Papel social

Estado é que deve garantir educação especializada a deficientes

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21 de outubro de 2006, 6h01

É dever do Estado garantir educação especializada aos deficientes e a iniciativa privada não pode ser obrigada a suprir carências estatais. Com esse entendimento, o juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, rejeitou pedido de indenização por danos morais para Cristiane Roncon contra a Nova Escola.

Cristiane recorreu à Justiça porque não conseguiu matricular a sua filha, que tem Síndrome de Down, na instituição particular. À Justiça, a mãe disse que matriculou seu outro filho, que não é deficiente, na mesma escola porque teve a garantia da supervisora de que no ano seguinte haveria condições pedagógicas de receber crianças com síndrome de down. Segundo os advogados da família, a matrícula do irmão resultou de indução a erro e, além disso, foi ilícita e discriminatória.

A Nova Escola se defendeu. Alegou que a mãe nunca pediu a matrícula da criança e que não prometeu que ela seria matriculada, isso porque entendeu que seria temerário o compromisso de matriculá-la sem o suporte necessário. Ressaltou que a mãe da criança faz parte da ONG Grupo 25, que defende a inclusão incondicional de alunos com necessidades especiais, “enquanto a Nova Escola, com base na lei, entende que deve haver adaptações prévias para que o processo inclusivo educacional seja proveitoso ao educando e a toda comunidade de alunos, pais e mestres”.

Para o juiz Gustavo Santini Teodoro, qualquer norma que diga que a iniciativa privada tem de aceitar de forma incondicional todas as pessoas deficientes em classe de rede regular de ensino é inconstitucional, “dada a clareza do artigo 208, inciso III, da Constituição Federal”. O dispositivo prevê: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”. Ele ressalta ainda que a palavra preferencialmente não é o mesmo que obrigatoriamente.

Em seu despacho, o juiz também elenca diversas normas que descrevem quais os requisitos uma instituição de ensino deve preencher para poder atender pessoas deficientes, entre elas o artigo 60, da Lei de Diretrizes e Bases. “Ao contrário do que leva a crer leitura da petição inicial, não há como ver ilicitude, ilegalidade ou discriminação no fato de uma escola da iniciativa privada, como a mantida pela ré, não receber ainda, em suas classes comuns de ensino regular, pessoas portadoras de necessidades especiais como a autora.”

Sobre a alegação de que a escolha prometeu fazer a matrícula, Teodoro observa que não é questão de direito e que, para ser apreciada, precisa de provas. O que não encontrou nos autos.

Leia a decisão

Poder Judiciário 23a Vara Cível Central de São Paulo

Processo No 583.00.2005.055918-2

Consta da petição inicial que a autora menor incapaz L. R. F. tem seis anos de idade e nasceu com Síndrome de Down. Seu irmão mais velho, F. R. F., de dez anos de idade, não tem a síndrome e estuda, desde o ano letivo de 2004, na Nova Escola, mantida pela ré SOCIEDADE PELA FAMÍLIA, que dizia valorizar a inclusão e integração da pessoa deficiente. O irmão da autora foi matriculado nessa escola porque havia a previsão, dada pela coordenadora Jeane, de que existiriam condições pedagógicas de receber a autora no ano letivo de 2005. Contudo, no final do mês de agosto de 2004, quando se buscou dar início ao processo de matrícula, veio a informação de que a ré ainda não estava preparada para receber crianças com síndrome de Down. A matrícula do irmão da autora resultou de indução a erro, porque a ré fez acreditar que tomaria providencias necessárias à inclusão da autora. Em 21 de setembro de 2004, a supervisora da escola, Laura Souza Pinto, informou que seria feito um projeto de inclusão, mas não deu prazo para que efetivamente ocorresse a mudança. Assim, a matricula da autora foi rejeitada. Em conseqüência, o irmão da autora não mais permaneceu matriculado na escola mantida pela ré. A recusa de matrícula da autora em escola da ré, pertencente à rede regular de ensino, foi ilícita, discriminatória e fonte de dano moral. Daí o ajuizamento da presente AÇÃO DE INDENIZAÇÃO.

Na contestação (fls.59-72), a ASSOCIAÇÃO PELA FAMÍLIA, preliminarmente, argüiu ilegitimidade ativa ao causam da petição inicial. No mérito, disse que adquiriu estruturação geral, sem tempo regular hábil para implementação de sistema pedagógico capaz de entender as necessidades específicas de uma criança com características especiais. Aduziu que seria temerário o compromisso de matricular a menor L. sem o suporte necessário para lhe prestar o devido atendimento pedagógico. Afirmou que a mãe da autora faz parte da ONG Grupo 25, que defende a inclusão incondicional de alunos com necessidades educacionais, enquanto a Nova Escola, com base na lei, entende que deve haver adaptações prévias para que o processo inclusivo educacional seja proveitoso ao educando e a toda comunidade de alunos, pais e mestres. Disse também que, durante o ano letivo de 2004, a supervisora da escola alertou a mãe da autora que seria mais benéfico para esta que estudasse em um estabelecimento inclusivo a estruturado e informou que naquele momento ainda não poderiam te-la em seu quadro de alunos. Afirmou que, no ano de matricula do irmão da autora, não prometeu que a menor seria recebida em 2005. Aduziu que não ocorreu rejeição da matricula da autora, porque sua mãe nunca solicitou matrícula. Fez considerações sobre o valor da indenização. Pediu a extinção do processo ou a improcedência da ação


Houve réplica (fls. 267-284).

Após parecer do ministério Público (fls. 185), seguiu-se decisão que indeferiu segredo de justiça, rejeitou as preliminares, fixou os pontos controvertidos e deferiu produção de prova oral e documental (fls. 287). A ré interpôs agravo de instrumento (fls. 295 –304), ao qual foi negado seguimento (fls. 368 — 374).

Tomado o depoimento pessoal da representante legal da ré (fls. 329—– 331), foram ouvidas três testemunhas (fls. 332 — 338). Encerrada assim a instrução, as partes apresentaram memoriais (fls. 342 — 356 e 358 — 362), em que reiteraram seus argumentos. O Ministério Público apresentou parecer pela improcedência da ação (fls. 364 — 366).

É o relatório

Fundamento decidido

1. O artigo 208, inciso III, da Constituição Federal. Prescreve que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. Observe-se que a norma alude a dever do Estado, não da iniciativa privada, e preferencialmente, que não é o mesmo que obrigatoriamente.

É certo que os incisos I e II do artigo 209 da Constituição Federal fixam duas condições para o ensino pela iniciativa privada: cumprimento das normas gerais da educação nacional; autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. Contudo, isso não significa que as escolas da iniciativa privada estejam obrigados a receber portadores de deficiência , basicamente por três fundamentos: primeiro, porque o inciso III do artigo 208 alude a dever do Estado; segundo porque diz preferencialmente, não obrigatoriamente; terceiro, a iniciativa privada não é obrigada a suprir eventuais carências do Estado.

Qualquer norma infraconstitucional – editada pelo legislador ou pelos órgãos deliberativos dos sistemas de ensino da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios — , que imponha à iniciativa privada o dever de acolher de maneira incondicional pessoas portadoras de deficiência em classe de rede regular de ensino é manifestamente inconstitucional, dada a clareza do artigo 208, inciso III, da Constituição Federal.

Os sistemas de ensino, que devem ser organizados pela União, Estados. Distrito Federal e Municípios (artigo 8o da Lei 9.39, de 20 de setembro de 1996), compõem-se de vários órgãos e entidades. No que interessa à análise da lide, os artigos 17 e 18 da Lei 9.394/96 estatuem que os sistemas de ensino dos estados e dos Municípios, compõem-se, basicamente de instituições de ensino mantidas pelo Poder Público, instituições de ensino criadas e mantidas pelas iniciativas privadas e órgãos de educação.

O artigo 59 da Lei de Diretrizes e Bases prescreve que “os sistemas de ensino assegurarão aos educandos de necessidade especiais:

I — currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades;

II — terminalidade especifica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados;

III — professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns;

IV — educação especial para o trabalho, visando a sua afetiva integração na vida em sociedade, inclusive, condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artísticas. Intelectual ou psicomotora;

V — acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para os respectivo nível do ensino regular.”

Ressalte-se que o artigo transcrito no parágrafo anterior, o qual menciona aquilo que os sistemas de ensino devem assegurar aos educandos com necessidades especiais, deve ser interpretado à luz do artigo 4o, inciso III, da própria Lei de Diretrizes e Bases, no sentido de que o dever do Estado com educação escolar pública deve ser efetivado mediante a garantia de atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino. Portanto, a Lei repete, em essência, o que á está na Constituição Federal: o atendimento aos educandos com as necessidades especiais, dentro dos sistemas de ensino, é dever do Estado, não da iniciativa privada, a ser prestado preferencialmente na rede regular de ensino.

De todo modo, não é mais destacar também que o parágrafo 2o do artigo 58 da Lei 9.394/96 prescreve que o atendimento educacional será feito em classes, classes escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições especificas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular. Ou seja, a integração nas classes comuns de ensino regular não prescinde de uma definição da exata condição dos educandos com necessidades especiais, o que reforça as conclusões precedentes.


Mais ainda o artigo 60,caputo,da mesma Lei, prevê que os órgãos normativos dos sistemas de ensino estabelecerão critérios de caracterização das instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial, para fins de apoio técnico e financeiro pelo Poder Público. Ora, se todas as escolas da iniciativa privada fossem realmente obrigadas a aceitar incondicionalmente toda e qualquer pessoa com necessidades especiais em classes comuns do ensino regular, a norma do artig60, caput , da Lei de Diretrizes e Bases, seria completamente inútil e desnecessária.

Mesmo no âmbito do ensino público, não bastasse o “preferencialmente” das normas antes invocadas, o parágrafo único do artigo 60 da Lei de Diretrizes e Bases prevê que o Poder Público adotará, como alternativa preferencial, a ampliação do atendimento aos educandos com necessidades especiais na própria rede pública regular de ensino, independentemente do apoio às instituições previstas no caput. Eis aí mais uma norma, que se soma às conclusões acima enunciadas.

Portanto, ao contrário do que leva a crer leitura da petição inicial, não há como ver ilicitude, ilegalidade ou discriminação no fato de uma escola da iniciativa privada, como a mantida pela ré, não receber ainda, em suas classes comuns de ensino regular, pessoas portadoras de necessidades especiais como a autora.

2. Resta saber, não obstante a conclusão a que se chegou no item precedente, se a ré, no ano letivo de 2004, quando da matricula do irmão da autora, levou a mãe desta a acreditar que, no ano letivo de 2005, teria condições pedagógicas de receber pessoas portadoras de necessidades especiais.

Tal questão não é de direito, como a anteriormente analisada, mas sim matéria fática, a ser apreciada à luz das provas colhidas durante a instrução. Tratava-se de tema probatório independente da matéria jurídica já apreciada, suficiente, por si só, para determinar o resultado da lide.

Realmente, em tese, se a ré houver criado expectativas, depois frustradas, no sentido da inclusão da autora em classe comum, sua responsabilidade é manifesta, pois a ninguém é dado “venire contra factum proprium”, isto é, adotar conduta em contradição com posição anteriormente definida

Não há nos autos prova documental que demonstre ter a ré assegurado aos pais de autora que providenciaria a inclusão. Além disso, das testemunhas arroladas pela autora, uma é pai desta (ouvida sem compromisso legal de dizer a verdade, em razão de impedimento) e a outra não presenciou nenhuma conversa mantida pelos pais da autora com pessoas da escola. ( o que impossibilita confirmação das afirmações do pai). Portanto, com esse quadro, concluiu-se que a autora não tem razão.

Na verdade, a única conclusão segura que se pode extrair da prova oral – aí incluídos o depoimento pessoal da representante da ré, as afirmações da segunda testemunha da autora e da única testemunha ré, as afirmações da ré –, é que a escola ainda não está preparada para receber pessoas com necessidades especiais. E, repita-se, tal que está em curso na escola da ré (v. fls. 199 – 208; fls. 330, reperguntas; fls. 337, seis últimas linhas), não é juridicamente exigível, não admite imposição de data e não comporta constituição em mora.

3.Ante o exposto,JULGO IMPROCEDENTE a ação. Sucumbente, a autora arcará com custas, despesas procesuais e honorárias advocatícios que fixo, nos termos do artigo 20, parágrafo 4o, Código Processo Civil ], em três mil reais, com atualização monetária pela tabela prática a partir desta sentença.

P.R.I

São Paulo, 15 de setembro de 2006.

Gustavo Santini Teodoro

Juiz de Direito

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