Abuso na execução

A insensatez prevalece na penhora de bens de sociedades

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22 de outubro de 2006, 6h00

A penhora online de depósitos bancários de sócios e ex-sócios para a satisfação de créditos trabalhistas, fiscais, previdenciários e, mais recentemente, comerciais, de sociedades das quais participam, ou participaram, vem sendo posta em execução de forma impensada, e em total descompasso com os preceitos jurídicos que regem a matéria, quando não de princípios elementares do próprio sistema capitalista.

Relembrando, a regra da separação da personalidade da empresa da personalidade de seus sócios foi desenvolvida na Renascença como um instrumento que possibilitava ao investidor quantificar precisamente os limites do seu risco. Após o advento das sociedades de responsabilidade limitada e por ações, sócios ou investidores passaram a ter a segurança jurídica de que não responderiam por valores que excedessem a parcela do capital subscrito e realizado, na hipótese de insucesso do empreendimento.

A engenhosidade dessa ficção jurídica propiciou, como reconhecem historiadores e economistas, o incremento no comércio internacional, financiando até mesmo a conquista do Novo Mundo.

Evidentemente o abuso e os excessos praticados por comerciantes desonestos sob o manto da pessoa jurídica deram azo a toda a sorte de fraudes e iniqüidades. Exatamente por isso, a partir do célebre caso Salomon vs. Salomon, julgado pela Corte Inglesa em 1897, ganhou peso e corpo no mundo jurídico. a Teoria da Desconsideração, também conhecida por disregard doctrine. A regra estabelecida por esse precedente inglês, encampada pelo Direito da maioria dos países ditos modernos, é simples e irrefutável: a justiça não pode tratar a empresa como um ente separado das pessoas de seus sócios, quando estes mesmos sócios assim não a tratam.

No Brasil, o disregard começou a ser aplicado primeiro por construção jurisprudencial e, mais tarde, através da promulgação de legislações específicas. Com o advento do novo Código Civil, obteve maior abrangência.

Todavia, é regra assente e incontroversa — tanto aqui como outros países — que, para a desconsideração da pessoa jurídica não desbordar em perigoso arbítrio, o julgador deve fazer prévia verificação sobre a existência do abuso da personalidade jurídica (“Ballantine on Corporations”, pp. 291 e ss.). Abuso de personalidade, na forma da lei civil, se caracteriza pelo desvio da finalidade, ou a constatação de promiscuidades patrimoniais entre a sociedade e seu sócio (Código Civil, art. 50).

Exceto no caso de abuso, e exceção feita àquelas poucas hipóteses em que a responsabilidade dos sócios ou gerentes por atos da empresa pode se verificar de forma objetiva, como, por exemplo, na responsabilidade por danos ambientais e aos consumidores, a separação de personalidades deve prevalecer e os bens pessoais dos sócios não podem ser atingidos.

Isso se dá porque a ordem econômica capitalista atribui ao trabalho e a livre iniciativa igual peso (Constituição Federal, art. 170). Revestindo-se ambos os players, dos mesmos direitos, é de se presumir que também concorram de maneira igual e proporcional, com as perdas. Esse é, aliás, o espírito da nova e moderna Lei das Recuperações: viabilizar a superação de crise e permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores de modo a promover a preservação da empresa e sua função social e econômica (art. 47).

Evidentemente que não agrada a ninguém ver o empregado, o fisco ou até mesmo os credores comerciais frustrados na perseguição de respectivos créditos pelo fato dos ativos sociais remanescentes não serem suficientes à plena satisfação de todas as obrigações sociais. Porém, também causa espécie constatar que empresários honestos, sócios, investidores passivos, gestores de fundos de privaty equity, ex-sócios, quando não até advogados ou procuradores sejam liminarmente expropriados de seu patrimônio, sem que lhes seja concedido o mais elementar direito de prova de que não houve ou não contribuíram para qualquer abuso da personalidade jurídica.

Os meios não justificam os fins. A instabilidade jurídica que deriva da satisfação dos créditos trabalhistas e fiscais a qualquer preço inibe o empresário de contratar, voltando-se, pois, contra o próprio empregado ou o fisco, por sufocar a livre iniciativa e afugentar investidores nacionais e estrangeiros.

Em conclusão, não temos dúvida de que a insensatez prevalecente nesses bloqueios inconseqüentes de depósitos bancários de sócios ou ex-sócios, por dívidas trabalhistas e fiscais de sociedades, pode causar tantos estragos à economia e à imagem do país como outros atos mais emblemáticos e de maior repercussão na mídia. Afinal, essa conduta impossibilita qualquer avaliação adequada de riscos de contingência, especialmente na esfera trabalhista.

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