Papel do MP

Não se sabe qual a extensão e os limites de atuação do MP

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20 de outubro de 2006, 18h03

Continua no Supremo Tribunal Federal importantíssima controvérsia correspondente ao papel do Ministério Público nas atividades investigatórias antecedentes às ações penais, tradicionalmente deferidas à Polícia Judiciária, observando-se, aliás, disposições específicas do Código de Processo Penal. Com o aprimoramento da legislação atinente ao Ministério Público, entretanto, a nobre instituição recebeu atribuições que lhe davam e lhe dão poderes para, embora abstrusamente, disputar porções dessa atividade inquisitória. A Lei Orgânica do Ministério Público nacional, bem conhecida pelos juristas que se dão ao estudo do processo penal, assegurou ao parquet tal qualidade, não se sabendo, ainda hoje, qual é a extensão e quais os limites das atividades referidas.

Evidentemente, o Ministério Público tem, chegando de antanho, um vício de origem (qualidade, quem sabe), que sempre o encostou no Poder Executivo, ligação, diga-se de passagem, da qual o órgão procura livrar-se, fiado na independência agora embandeirada, chegando-se ao extremo de se pensar em um denominado “quarto poder”. Dentro do regime constitucional, não há entidade perdida no espaço. Para que não se acuse o cronista de parcialidade, entretanto, há quem afirme que a Ordem dos Advogados assim é, bastando lembrar que ao tempo da ditadura houve tentativa de se a vincular ao Ministério do Trabalho, reiterando-se o propósito, sob conotação diversa, pouco tempo atrás.

Voltando-se aos eminentes promotores de Justiça, nos quais se inserem, para facilidade de análise, os denominados procuradores da República, não se lhes pode negar qualidade para investigação autônoma, nem se deve refugar, além disso, a possibilidade de acompanhamento de procedimento policiais referendados no Código Processo Penal. Cabe ao Ministério Público, e com muita procedência, a fiscalização externa da atividade policial. Até aí todos se põem em concordância, com algumas ressalvas constantes, inclusive no Supremo Tribunal Federal, de posições encastoadas pelos eminentes ministros Marco Aurélio e Nelson Jobim. Não se há de perder tempo, aqui, com exposição rotunda de argumentos jurídicos para o referendo de uma ou outra posição, bastando a análise teleológica do verdadeiro problema existente. Parta-se, para tal fim, ao desfolhar de exemplos vívidos ainda nos sobreviventes de época autoritária brasileira não meritória. Cuida-se, evidentemente, de fenômeno incrustado na figura quase mitológica da degustação do poder, sabendo-se, conforme Bertrand de Jouvenel, que o mesmo se desdobra e se multiplica, indo desde o tirano ao catador de papéis, cada qual usando o pedaço que puder abocanhar.

Nos períodos de revolução social ou modificação dos princípios reitores do disciplinamento da autoridade, a disputa pelo poder se transforma às vezes em conflito selvagem disfarçado, entre os intelectuais, nas sutilezas da interpretação dos diplomas legislativos e das pressões para a transformação, posta na própria lei, de projetos agredindo o direito de reação do cidadão contra a autoridade em geral (a chamada liberdade-resistência). Desgraçadamente, o país enfrenta, no momento, uma conseqüência do ultrapassamento de período ditatorial e de desenvolvimento de uma simbiose nebulosa entre o discricionarismo não superado e a recomposição das chamadas liberdades democráticas, tudo misturado ou soprado pela turbulência verificada no primeiro mundo. Nesse contexto, os diversos momentos do poder de coerção têm encontrado ajuste fácil naqueles segmentos que já o detinham, numa quase sucção. Pensando nisso, veio ao articulista o exemplo de gotas de mercúrio espalhadas numa superfície e postas umas próximas das outras. Ao menor movimento, compõem uma só bolha, maiorizada, é claro, pela junção definitiva de todas.

Isso significa, em termos não muito jurídicos, mas bem inteligíveis, que as instituições detentoras do poder de investigação herdado de um passado não muito distante mantiveram e potencializaram, na perplexidade da desencontrada redemocratização do país, uma pujança hoje refletida na legislação protetiva e no próprio pragmatismo da agressividade demonstrada enquanto tais instituições disputam o ganho dos espaços, transformando-se o palco de batalha num enorme queijo com buracos variados a serem preenchidos pela rapidez de cada qual. Nesse diapasão, o Ministério Público, examinado na condição de ser coletivo, aproveitou a perplexidade em que o país se encontrava e buscou a ocupação do terreno deixado vazio, comportamento este muito aceitável, aliás, se e quando encontrando, como encontrou, pouca vitalidade na insurgência de instituições outras devotadas a tarefas mais libertárias. Não há crítica ou censura, mas apenas constatação. A convivência é assim, transitando o indivíduo com muita ou pouca liberdade, conforme as tendências ou mutações havidas na coletividade.

Tais pressupostos, com certeza, se põem no Supremo Tribunal Federal enquanto os eminentes ministros, não sem grande dose de angústia, administram o conflito que, antes de se colocar no Plenário, é imanente na consciência de um e de outro, porque todos ali, independente da vocação pessoal do presente e dos antecedentes primitivos, precisam definir, estipular e projetar no meio jurídico, com uma soberania não impositiva mas quase normativa em função das resultantes, as porções do poder que a nobre instituição do Ministério Público deve receber para, inclusive, não sujeitar o investigado (diga-se o perseguido) a perseguições insuportáveis.

Já se vê que o debate havido no Supremo, com amostra no voto do Ministro Celso de Mello, seguramente admirável nas manifestações sempre precisas postas a lume na jurisprudência pátria, não se prende exclusivamente a questões jurídicas emergentes, mas a todo o sistema persecutório em vigor no Brasil, refletindo-se tais perseguições em condutas que, certamente, extrapolam as mais laceadas quadraturas do uso do poder arbitrário, transformando-se alguns executores, não havendo vigilância, em autênticos farejadores das mais íntimas prerrogativas do ser humano, nestas entronizadas, sem dúvida alguma, a proteção do próprio lar, da correspondência, da comunicação e dos segredos mantidos pelo ser humano como coisas sagradas.

Não se duvide, repita-se, da qualidade, ao Ministério Público atribuída, de fiscalizar a atividade investigatória, nem de disponibilizar meios outros de perquirição. Acontece, no entanto, que alguns segmentos têm freqüentado lonjuras tais que assustam extremadamente os observadores, entranhando-se os agentes, com as mãos cheias, na atividade de colheita, produção e uso da própria prova e obtendo, nisso, a concordância de setores do Poder Judiciário, coonestando muita vez a Jurisdição o comportamento espúrio dos órgãos já mencionados. Chegou-se, hodiernamente, ao cúmulo do espiolhamento de confidências, nos parlatórios, entre advogados e constituintes presos, não se limitando tal espionagem àqueles postos sob suspeita mas havendo extensão genérica à plenitude dos consulentes, expurgando-se, depois, aqueles excrescentes, numa espécie de peneiramento imoral. Estas peculiaridades, aguarda-se com muita angústia, estarão presentes durante os debates já inaugurados a respeito no Supremo Tribunal Federal.

No fim de tudo, não se está a julgar um Habeas Corpus ou o recebimento ou não de denúncia por manipuladores da própria prova, mas sim, estará o Supremo Tribunal examinando questão supinamente complexa ligada à hipertensão do poder, cumprindo à Suprema Corte, então, estabelecer, com a prudência que vem demonstrando, as verdadeiras bases da adolescente democracia brasileira. Tudo se afunila na questão de saber se o mesmo representante do Ministério Público que investigou pode ofertar denúncia contra o investigado, sabendo-se que aquele investigador é, seguramente, testemunha da licitude daquilo que fez, podendo, então, precisar explicar os pormenores da investigação.

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