurança jurídica frente à violência e a criminalidade generalizada e organizada que assola o mundo. O direito penal adota, desgarrado de seus objetivos precípuos, contornos emergenciais na tentativa de responder aos múltiplos propósitos que lhe são exigidos.

Este direito penal intitulado empiricamente moderno, de inarredáveis tendências expansionistas pretende enxertar novas funções ao direito, objetivando dotá-lo de papéis que não lhe dizem respeito. Trata-se de discursos descomprometidos da técnica e das possibilidades jurídicas, impregnados de conotações políticas; discursos que defendem a idéia de que o direito penal deve servir como instrumento de solução de conflitos sociais, esperando que o mesmo consiga sustar a necessidade e a insurreição dos excluídos diante do abismo social de desigualdades em que se encontra o mundo globalizado. Esta narrativa discursiva é instaurada na tentativa de minimizar a falta de segurança jurídica não alcançada pelo Estado e espera do direito penal um funcionalismo a que ele não se propõe, visto que estas atribuições não lhe dizem respeito e são ilusórias no controle dos novos perigos da criminalidade contemporânea e organizada.

Perpassa, então, a discussão a respeito da legitimação do direito penal e seus objetivos, a necessária teorização sobre a finalidade das penas e o seu papel dentro do contexto de uma sociedade democrática que recepciona como norma fundamental os direitos e garantias individuais 1 e a dignidade da pessoa humana. Então a discussão a respeito do direito penal e de sua legitimidade quando priva o indivíduo de liberdade ou suprime direitos e garantias individuais não pode dispensar a referência a duas correntes teóricas: a de cunho abolicionista que rechaça em totum a validez da pena e afirma a ausência de propósitos a justificar sua aplicação; e as justificacionalistas que empreendem razão a aplicação da pena, não dispensando a visão do direito penal como instrumento/meio de controle social. Segundo Krebs2 “ a análise do aspecto temporal da aplicação da pena (o quando castigar) evidencia um problema de legitimação do próprio direito penal, de fato, a possibilidade do Estado repreender determinadas condutas é, em outras palavras, a própria justificação do jus puniendi; qualquer análise, pois, que se faça as respeito do tema finalidade da pena, sempre dever-se-á ter em mente a finalidade do próprio Estado.

As controvérsias que tangenciam o direito penal servem, ainda, como pano de fundo para inúmeras interpretações equivocadas a seu respeito. O tema abordado parte, desta forma, da análise de teses divergentes a respeito da legitimidade do sistema penal e da pena, então, naturalmente passíveis de acurada análise que não se esgotam num artigo, pois visam elucidar a que preço o direito pretende reduzir seu potencial danoso, seu quantum de violência, sem implicar na perda da eficácia de sua dissuasória (o efeito integrador para quem acolhe uma concepção positivista da prevenção geral). Nesta medida leciona Sanchez3 que “a história do direito penal moderno é a história da confrontação entre direito penal vigente e a reforma do direito penal, em que são tomadas as considerações utilitaristas relativas ao menor dano social e a observância de outros princípios como o da proporcionalidade, humanidade e igualdade . O balanço que é esta oposição dialética deveria compreender é a redução da violência, do dano social causado pelas instituições penais, sem que haja diminuído substancialmente o nível de prevenção do direito penal”4.

Com efeito, a ausência do direito penal suporia o abandono do controle do desvio ao livre jogo das forças da sociedade: uma dinâmica de agressão-vingança, vingança agressão. Entre as maneiras de limitar a intervenção do Estado temos quanto à definição típica a exigência de uma definição mais taxativa possível dos comportamentos ao qual deve intervir o direito penal, assim como as sanções que o direito penal deve aplicar (garantia penal e criminal do princípio da legalidade ou reserva legal) e a exigência de um processo com os devido requisitos para que um juiz natural determine a sanção a aplicar (garantias jurisdicionais) e, ao fim, a execução da sanção da forma previamente estipulada e pretendida pelo juiz e pela lei correspondente ao caso (garantia da execução). Ademais, progressivamente dentro do mesmo conceito amplo de formalização vão se assumindo pelo próprio Estado funções de auto-limitação material, por exemplo a atribuição da pena com efeitos ressocializadores , auto exigência da proporcionalidade.

Observamos, porém, que a ansiedade por proteção e assistência é tão urgente que passa a prestigiar o caráter instrumental do Direito Penal em detrimento de seu perfil garantista. O que interessa para o senso comum é a segurança contra a criminalidade mais sofisticada, ainda que perca o cidadão seus parâmetros existenciais, com relativização da liberdade. Não é surpresa para ninguém e a história da humanidade nos ensina que o pânico social traduz-se em terreno fértil para assunção de determinadas ideologias.


Legitimidade do sistema penal

Podemos constatar que a tentativa de dar real legitimidade do sistema penal não consiste em verdadeira intenção social e sim em discurso doutrinário e político ideologicamente conduzido com a finalidade de maquilar um arbítrio seletivo e um aniquilamento de todos àqueles que não respondem aos apelos de uma sociedade capitalista, seletiva e estigmatizante. O discurso que profana a efetividade do sistema penal e sua legitimação pela eficácia obtida ou é ingênuo em suas preleções ou desconsidera que este trata-se de estruturação semântica racional que serve para silenciar o exclusivo pragmatismo de suas intenções: o sistema penal não está montado para funcionalidade, e sim para uma não-operacionalidade, com a intenção nítida e real do exercício de poder fundado numa arbitrariedade voltada para a “clientela do direito penal”.

As teorias que pretendem sustentar a efetividade do sistema penal se esvaziam de sentido; a ausência de finalidade também é percebida na pena que não cumpre seus objetivos precípuos, não é preventiva, não é retribuitiva, não ressocializa, não alcançando sequer uma legalidade formal, eis que deslegitimada em seu mero exercício, pelo simples fato de sua existência não cumprir a finalidade a que se destina, tampouco gerar qualquer eficácia pretendida com tal ação. Para Zafarroni 5 um discurso desta natureza somente poderia pretender omitir a pergunta sobre a legalidade do sistema penal — ou desacredita-la como pergunta — remetendo sua desclassificação relegatória a categoria pejorativa dos pseudoproblemas.

No entanto, professa Zafarroni é importante lembrar que não existem construções acabadas de discursos que pretendem suprimir a legitimidade do sistema penal com a legalidade do mesmo, deve-se reconhecer que freqüentemente, realiza-se um emprego parcial e incoerente deste tipo de tentativa em nossa região marginal latino-americana, contexto no qual esta espécie de discurso mostra-se particularmente alienante (estranho a realidade)

Verifica-se a deslegitimação do sistema penal, inclusive, nas violações a sua legalidade penal e processual, ao lidar com o direito penal vê-se que são diversas as formas pelas quais o sistema penal pratica seu aniquilamento institucional: pela ausência de celeridade nos processos; pela falta absoluta de critérios de formulação/execução de um sistema de penas; pela não individualização da pena, não separação dos apenados por grau de periculosidade, não disponibilização de trabalho ao preso, pelas inúmeras afrontas ao direito fundamental de dignidade da pessoa humana, pela segregação que implica o cárcere, pela distorção incorrigível das tipificações, pela introdução de elementos moralistas na construção dos tipos penais, enfim, por um cem número de motivos, que devido as atrocidades que gravitam em torno do direito penal, agravam ao invés de minimizar o abismo social em que se encontram os excluídos que são vítimas da arbitraria atuação das agências executivas do Estado e do sistema penal6.

A qualidade do discurso professado pelos argumentos empíricos que tentam dar sustentação ao direito penal são, na grande maioria das vezes seletivas, tendo como ponto nodal uma discriminação oriunda de uma suposta inferioridade biológica; trata-se de um Apartheid social onde os desprovidos de capital são vistos como “impurezas de nossa sociedade” que pacificamente acolhe teses segregadoras e põe à margem (marginaliza) a clientela do direito penal antes mesmo de que ela venha integrar o cárcere.

Os técnicos do direito, a quem caberia elucidar e denunciar esta condução ideológica do direito penal, na grande maioria das vezes endossam esta postura segregadora. Eximindo-se da possibilidade de dar legitimação ao direito penal, dando às costas a sua atribuição humana, coisificando a lide, o processo e, principalmente, os sujeitos processuais que a integram, os operadores do direito, assim, acabam fazendo do discurso jurídico penal algo etéreo e a-ético que renuncia a possibilidade ínsita a cada processo de reeditar/promover o direito penal. Esta atitude propõe um discurso jurídico penal que não se interessa nem mesmo por (re)legitimá-lo, com qualquer argumento, mas que, ao contrário, perde o interesse por sua legitimidade. Se manifestando a respeito deste tipo de postura dos operadores do direito ironiza Zafaronni, é a mesma atitude assumida pelo “bom” torturador, que se limita a cumprir sua tarefa como um “profissional” correto, passando a responsabilidade ao órgão judicial e ao exercício do poder dos juristas.

O direito penal trata-se antes de tudo um instrumento para assegurar a dominação e até mesmo a opressão, porém, muitos estudiosos ao debaterem e avaliarem o direito penal, vêem à existência de um contra-modelo que tem em mira, justamente, os poderosos e fortes da política e da economia. A crítica referente a estes posicionamentos afirma, que os dois grupos referidos estão em demasia fixados nos conceitos de poder e impotência, deixando, assim, de priorizar o assegurar dos direitos e garantias individuais.


Para Prittwitz7 a posição mais difícil é aquela dos que se, por uma lado, não negam a relação de dominação do direito penal, por outro não (ou não mais) a consideram como elemento central, colocando em primeiro plano, ao invés disso , a defesa dos direitos civis e a segurança dos cidadão; porque para quem coloca em primeiro plano os direitos civis, como vistas a realidade do direito penal, para este as questões de legitimidade e até mesmo de efetividade se apresentam de forma muito diferente. Quem pensa em direitos civis certamente também pensará na defesa do cidadão através do direito penal, mas certamente não poderá reprimir as dúvidas sobre a capacidade do direito penal, tendo em vista os magros resultados das pesquisas empíricas sobre a prevenção especial e principalmente geral. Por isso, pensará principalmente na proteção do cidadão perante o direito penal, um direito penal que, como facilmente esquecido.

Discurso abolicionista

O discurso jurídico penal advindo da teoria abolicionista8 argumenta no sentido de que não cumprindo a pena a finalidade a qual foi destinada e trazendo mais males a sociedade do que benefício deve-se eliminá-la e, por conseguinte, fazê-lo também com o próprio direito penal, propondo, entretanto, a substituição da pena por outras formas sancionatórias (diversas da pena). Para Moraes9 trata-se de uma proposição que requer, tão somente, uma evolução do sistema penal, como também, uma verdadeira revolução social; não possui, portanto, aplicabilidade imediata frisa-se, nunca foi alcançada nem mesmo nas comunidades que adotaram este sistema de governo.

De fato, inviável a aplicação imediata da proposta abolicista, contudo os Estados devem instrumentalizar-se para que um dia este tipo de coerção (pena), seja extinta da realidade do direito penal. Uma completa abolição das penas de imediato seria, sem sombra de dúvidas, uma proposta desastrosa e insensata. Conduto, afirma Moraes <sup10 que o sistema vigente também se mostra ineficaz, o ideal seria compreendermos que enfrentamos um período de transição, de ajustes, em que se possui um Estado que tem evoluído rapidamente (e quer continuar evoluindo), sem que a legislação penal consiga acompanhar e preservar estes eventos, através de políticas sociais que garantam uma eficaz distribuição de renda, integração social, educação, qualidade de vida, igualdade, cidadania e emprego, o Estado estaria minimizando todos os conflitos hoje tratados pela legislação penal — os crimes ainda ocorrerão, porém ser abordados de maneira diferenciada, não como uma realidade social, mas sim como casos isolados.

Discurso justificanista

Os discursos justificacionistas, ao contrário dos abolicionistas, tentam ao invés de abolir, justificar a necessidade da existência da penas e seus porquês, endossando a importância do sistema penal como meio de contenção social. Este discurso que tem como finalidade legitimar a função da pena e do próprio direito penal, é justificado, principalmente, através de duas teorias: as teorias absolutas e as relativas. As primeiras, a pena é concebida como fim em si mesma uma retribuição do delito; já as teorias justificam a pena como meio para que não sejam praticados delitos no futuro.

Teorias absolutas

A penal como retribuição a um mal causado pelo delito: para a teoria absoluta a mesma é vista, tão somente, para esta finalidade, não é esperado da pena nenhuma finalidade social ou algo relevante ou útil, somente a possibilidade do autor se redimir do crime. A teoria absolutista pode ser divida em duas correntes doutrinárias a da expiação e a da retribuição.

A teoria da expiação visa oportunizar o apenado encontrar-se consigo mesmo e com a ordem jurídica violada; a teoria da retribuição visa imputar sofrimento àquele que causou o delito, devendo apresentar duração e gravidade correspondente à gravidade do delito.

A crítica as teorias absolutas das penas se fazem questionando a ideologização que repousa na pena, tanto quanto o aspecto retribuitivo quanto a sua expiação. Afirma Krebs11 que a retribuição pressupõe a necessidade da pena, que deveria fundamentá-la.. Afirma o autor que a pena não é remédio para Estado para compensar toda e qualquer culpa, ficando aberto a questão crucial de saber quais os pressupostos que autorizam o Estado a castigar a culpa humana.

Teorias relativas

Os discursos jurídicos penais vêem nas teorias relativas uma finalidade utilitária a ser cumprida, objetivam que as penas sirvam como prevenção do delito e que seja necessário o suficiente para proteger a sociedade de futuros crimes.

Dentro desta proposta pena podemos citar duas matizes: a prevenção geral e a prevenção especial. A prevenção geral sente a pena como uma sanção dirigida a generalidade dos membros do grupo social, não vislumbrando nenhuma retribuição ou alguma influência sobre a pessoa do condenado. A teoria de prevenção geral pode ser divida de acordo com seus efeitos em prevenção geral negativa e prevenção geral positiva12.

A intervenção penal legalizada: discurso jurídico penal anuído pela sociedade

O discurso jurídico penal em todas sociedades contemporâneas (e democráticas) assume tendências expansionistas; trata-se de um discurso onde está implícita e anuída socialmente uma intervenção penal legalizada. Verificamos que a democratização das sociedades modernas trouxe consigo a perspectiva de uma sociedade baseada na livre iniciativa econômica que desenha o direito penal como a ultima ratio assentado na anterioridade da lei penal e da intervenção mínima do Estado como meio de coibir que o poder punitivo seja exercido arbitrária e ilimitadamente.13 Portanto, para ser legal, a intervenção deve limitar-se ao um direito positivado.

Em contrapartida a esta tendência de olhar o Direito Penal como a ultima ratio, detectamos a expansão do Direito Penal. Observamos, ainda, que o aumento da criminalidade violenta veio de novo avivar o debate a respeito da missão exercida pelo Direito Penal, na proteção dos bens jurídicos considerados essenciais ao desenvolvimento pacíficos das sociedades democráticas.

A quesitação a respeito da missão exercida pelo direito penal e sua proteção aos bens jurídicos considerados essenciais ao desenvolvimento pacíficos das sociedades democráticas, passa necessariamente pela certeza de que a Constituição, ao fixar valores fundamentais a que deve obedecer ao Estado e a ordem jurídica, está, também, automaticamente a definir quais os bens jurídicos essenciais a que o Estado fica obrigado a defender. Assim, os direitos e liberdades e garantias constitucionalmente considerados como valores fundamentais, são a base da política criminal que deveria inspirar, não só a atividade do juiz e a do intérprete , mas sobretudo a do próprio legislador penal.

Os Estados impotentes e sem recursos suficientes para reprimir a criminalidade respondem a sua impotência com a maximização em matéria penal. Incapazes de combater as causas de geração da criminalidade, os Estados nacionais apostam num aumento do aparato legal e policial, o que, como tentaremos demonstrar, pelo seu custo social, tem sérias implicações na realização do Estado social e, reflexamente, na impossibilidade de realização do Estado Democrático de Direito.

Essa maximização do sistema penal se revela, num primeiro momento, no aumento da edição de normas penais (leis destituídas, no mais das vezes, de um filtro constitucional) que ao precipitarem condutas impensadas, podem violar conteúdos de princípios, afrontando direitos fundamentais de primeira geração, seja por seus conteúdos processuais inquisitivos, seja por criminalizar uma série de infindável de condutas, gerando uma situação de incerteza para os cidadãos e invertendo a função originariamente cunhada para os tipos penais, que ao invés de servirem como uma garantia aos membros da sociedade civil contra a atuação arbitrária do Estado, possibilitam, contrariamente, uma atuação estatal penal desmesurada e não raras vezes ilegal.

Para Copetti14 no Estado Social há uma nova concepção de democracia: a social, que ultrapassa o mero formalismo da democracia representativa, e todo ordenamento jurídico deve estar voltado à sua realização. Saliente-se que algumas parcelas do ordenamento devem contribuir mais do que outras; e neste aspecto, entendemos que o direito penal, pela gravidade das sanções que impõe, deva ser a parte do ordenamento jurídico menos utilizada para tal fim, pois uma exacerbação do ordenamento e da atuação estatal penal para a realização do Estado Social, implicaria, necessariamente, uma violenta redução das liberdades individuais que são, sem dúvida alguma, um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito.

A derivação desta perspectiva repousa na observância dos demais princípios penais e processuais penais, em especial três princípios :

a) a reserva legal;

b) a determinação taxativa; e,

c) a irretroatividade da lei penal151617. A inobservância destes princípios desvia os Estado da observância dos direitos e garantias fundamentais, abrindo precedente para juízos de exceção (aferidos sem a observância da reserva legal), onde postulados como nullum crimen, nulla poena sine lege praevia; nullum crimen, nulla poena sine lege scripta; nullum crimen, nulla poena sine lege stricta; nullum crimen, nulla poena sine lege certa, que se não adotados de forma veemente restam em prejuízo a democracia.

A Constituição Federal brasileira declara, expressamente, ser o Brasil um Estado Democrático de Direito e que os direitos, liberdades e garantias, considerados como valores fundamentais são a base dos princípios da política normativa que inspirarão não só a atividade do juiz e do intérprete mas, sobretudo, a do próprio legislador. Desse modo, o poder estatal encontra-se vinculado e controlado pela ordem jurídica. A atividade legislativa e jurisdicional encontra-se, pois, atrelada aos direitos fundamentais, assegurados na Constituição.

A função do Estado tem, portanto, uma dupla face: por um lado, como detentor do monopólio da violência, por outro, como guardião da ordem pública e garante de todas as liberdades. O rumo tomado pelo processo penal emergencial, porém, faz recear uma involução no progresso democrático do processo penal e suspeitar que a ideologia do estado de direito tenha capitulado cedo demais.

Observe-se que a desesperança e pânico coletivo frente à ineficácia da Justiça em promover a efetivação de um estado democrático de direito e de seu princípio basilar de justiça ameaça esse projeto democrático: as reações irracionais e reacionárias em face da questão da violência preconizam desde a adoção da pena de morte, passando por operações militares violentas e indiscriminadas em favelas e núcleos de pobreza da população civil, até a utilização banal de providências extraordinárias de estabilização da ordem pública, como o estado de sítio e o estado de defesa previstos nos artigos 136 e 137 da Constituição Federal e por último a própria doutrina do direito penal do inimigo, sabidamente acompanhadas da conseqüente supressão de direitos e garantias fundamentais18. A reserva legal obriga a anterioridade da lei, impedido, assim, resolução arbitrárias de crimes e punições proferidas por juízos inquisitórios ou de exceção, limitando, desta forma, o arbítrio do Estado e oferecendo a “segurança e certeza jurídica” dos efeitos das condutas realizadas pelos cidadãos que estão sob a égide do contrato social.

Em assim sendo diante da inoperância do estado em proteger o cidadão e efetivar a justiça, que perde sua eficácia normativa na medida em que é morosa suficientemente para que precluam os direitos postulados e ineficaz o bastante a ponto de converter-se em um engodo garantista que dá ao infrator uma total impressão de impunidade. Dentro deste contexto a população passa a dar respaldo a medidas limitantes das liberdades e garantias individuais. Se as medidas de exceção, porém, se tornam regras, abre-se espaços para que um novo consenso normativo venha à tona19.

Segundo Castro20, esse fenômeno, que em maior ou menor escala tem hoje, feição mundial, revela a expansão do movimento Law & Order, que assenta-se na deterioração generalizada do tecido social, na violência urbana e na ineficiência do Estado para enfrentá-la, na expansão mundial do terrorismo, do crime organizado, do narcotráfico e das operações de lavagem de dinheiro (money laundery) obtido por meios ilícitos.

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O direito penal do inimigo

O discurso jurídico penal, como já foi afirmado, centra-se no debate sobre a legitimidade do direito penal (propostas abolicionistas x propostas reducionistas), no binômio reducionismo versus expansão, pontuando em específico, o debate próprio do contexto e exigências do que se costuma denominar “modernização do direito penal”. Essa modernização defendida de modo enfático por alguns autores e qualificada como “discurso da resistência”, compreende, todavia, construções de hipóteses doutrinárias como a doutrina do Direito Penal do Inimigo, que pretende despojar da categoria de cidadãos determinados sujeitos, que segundo seu maior expoente Jakobs, devem ser tratados como meras fontes de perigo e neutralizados a qualquer preço. A tese doutrinária professada Jakobs, faz questionar a dita “modernização do direito penal”, diante do qual cabe perguntar se representa realmente uma evolução ou uma lamentável involução21.

A doutrina do direito penal inimigo sublinha, então, que o Direito Penal conhece dois pólos ou tendências em seus regulamentos, o “trato com o cidadão”, no qual se espera até que se exteriorize sua conduta para reagir com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro lado, “o trato com o inimigo”, que interceptado muito antes, no estágio prévio e que combatido pela sua periculosidade.22

Acontece o direito penal está projetado para uma sociedade que pretende acolhe-lo, com o nível cultural e racional que empreenda sentido a norma efetivando a mesma seu cunho coercitivo. Numa sociedade onde o estado anárquico é a pauta, onde estados paralelos ao estado de direito se instalam com regras e coações próprias e onde parte da população vive à margem do contrato social ao abandono de suas vivências instituais o direito penal não opera seu sentido precípuo. Afirma Jakobs & Meliá 23, neste sentido que a doutrina do Derecho penal del enemigo es indicativo de una pacificación insuficiente (…) en primer lugar, está la coacción en cuanto portadora de un significado, portadora de la respuesta al hecho: el hecho, como hecho de una persona racional, significa algo, significa una desautorización de la norma, un ataque a su vigencia, y la pena también significa algo, significa que la afirmación del autor es irrelevante y que la norma sigue vigente sin modificaciones, manteniéndose, por lo tanto, la configuración de la sociedad. En esta medida, tanto el hecho como la cocacción penal son medios de interacción simbólica, y el autor es tomando en serio en cuanto persona; pues si fuera incompetente, no sería necessario contradecir su hecho.

Para o cidadão que não se mostra disposto a acolher o Direito Penal e suas implicações legais, foi criado o direito penal do inimigo. O Direito Penal do inimigo 24 é uma construção doutrinária conformadora, explicitamente expansionista 25, é um discurso jurídico penal voltado mais a segurança nacional26 do que ao respeito as liberdade individuais. Trata-se de “procedimento suis generis” onde é esquecida ou mitigada as liberdades individuais, os suspeitos são tratados como “criminoso de guerra” e a razoabilidade e o devido processo legal ficam em segundo plano, justificados pela urgência de um estado de segurança que, muitas vezes, não é conseguida com tais atos.

O Direito Penal do inimigo surge como reação a constatação da impotência do Estado em dar sustentação a um estado formal de direito, garantir sua soberania e dar seguridade jurídica ao cidadão, tendo em vista que a criminalidade organizada e transnacional (agora com ênfase ao terrorismo) trabalha com um nível de lesividade social que exacerba todos os parâmetros. Esta criminalidade perpetrada muitas vezes através de atos de terror visa o estabelecimento de um estado de guerra, criando um campo de batalha no cotidiano do cidadão comum, às vezes vítima de uma ação cuja origem e motivos desconhece.

Inquestionável é o fato de que ao fazer-se a distinção (digamos de passagem difusa) daquele que está disposto a integrar o contrato social e aquele que pretende negá-lo, necessário algumas reflexões: não seria a própria inoperância do Estado e da sociedade com um todo de dar perspectivas reais (sociais, econômicas, físicas, espirituais) de socializar estes cidadãos que o fizeram tão à margem deste contexto social? De outra ordem aquele que distingue os indivíduos, classificando-os, enquadrando-os não invoca para si um poder discricionário imenso, arma perigosa que pode por em risco a própria democracia,caso se fizer dela uma utilização abusiva indiscriminada? Estas ingerências excessivas nos direitos fundamentais que podem indicar uma decomposição do caráter do Estado de Direito.

Esta concepção expansionista do Direito Penal aparece como uma tentativa (infrutífera digamos de passagem) de abafar a proliferação de organizações criminosas (nacionais e transnacionais) e de estados paralelos ao estado de direito que “governam” vastos territórios no Brasil e no mundo. Esta construção teórica adotada na prática por alguns países afirma, também, a idéia da flexibilização do princípio da legalidade da lei — a possibilidade da existência de tribunais de exceção, a descrição típica obscura ou de uma maneira não precisa, ou seja, na verdade a apuração de processos regidos pelo inquisitório, sem o devido processo legal.

Na mesma seara de desproporcionalidade entre os fatos e a atribuição das penas o discurso do direito do inimigo dá azo a procedimentos não acobertados pelos direitos e garantias fundamentais como a descabida e exagerada antecipação da tutela penal, a concessão de prêmios ao inimigo delator (delação premiada, colaboração premiada) e o uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares como a interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos sem autorização judicial.

As limitações aos direitos fundamentais impostos por uma constituição serão variáveis conforme os direitos positivados naquela constituição e dependerão do regime a regê-la. Num regime democrático pressupõe-se o pleno gozo das liberdades individuais e veda-se qualquer tipo de ingerência do Estado acontecidas ao arrepio da lei. Os limites aparecem assim funcionalizados em relação a uma sociedade democrática, na medida em que é inadmissível da possibilidade de privação, restrição ou suspensão de direitos por exercício contrário à sociedade democrática ou às finalidades da Constituição, impossibilitando a ocorrência de qualquer restrição que não esteja fundada na Constituição, ou em princípios e preceitos constitucionais.

Professa Miranda 27 ao se posicionar em relação à restrição dos direitos fundamentais o faz defendendo a idéia de que se o princípio é a liberdade, a restrição não se lhe pode sobrepor:

a) Nenhuma restrição poderá deixar de se fundar na Constituição, ou em princípio ou preceitos constitucionais, ou de se destinar a salvaguardar de direitos e interesses constitucionalmente protegidos;

b) nenhuma restrição pode ser definida ou concretizada senão por lei — não pode haver regulamentos restritivos de direitos, nem a administração pode exigir para este efeito a não ser com fundamento na lei e no exercício de um poder vinculado;

c) as leis restritivas têm de se revestir de caráter genérico e abstrato;

d) as leis restritivas apresentam-se como inovadoras ou como interpretativas, não podem Ter efeito retroativo, porque as leis retroativas envolveriam pessoas e atos determinados ou determináveis e, por conseguinte, não revestiriam caráter geral e abstrato e ofenderiam a confiança dos cidadãos;

e) as leis restritivas não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos direitos, não podem em causa a finalidade dos direitos ou retirar qualquer sentido prático ao seu exercício;

f) as restrições estão sujeitas ao princípio da proporcionalidade só podem ser estabelecidas quando os fins, os interesses e os valores constitucionais somente através deles possam ser protegidos, devem em cada caso, realizar estes fins e não os outros e devem corresponder a medida, a justa medida, também em cada caso requerida por estes fins.

Pensamos, então, não desacompanhados, que este tipo de construção (direito penal do inimigo) é um retrocesso nas garantias e direitos fundamentais, um antidireito que segrega a priori certos grupos e serve como emblema repressivo, puramente simbólico. O princípio da intervenção mínima e fragmentária do Direito Penal está esculpido, repetimos, no contexto do Direito Penal democrático e de garantias de um estado social a serviço do indivíduo, atitudes totalmente inconciliáveis com Estados totalitários os ou regimes de exceção. A Constituição da República Portuguesa não ficou fora dessa questão. A restrição dos direitos fundamentais depende de quatro condições:

a) que a restrição esteja expressamente admitida na Constituição;

b) que vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido;

c) que a restrição exigida por esta salvaguarda seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objetivo;

d) que não atinja o núcleo essencial do direito em causa.

Este fenômeno que se dá na contra mão do garantismo assume contornos globais, nos EUA a guisa de exemplo, projetos legislativos objetivam a mudança do conceito de tortura. Não sem propósito que isto está acontecendo, basta ter ciência de Guantánamo para entender a necessidade premente dos EUA de justificar suas ações perante a comunidade internacional (os EUA ratificaram Convenção contra o tortura e maus-tratos proposta pela Organização das Nações Unidas, em 1984 que objetiva além de se insurgir contra tratamento cruéis, desumano dos criminosos e proibição da tortura).

Segundo Rosa 28, inserida nessa linha de extraordinária normatização encontramos no Brasil a Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003 que, entre outras coisas, alterou a Lei de Execução Penal, que criou o chamado regime disciplinar diferenciado para a execução da sanção privativa de liberdade; o artigo 58 limita a restrição de direitos aos presos, com uma ressalva: o isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não poderão exceder a 30 dias, ressalvada a hipótese do regime disciplinar diferenciado.

A perda de alguns dos direitos civis da população norte americana foi elaborada a partir da perspectiva do movimento conhecido por Lei e Ordem, que apregoa a maximização do Direito Penal, em prol da segurança nacional. Estas normas, entretanto, não se coadunam com a construção centenária e gradativa de preservação dos direitos civis dos cidadãos e de um Estado Constitucional e Democrático de Direito. Segundo o que se tem notícia carece de transparência inúmeros fatos ocorridos em Guantánamo, sendo que a instauração desta “corte militar” não respeita o Direito Internacional nem está previsto na convenção internacional de direitos políticos e civis de 1966, ratificado pelos EUA.

Nenhum criminoso pode ser punido sem o devido processo legal. Sobretudo quando as mais drásticas sanções do Direito Penal (privação da liberdade, privação de direitos fundamentais, etc.) devam ter incidência: o estrito respeito a todas as garantias é de fundamental relevância. Porém, é fato notório na mídia global a nomeação desta uma comissão militar pelo presidente George W. Bush em 2001, responsável pelo julgamento dos acusados — supostamente pertencentes à rede terrorista Al-Qaeda. A “legalidade” dos referidos julgamentos baseia-se em uma decisão da Suprema Corte americana do ano de 1942, que serviu de base jurídica para que Franklin D. Roosevelt pudesse julgar sabotadores alemães nos EUA.

Os argumentos que servem de sustentáculo de tais ações referem o fato de que o indivíduo que não se enquadra no contexto do contrato social, que não está congregado a um estado de cidadania, não usufrui, por sua voluntária exclusão social das liberdades e garantias individuais asseguradas pelo Estado. Não participando dos deveres em relação ao Estado, negando sua cidadania, não é um sujeito processual, logo, não pode contar com as garantias oriundas a um processo legalmente instituído: “cabe ao Estado não reconhecer seus direitos, ainda que de modo juridicamente ordenado29”, devendo dispensar ao mesmo não um procedimento penal (legal), sim, um procedimento de guerra.

O contorno do inimigo é difuso, ainda que a sociedade norte-americana queira imprimir a ele sempre o rosto de Bin Laden. O terrorista pode ser qualquer pessoa que pisa o solo americano, então, a reação contra o presumido mal feitor pode, hipoteticamente, se voltar para qualquer um de nós. Nesta perspectiva, a incerteza em relação ao inimigo nos ameaça a todos, pairando sob qualquer cidadão americano ou não, a possibilidade de perda dos direitos civis, das garantias fundamentais e a colocada em prisões e inquisições sem volta como Guantánamo.

Podemos até entender esta reação, pois a própria consciência da revolta enfraquece e se dilui quando perdemos os contornos do alvo a ser atingido, não distinguido a quem devemos descarregar munições. Os antigos modos repressivos deram lugar a uma espécie de incorporação classificatória, nova ou renovada, que ordena, absorve e exclui, sem uma análise mais aprofundada, sem o devido processo legal, com a tomada de depoimentos sob tortura quaisquer pessoas que não as classificadas “politicamente corretas”. Para legitimar estas “seleções” destituídas de critério cria-se nos EUA uma onde repressora.

É importante frisar, porém, que este tipo de retrocesso no discurso jurídico só é possível albergado por um consenso social; fruto disso é o direito penal do inimigo.

Considerações finais

Não se ignora, por evidente, que a escalada da violência nos centros urbanos brasileiros especialmente a violência gerada pelas facções edificadas, tem atingido entre nós proporções extremas e insuportáveis. O estado constitucional democrático enfrenta, então, seu maior desafio: efetivar a justiça, não comprometendo os direitos fundamentais dos seres humanos e conciliando os mesmos com sociedades de classes heterogêneas e conflitivas.

O poder passa necessariamente pelo Estado-nação, que hoje não tem mais condições de controlar um conjunto de variáveis que atinge, à sua revelia, duramente as populações. Lugar de política, mas esvaziado do poder, o Estado tem hoje sua soberania ameaçada pela descentralização do poder. Saliente-se ainda que a impossibilidade de circunscrever o poder, que deixa de existir enquanto espaço definido, nomeável, poderá, mais que o tornar obsoleto, decretar o desaparecimento do Estado. Com isso, pretende-se dizer que, quer formalmente ou não isso aconteça, quer configure-se ou não como situação de direito, de fato, isso já está acontecendo.

Ocorre que a eficácia da globalização econômica — essa nova etapa de dependência dos mercados emergentes em relação ao grande capital internacional, cuja lógica não é de associação, mas de dominação — está também relacionada ao fato de ela não ficar circunscrita à área econômica. As novas tecnologias permitem um fluxo constante de informações. Ultrapassa-se o nacional em direção ao internacional, ao transacional.

Se sob o aspecto econômico, a humanidade assiste a uma nova revolução tecnológica, com um fabuloso aumento de produtividade, há hoje, todavia, demanda de menos trabalho vivo para a produção de um mesmo volume de mercadoria, gerando um volume maior de excedente tanto de mercadorias quanto de mercado e de mão de obra trabalhadora. Como conseqüência de tal modelo, têm-se o desemprego e o aumento de capitais voláteis, girando no mundo em busca de valorização a taxas de juros elevadas.

A proposta de globalização pretende a derrubada das barreiras dos estados e a promoção do mercado internacional como esfera básica do contrato social, criando-se a partir dele, uma sociedade global. Argumentam os neoliberais que a globalização econômica irá trazer à humanidade uma nova era de paz e prosperidade: respeitando-se as leis do mercado o bem-estar social estaria garantido a todos os seres humanos.

Verifica-se, entretanto, que, após o avanço dessa onda neoliberal a exclusão de gigantescas parcelas da humanidade das condições elementares de subsistência e uma acumulação por parte de uma pequena maioria da maior fatia da riqueza mundial. A globalização não beneficia a todos de maneira uniforme. Uns ganham muito, outros ganham menos, outros perdem. Na prática, exige menores custos de produção e maior tecnologia. A mão-de-obra menos qualificada é descartada. O problema não é só individual. É um drama nacional dos países mais pobres, que perdem com a desvalorização das matérias-primas que exportam e o atraso tecnológico.

Dessa forma, a atual fase do processo de globalização tem provocado o aumento da pobreza no mundo, acirrando o drama do desemprego, a marginalização urbana, a degradação ambiental e a decomposição do tecido social. Pode-se destacar que tais fenômenos de exclusão são decorrências estruturais do sistema econômico capitalista vigente desde o século XVI e não apenas uma disfunção localizada de atraso de algumas de suas conformações em certas regiões do mundo em relação a um pretenso processo de desenvolvimento e modernização.

A globalização é comandada pelas grandes corporações transnacionais que procuram abrir novos mercados para sua produção e, ao mesmo tempo, recuperar as taxas de lucro, reduzindo seus custos pelo aumento da exploração dos trabalhadores, aumento das jornadas de trabalho e eliminação dos direitos dos trabalhadores, atacando as conquistas sindicais e trabalhistas obtidas na era de ouro do sistema e desmantelando o chamado estado de bem-estar social.

A globalização está concentrando renda: os países ricos ficam mais ricos, e os pobres, mais pobres. Entre os motivos para isso, estão a redução das tarifas de importação, que beneficiaram muito mais os produtos exportados pelos mais ricos. Os países mais ricos continuam a subsidiar seus produtos agrícolas, inviabilizando as exportações dos mais pobres. Não existe a possibilidade de serem designados sujeitos individuais nesse processo de abertura econômica, pois a tecnologia faz desaparecer os indivíduos, considerando apenas números e códigos, os fenômenos de mudança de capitais acontecem como “naturais”.

O capital, o trabalho e toda e qualquer atividade humana é vista como um dinheiro sem pátria, alocado conforme a produtividade das máquinas, da tecnologia e dos trabalhadores. A rentabilidade é um resultado automático, que sai do outro lado da equação matemática e determina a parcela justa de cada um. Eis o neoliberalismo: cada indivíduo deve buscar sua satisfação sem restrições, e, qualquer divisão que resulte, será a melhor possível.

A parcialidade no que concerne o privilegiar da classe dominante no tratamento legal e jurisdicional (devido às próprias contingências do processo) sedimentaliza as desigualdades formalizando jurídicamente essa impunidade ideologizada dando azo a seu imperturbável prosseguimento. Dessa forma esse contigente de excluídos é aprioristicamente discriminado e esbuliado do “estado democrático de direito”. Essa “prática de exclusão” não é ocasional nem contingencial — integra um projeto de sociedade, baseado no extermínio dos desprivilegiados econômica e socialmente.

Segundo Dimenstein 30, essa violência de caráter endêmico, implantada no sistema de relações sociais profundamente assimétricas, não é um fenômeno novo no Brasil: é a continuação de longa tradição de práticas de autoritarismo e cuja expressão foi dissimilada pela repressão formal da democracia. Quando à omissão por parte das autoridades estaduais diretamente responsáveis pelas instituições de controle de violência (a polícia, tanto militar como civil, colocada sob a autoridade dos governadores) assume os contornos de tolerância, quando não de estímulo, para com essas ações criminosas, enfraquece a vigência das garantias constitucionais, perpetua o circulo ilegal da violência e dificulta o fortalecimento da legitimidade do governo democrático como promotor da cidadania31.

A história brasileira conta-nos de um passado de esbúlio ao nosso patrimônio através da administração pública a das elites corruptas. Não honrando a função pública e o estado desconsidera a eficácia da justiça entregando as forças da ordem à corrupção. As diferenças sociais abrem uma brecha para que a grande maioria de excluídos de nosso país, por falta de alternativas, assumam essa comunidade criminógena como opção a sua total falta de perspectivas. O estado fomenta ou força um exército de excluídos a tomar as armas contra a comunidade nacional. Argumenta Castro32 que para alcançar maior eficiência no combate à escalada da criminalidade as instituições públicas repressivas acabam alterando seus mecanismos de controle e prevenção de delitos, seja aumentando o caráter punitivo das normas penais, seja liberando o processo de persecução criminal das garantias investigatórias e processuais incluídas na pauta constitucional dos direitos fundamentais do homem. Com isso, as liberdades civis ficam drasticamente comprometidas.

De outro lado, o grande contingente dos excluídos por força da indigência econômica passam a sofrer um processo de criminalização sumária, que os transforma em autêntico grupo de risco nas ações policiais de combate à delinqüência. Tem-se, aí a repressão ideologizada, à feição do colonianismo classista, que entre nós fez escola no período da ditadura militar, a ponto de deformar o conceito de ordem pública e transformar o papel das instituições incumbidas da segurança pública, notadamente as polícias civis e militares, em forças de arbítrio e de plantão a serviço do modelo econômico concentrador da riqueza e calcado na exacerbação egoísta da propriedade privada. Sob essa ótica proprietária e utilitarista do funcionamento das corporações encarregadas da prevenção e da repressão à criminalidade, as camadas desfavorecidas da população, sobretudo a gente das favelas e das favelas e dos morros, é vista sob permanente suspeição, tornando-se clientela da cotidiana violência policial.

Dentro da seara do direito penal mínimo, contra a criminalidade de menor potencial a reação social adota contornos de coloração privatística, perdendo a norma seu caráter de retribuição: reparado o dano estaria restabelecido o status quo ante, sendo desnecessária outra providência oficial. A despenalização dos crimes de menor potencial ofensivo se impõem dentro de um contexto de um direito penal mínimo, ao contrário de tendências americanas atuais de extremada reação criminal, compatíveis com um policiamento ostensivo que não existe na maioria dos países.

O direito penal tem mantido, pois seu nível clássico de controle reduzindo a contrario sensu seus aspectos repressivos: basta aludir a este respeito a abolição da pena de morte na grande maioria dos países que participam da tradição do Direito Penal Liberal, a supressão das penas corporais, a redução da pena privativa de liberdade, a progressiva humanização da execução penitenciária. A redução do potencial repressivo, do dano social produzido pelo sistema penal, a violência interente ao mesmo, mantém sem embargo cotas de proteção (isto é, de idoneidade para controlar em uma medida razoável os fenômenos de agressão e reação informal vingança), constitui reto continuo um direito penal construído desde perspectivas autenticamente liberais e formais e materialmente garantidas

A gravidade do momento reforça o questionamento sobre as desigualdades sociais, principalmente econômicas, implantadas pela globalização. Reforça a convicção de que há muito por que lutar: por um mundo possível, fraterno, democrático, solidário. A globalização capitalista do imperialismo norte-americano tem gerado uma extrema polarização social e política, que arrasta milhões de pessoas a miséria, situação impostas por meio de blindagem político-econômica militar que passa pelas condições neocoloniais que as instituições financeiras internacionais impõem. O bloqueio e as sanções Cuba e Iraque, os bombardeios do Sudão, a guerra contra a Sérvia, abre o questionamento sobre a implantação indireta do terror como sistema e diz que as mortes ocorridas nos enlutam a todos como seres humanos, como gente comprometida com a vida, como gente para qual nenhum fim justifica os meios.

A arquitetura da mente humana é imperfeita e herda de nosso passado evolucionário como legado as disposições para a guerra e a vingança, o fanatismo suicida e o nacionalismo, com o agravante de que não manipulamos mais paus e pedras, mas sim armas atômicas, químicas e biológicas. Sabemos que poderíamos solucionar os problemas sociais do mundo se os recursos destinados à indústria bélica fossem remanejados dentro de uma ética de maior eqüidade, mas lamentavelmente, apesar de todo avanço científico e tecnológico, somos ainda conduzidos por impulsos primitivos e nos comportamos como primatas.

Resta-nos a esperança no predomínio da capacidade de reflexão, ao inimigo pode ser imposto o rosto de Bin Laden ou de Fernandinho Beira-Mar ou de alguns políticos brasileiros, o de outras tantas figuras do atual cenário da criminalidade organizada. Mas destruir a causa imediata da violência é trabalho interminável, enquanto os pontos nodais dos conflitos submersos que trava o mundo contemporâneo não forem revelados e atacados.

Notas de rodapé

1 – ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal, parte general, I. Argentina: Ediar,1987, pág. 50 “el derecho penal tiene la función de proveer a la seguridad jurídica mediante la tutela de bienes jurídicos, previniendo la repetición o realización de conductas que los afectan en forma intolerable, lo que ineludiblemente, implica una aspiración ético- social. Cabe consignar que en este sentido usamos ” ético” para denotar lo que hace al comportamiento social, expresión que nada tiene que ver con la moral, que la entendemos como cuestión que incumbe a la conciencia individual y que, por ende, es autónoma. En este sentido, la “aspiración ética” del derecho, es la aspiración que éste tiene de que no se cometan acciones prohibidas por afectar bienes jurídicos ajenos. La coerción penal busca materializar esta aspiración ética, pero la misma no es un fin sí misma, sino que su razón, su ” por qué” ( y también su ” para qué”) es la prevención especial de futuras afectaciones intolerables de bienes jurídicos.”

2 – Krebs, Pedro. Teorias a respeito da finalidade da pena, Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, ano , nº , p. 99

3 – SILVA SÁNCHEZ, Jesus Maria. Aproximacion al Drecho Penal Contemporáneo. Barcelona: Bosch, 1992, p.219

4 – Sempre que o Estado interferir na vida social, buscando o disciplinamento, deverá fazê-lo de molde a preservar, com a lei, a conformidade desta com seu verdadeiro finalismo, isto é, não poderá ser nem insuficiente nem excessivo em sua tarefa punitiva, concretamente, proporcional à infração cometida e nos limites da culpabilidade, a fim de que seja justa e não encontre no castigo a possibilidade de arbitrariedade de quem irá aplica-la.

5 – ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal, Rio de Janeiro: Revan, 2001, 5ª edição

6 – ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Sistemas penales y derechos humanos en América Latina. Buenos Aires : Depalma, 1984, p.28 “verificar-se na operacionalidade social dos sistemas penais latino-americanos um violentíssimo exercício de poder à margem de qualquer legalidade. Neste sentido, basta rever qualquer informe sério de organismos regionais ou mundiais de direitos humanos para comprovar o incrível número de seqüestros, homicídios, torturas e corrupção cometidos por agências executivas do sistema penal ou por seus funcionários. A estas violações devem ser acrescentadas a corrupção, as atividades extorsivas e a participação nos benefícios decorrentes de atividades como o jogo, a prostituição, o contrabando, o tráfico de drogas proibidas”.

7 – PRITTWITZ, Cornelius, O Direito Penal entre o Direito Penal do Risco e o Direito Penal do Inimigo: tendências atuais do direito penal e política criminal. Revista do IBCcrim nº 47, 2004.

8 – SILVA SÁNCHEZ, Jesus Maria. Aproximacion al Drecho Penal Contemporáneo. Barcelona: Bosch, 1992, p.18 “O movimento abolicionista surgiu como efetiva reação a inoperância da pena em termos correcionais (Estados Unidos, Holanda, países da Escandinávia).

9 – MORAES , Vinicius Borges de. As teorias da finalidade da pena e o respeito às garantias fundamentais, Revista Ibero-Americano de Ciências Criminais, ano 6, nº 11, 2005, p. n 121.

10 – MORAES , Vinicius Borges de. As teorias da finalidade da pena e o respeito às garantias fundamentais, Revista Ibero-Americano de Ciências Criminais, ano 6, nº 11, 2005, p. n 121.

11 – KREBS, Pedro. Teorias a respeito da finalidade da penal. Revista Ibero — Americana de Ciências Penais, ano 6, nº 11.

12 – KREBS, Pedro. Teorias a respeito da finalidade da penal. Revista Ibero — Americana de Ciências Penais, ano 6, nº 111 “ As segundas (prevenção geral positiva, de integração, doutrina funcionalista , teoria simbólica da pena, teoria sistêmica) visam a fazer presente constantemente à vigência da normas, ou seja, a pena é utilizada com fim de reforçar a convicção coletiva em torno da norma, afirmando a confiança institucional do sistema jurídico”.

13 – Francisco Muñoz Conde, Introducción al Derecho Penal, Barcelona, Bosch, 1975.

14 – COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

15 – Mantovani, Ferrando Diritto Penale – Parte Generale. Torino: UTET, 1961.

16 – Palazzo, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1989.

17 – LUISI, Luiz: Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1991.

18 – CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

19 – Na atual situação brasileira a positivação que acontece são das regras do crime organizado. Sempre se reconheceu que além do poder do estado representante da totalidade em nome da qual se exerce o monopólio da força legítima, vicejam diversos poderes articulando a vida cotidiana.

20 – CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

21 – CRESPO, Eduardo Demetrio, Do “Direito Penal Liberal” ao “Direito penal do Inimigo” Revistas de Ciências Penais.

22 – PRITTWITZ, Cornelius, O direito Penal entre Direito Penal do Risco e o Direito Penal do Inimigo, Revista BrasileiraCCRIM Nº 47/2004 , p.41 “Segundo PRITTWITZ o direito penal do inimigo é um direito penal por meio do qual o Estado confronta não os seus cidadãos, mas os seus inimigos; em que isto se faz visível?. Primeiramente afirma o autor, tomando-se a lei concretamente o código penal e a legislação processual penal, o que se vê é que , onde se trata de punição de inimigos, se pune antes de forma mais rígida, do ponto de vista de direito material, a liberdade do cidadão de agir e (parcialmente) de pensar é restringida; ao mesmo tempo, subtraem-se direitos penais do inimigo”.

23 – Derecho penal del enemigo, Jakobs, Günter e Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003.

24 – Derecho penal del enemigo, Jakobs, Günter e Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003.

25 – BOSCHI, Antonio Paganella, Das penas e de seus critérios de aplicação, Livraria do Advogado: 2000.

26 – STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, Malheiros:2004, São Paulo, pg.129 “ Do ângulo da função, os direitos fundamentais como direitos à proteção não se confundem com os direitos fundamenatais como direitos de defesa. Como direitos de defesa, impõem ao Estado um dever de omissão, de não intervenção arbitrária ou injustificada; exigem do Estado uma função negativa, uma abstenção. Como direitos à proteção, exigem do estado uma ação positiva, normativa ou fática, de proteção do direito fundamental direito da lesão ou ameaça de lesão de terceiros, comumente de particulares. Já do ângulo do objeto (âmbito de proteção), há uma clara semelhança: direitos de defesa e direitos de proteção excluem a restrição injustificada (arbitrária abusiva) ou a eliminação de um direito subjetivo constitucional do titular por outrem (Estado ou terceiros).

27 – MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais perante o Terrorismo. Terrorismo e Direito. Os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil: perspectivas políticas-jurídicas, O desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo,/i>, Forense: Rio de Janeiro, 2003, p.61.

28 – ROSA, Fábio Bittencourt da. Da vingança de sangue ao direito penal do inimigo En Derecho Penal Online (Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia en línea). (Año XX. Mes XX, citado el 6/3/2005). Disponible en Internet: ttp://www.derechopenalonline.com).

29 – GÜNTER Jakobs e MELIÁ Cancio, Manuel, Derecho penal del enemigo , Madrid: Civitas, 2003.p.45.

30 – DIMENSTEIN, Gilberto, Democracia em pedaços – direitos humanos no Brasli/, Ed. .Companhia das Letras, 1996, pp. 7-9.

31 – DIMENSTEIN, Gilberto, Democracia em pedaços – direitos humanos no Brasil, Ed. .Companhia das Letras, 1996, pp. 7-9.

32 – CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 258 – 260.

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Luterana do Brasil, especialista em Direito Penal e mestre em Gestão de Negócios do Mercosul pela Uces — Universidad de Ciencias Empresariales y Socialies.

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