Questão de foco

Visto de advogado em cartório não é reserva de mercado

Autor

23 de outubro de 2006, 19h54

Em artigo intitulado A vitória do cartorialismo, o jornal O Estado de S.Paulo (21/10/06) verberou a decisão do Supremo Tribunal Federal que “graças ao voto de desempate de sua presidente, ministra Ellen Gracie”, rejeitou a Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Confederação Nacional da Indústria, “questionando a obrigatoriedade da assinatura de um advogado no ato de constituição de uma empresa numa Junta Comercial”.

Segundo aquele diário, “a obrigatoriedade de pagar por serviços desnecessários, como a interveniência de um advogado na abertura de uma empresa, é um dos expedientes que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) desenvolveu para ampliar o mercado de trabalho de seus filiados. Atualmente há 517 mil bacharéis exercendo a profissão (…). Burocratizar a vida social e econômica, mediante a exigência de intermediação de advogado em atos corriqueiros, é uma forma de assegurar renda a um grande número de bacharéis”.

O tema, tal como apresentado, contém seguidas impropriedades que não prescindem de uma resposta séria e jurídica. De início, vale o registro de que o julgado do STF não resultou unicamente do voto da honrada ministra Ellen Gracie; mas, por igual, de cinco outros ministros. Assim, se houve equivalência de votos no julgamento anterior, o fato do desempate caber àquela ilustre magistrada não constitui privilégio algum, importando apenas na aplicação do Regimento Interno daquela Corte.

Redunda numa temeridade afirmar que a exigência contida no artigo 1º, § 2º da Lei 8.906/94 não passa de um dos “expedientes” adotados pela OAB “para ampliar o mercado de trabalho de seus filiados”, premida pelo excessivo número de “517 mil bacharéis exercendo a profissão”.

Atenta contra o bom senso qualificar de expediente uma decisão da mais alta Corte Constitucional e responsabilizar a OAB pela edição de uma lei, aprovada pelo Congresso, sancionada pelo então presidente Itamar Franco.

Não se trata de uma resolução ou provimento da OAB que fosse, apenas, de interesse da classe, mas de uma lei que caracteriza-se pela generalidade e obrigatoriedade ou, segundo GAIUS, vem a ser “aquilo que o povo ordena e constitui”.

A ênfase que a notícia dá ao número de bacharéis exercendo a profissão, demonstra que o articulista ainda não se inteirou da diferença existente entre bacharel e advogado. Flagrante, pois, o seu desconhecimento do que prescreve o artigo 3º da Lei 8906/94: “O exercício da atividade da advocacia e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB”.

Acresce, como assinalou o ministro Maurício Corrêa, quando do julgamento da questionada ADIN 1.194-4/DF, “que esta exigência não é nova e apenas repete, ampliando, a que se continha no Estatuto anterior”, com o acréscimo introduzido pela Lei 6.884 de 9.12.1980: “Art. 71… § 4º — Os atos constitutivos dos estatutos das sociedades civis e comerciais só serão admitidos a registro e arquivamento nas repartições competentes quando visados por advogados”.

Daí haver S.Exa., como relator, recusado a concessão da liminar pleiteada pela CNI, em relação ao artigo 1º, § 2º do Estatuto, advertindo: “Essa norma foi cumprida por empresas por mais de 14 anos e NUNCA CONTESTADA, fato que também torna frágil o assento para concessão da medida liminar requerida”.

Já o argumento de que a imposição legal não passa de mera “assinatura de advogado” ou de um “serviço desnecessário” é de um primarismo solar.

Consoante anotou Paulo Luiz Neto Lobo (atual membro do Conselho Nacional de Justiça), quanto à cautela que deva cercar a elaboração dos atos constitutivos das pessoas jurídicas: “A experiência demonstrou que esse campo foi ocupado por outros profissionais sem qualificação jurídica (despachantes, contadores), utilizando formulários e modelos nem sempre adequados, provocando dificuldades e litígios evitáveis, especialmente nos casos de dissoluções societárias” (“Com. ao Novo Estatuto da Advocacia e da OAB”, ed. Brasília, p. 24).

Sobreleva, pois, a importância da atuação do advogado no momento da constituição da pessoa jurídica e na redução a termo, no encontro de vontades de seus fundadores. O trabalho obrigatório do advogado, nesta fase fundamental do processo de instituição das pessoas jurídicas, permite evitar tais problemas, estabelecendo uma segurança legal tanto para as associadas como para terceiros (GLADSTON MAMEDE, “Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil”, Síntese, p. 70).

O Regulamento Geral do Estatuto (artigo 2º) dispôs solenemente que “o visto do advogado em atos constitutivos de pessoas jurídicas, indispensável ao registro de arquivamento nos órgãos competentes, deve resultar da EFETIVA CONSTATAÇÃO pelo profissional que os examinar de que os respectivos instrumentos preenchem as exigências legais”.

Por conseguinte, o visto que a CNI pretendeu impugnar em juízo trata-se de ato do maior significado, que gera responsabilidade para o advogado que o emitiu, não importando num expediente sem repercussão alguma que não fosse o de remunerar o profissional chamado a verificar a legalidade do contrato.

Por tudo isso, bastaria o elementar conhecimento dos aspectos focalizados neste artigo para se concluir pela inoportunidade das contundentes e infundadas censuras dirigidas tanto à Suprema Corte como à Ordem dos Advogados do Brasil.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!