Alcance da propaganda

Pensamento político tem de ser expelido para o público

Autor

  • Amaury Silva

    é juiz de Direito em Minas Gerais e professor de Direito Penal e Processual Penal. Doutorando em Ciências da Comunicação mestre em Estudos Territoriais (ênfase em Criminologia e Direitos Humanos) e especialista em Direito Penal e Processual Penal.

18 de outubro de 2006, 6h00

Com a acentuação da sua generalidade, a propaganda política é entendida como canal para divulgação do pensamento e ideologia que visa influenciar, alcançar, manter, modificar ou confirmar o acesso ao poder do Estado, propagando também as iniciativas e operações realizadas em torno da gestão da coisa pública pela respectiva entidade administrativa. Dessa maneira, o destinatário da linguagem que envolve a temática, na expressão de José Jairo Gomes, é a “polis, aí compreendido tudo o que se refere à cidade, ao Estado e ao modo de governá-lo”1.

Compartimentando-se a densidade elástica da idéia de propaganda política, encontramos como tipo que suscita enormes reflexões e discussões por sua relevância no cenário da democracia representativa. A propaganda eleitoral, assimilada como o mecanismo disponibilizado aos partidos políticos, coligações e candidatos, para a divulgação pública do respectivo pensamento político e ideológico, alvitrando a captação do sufrágio do cidadão eleitor, em pleito que conduz ao preenchimento de cargo público, cujo acesso se dá em regra e preponderantemente pelo formato eletivo. E a relevância da propaganda eleitoral não se emudece ou passa sem percepção, quando os nervos e as intimidades das práticas políticas eleitorais vêm a público, revelando no atual momento histórico nacional, o custo da pureza de se acreditar na presunção de lisura dos contendores.

Claro que a ostentação da propaganda eleitoral em um ambiente com essa sensação sofre abalos que resultam em controles, aprimoramentos e condicionamentos, como é visível pela edição da Lei 11.300/06, mas que não podem de forma alguma implicar na construção de uma ideologia contra a liberdade de expressão e o direito político de informar e ser informado. Se isso acontecer, a lisura e o equilíbrio na disputa eleitoral ficarão detidos em cela sem luzes, com as chaves sob o controle de uma enteléquia democrática sem forças para se projetar.

Essa preocupação é ventilada em razão das perspectivas de controles que o próprio direito positivo eleitoral exara quanto à realização da propaganda eleitoral, já que a ausência de empatia com a modalidade da propaganda, pode elevar os níveis e intensidade desses meios, a priori, legítimos e corretos, mas assim não ovacionados, quando descortinado o mérito da restrição, se for esta deturpada.

Vigora no tocante à divulgação da propaganda política, com maior ênfase quando se fala em propaganda eleitoral, o princípio da liberdade, já que a manifestação do pensamento político é garantia individual inserida no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal. Com essa concepção, o artigo 245, caput, Código Eleitoral e artigo 39, caput, Lei 9.504/97, dispõem que qualquer ato de propaganda partidária ou eleitoral, em ambiente aberto, independe de licença da polícia.

Adverte sobre esse propósito, Pinto Ferreira: “Aos partidos é lícita a propaganda eleitoral. Ninguém poderá impedi-la, nem inutilizar, alterar ou impedir os meios lícitos nela empregados, daí decorrendo crimes eleitorais punidos pelo Código vigente (artigos. 331, 332 e outros), com o ilícito eleitoral, estudado por José Amado Nascimento em seu estudo ,O fenômeno eleitoral ”.2

Como realização do princípio da liberdade em matéria da propaganda eleitoral, logicamente que não se cogita de um campo sem limites ou condicionantes, porquanto, sua efetivação implica em cruzamento entre bens jurídicos e valores éticos pelo manancial de situações concretas que podem ocorrer. Justamente para se evitar que a regra da liberdade não represente afetação a outro rol de prerrogativas da sociedade e do cidadão, trabalha-se com a disciplina, dotando a propaganda eleitoral de critérios e diretrizes.

O artigo 243, inciso VIII, do Código Eleitoral, estipula que não será tolerada a propaganda que prejudicar a higiene e estética urbana, ou contrária a posturas municipais, ou a outra qualquer restrição de direito. Em seqüência, o artigo 244, inciso II e parágrafo único, incisos I a VI do mesmo código, afirma que se assegura aos partidos políticos registrados o direito de independentemente de licença da autoridade e pagamento de qualquer contribuição, instalar e fazer funcionar das catorze às vinte e duas horas, nos três meses anteriores ao pleito eleitoral, alto-falantes, ou amplificadores de voz nos locais que forem sua sede ou dependência, bem como, em veículos seus, ou que estiverem à sua disposição, em todo o território nacional, observando-se a legislação comum.

Assim, não poderá ser efetivada a propaganda a menos de 500 metros das sedes dos poderes Executivos e Legislativos nas três esferas, tribunais, hospitais e casas de saúde, escolas, bibliotecas públicas, igrejas e teatros, quando em funcionamento; e quartéis e outros estabelecimentos militares.


Por sua vez, o artigo 39, parágrafo 3º, incisos I e III parágrafo 4º Lei 9.504/97, consolidando essa restrição, estabelece que alto-falantes e amplificadores de som poderão ser acionados entre as oito e 22 horas, vedada a sua utilização em distância inferior a 200 metros daqueles organismos já citados. A nova redação conferida ao parágrafo 4º do indigitado dispositivo legal pela Lei 11.300/06 estabelece que a realização de comício e a utilização de aparelhagem fixa de sonorização pode se estender das oito às vinte e quatro horas. A Resolução 22.261/06 do TSE faz essa mesma estipulação no artigo 6º, VIII e 8º, II,parágrafo 1º, I, II, III e parágrafo 2º.

A exposição, ora elaborada em torno das vedações sobre a propaganda eleitoral, discorre com notoriedade que as leis municipais devem ser pesquisadas para se realizar a aferição quanto a eventual violação, o que, se acontecer, implicará na rejeição da propaganda, porquanto não se será lícita.

Um inicial raciocínio poderia levar a uma assombrosa conclusão de que toda a propaganda eleitoral irá depender de que a unidade territorial que compõe o município, por meio do direito positivo local, não deve restringir um determinado meio de propaganda que esteja a se pesquisar ou cogitar. Contudo, não se pode bitolar à legislação municipal, a existência e o direito ao exercício da propaganda eleitoral tanto para os partidos, coligações e candidatos, quanto para o destinatário ou alvo, isto é, a cidadania no direito de obter informação política.

Quando o direito eleitoral veda a propaganda que afronte dispositivo de lei municipal, respeita a independência administrativa do município e sua esfera de atuação como ente federativo autônomo, por intermédio da legislação que melhor anuncia seus interesses locais, competência essa prevista no artigo 30, inciso I, Constituição Federal. E essa dimensão também pode ser admitida quando um dos sobreditos dispositivos do arcabouço normativo eleitoral faz referência à obediência, à legislação comum, autorizando que essa expressão também se refira à legislação municipal, sem prejuízo dos outros contornos que expressem a legislação comum, como a civil, tributária e administrativa, etc..

Com esse quadro, a legislação municipal poderá ser erguida de modo impactante com a realização da propaganda eleitoral, fruto da própria disciplina local, ou mesmo como instrumental adrede para inviabilizar o próprio exercício da propaganda. Restrições com esse volume podem vir sob o enfoque de taxativa proibição nos finais de semana de funcionamento de alto-falantes, amplificadores de som em comitês, sedes de partidos, ou em veículos e realização de comícios, tendo como escopo uma “pseudo tranqüilidade”, ou ausência de poluição sonora.

É possível ainda se cogitar da vedação por lei municipal quanto à elaboração de propaganda eleitoral sob a forma de pinturas em muros, paredes ou fachadas de casas, ou afixação de bandeiras ou cartazes nesses locais, como respaldo ao conjunto urbano ou arquitetônico, mesmo em municípios que não sejam considerados como patrimônio histórico ou cultural. Do mesmo modo, pode se pensar na norma municipal para inibir a distribuição de volantes ou santinhos, proibindo essa prática sob o pretexto da necessidade de higiene pública. Outros enfoques podem ser tratados pela legislação municipal, tornando incompatível a propaganda eleitoral.

Em se verificando tais situações, estaremos diante da constatação de que o princípio da autonomia municipal é posto em linha de antagonismo com o princípio da liberdade política, no qual se insere a prerrogativa da propaganda eleitoral. Mostra-se assim inviável o sacrifício ou o aniquilamento de ambos ou de qualquer um deles, mesmo porque seus motrizes ensejam pontos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Enquanto o artigo 1º, caput da carta política de 1988, menciona o elo indissolúvel entre União, estados, municípios e Distrito Federal para aquela formação, a cidadania e o pluralismo político, como elementos basilares dessa organização dizem sobre a incompatibilidade de se querer amordaçar, engessar ou atrofiar a propaganda eleitoral.

Para a solução sem extremos desse fenômeno, a utilização do princípio da proporcionalidade se faz apresentar como liturgia única. Nesse sentido, confira-se o dizer de Paulo Bonavides: “Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais européias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, já fizeram uso freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos”.3


O critério da necessidade que legitima a solução pela proporcionalidade se revela por intermédio da inviabilidade de na hipótese cogitada como de concreto, não conviverem de modo harmônico os pontos originários dos princípios em tela, forjando-se assim nítida tensão no desenvolvimento da matéria eleitoral em comentário.

A limitação que for atribuída a um dos princípios não pode ser de monta ou expressiva, mas na justa medida para se buscar a harmonização que não se conseguiu pela aparição do entrechoque. Por último, é de se cogitar que não se utiliza o princípio da proporcionalidade para fazer perecer ou isolar em seus efeitos quaisquer dos princípios em voga.

O princípio da proporcionalidade é capaz de gerar o padrão do justo e adequado face às situações de interjeição provocadas pela perplexidade de não se saber que rumo seguir no conflito entre pontos jurídicos importantes e seletos, como ensina Guerra Filho: “A idéia de proporcionalidade revela-se não só um importante — o mais importante, como já propusemos aqui e em seguida reafirmamos — princípio jurídico fundamental, mas também um verdadeiro topo argumentativo, ao expressar um pensamento aceito como justo e razoável de um modo geral, de comprovada utilidade no equacionamento de questões práticas, não só de Direito em seus diversos ramos, como também em outras disciplinas, sempre que se tratar da descoberta do meio mais adequado para atingir determinado objetivo”. 4

A opção pela proporcionalidade no sentido de amenizar e mitigar os efeitos da legislação municipal na hipótese ventilada nesse estudo aponta de maneira plena pela prevalência da amplitude da realização da propaganda eleitoral, malgrado o conjunto da legislação municipal que tiver o objetivo de realizar as restrições enumeradas. Isso porque a colisão sobre direitos fundamentais é real, não se encontra apenas na consideração virtual; a contenção dos efeitos da legislação municipal não se revelará para todos os casos de sua abstratividade, mas unicamente no que concerne à hipótese de seu entrelaçamento com a legislação eleitoral de regência da propaganda, enquanto a preponderância do conteúdo normativo municipal sobre os aludidos itens da ordem jurídica eleitoral, seriam suficientes para esmagamento da garantia fundamental de expressão do pensamento político e acesso à informação, para um grupo indeterminado de cidadãos.

Enfim, a autonomia do município sequer seria arranhada com a queda dos limites de sua legislação frente à propaganda eleitoral, continuando inclusive a ser um dos componentes para rezar sobre sua confecção e execução, porém em um cenário de não comprometimento de sua essência.

Surge como oportuna essa reflexão porque, na busca e no empenho de se criar um quadro que supere a desolação dos repetidos escândalos políticos no país, quando atores de processos eleitorais dizem ser questão de nonada a ofensa à legislação eleitoral, a necessária conformação da propaganda eleitoral e seu financiamento a mecanismos legais, tidos como instrumentos eficazes e com aptidão para se regular a lisura e o equilíbrio na disputa eleitoral.

Pode fazer construir uma sensação no consciente coletivo de represália, ou retaliação à propaganda política, sobretudo na modalidade eleitoral, o que, longe de colaborar para o aperfeiçoamento do sistema no Brasil, poderá ser um inconveniente e indesejável retrocesso, já que o pensamento político cada vez mais ficará em zonas recônditas, quando o razoável seria expelí-lo para o alcance público, na construção da consciência individual do cidadão.

Notas de rodapé

1 – Propaganda Político-Eleitoral, Editora Del Rey, Belo Horizonte/MG, 2006, p. 6

2 – Código Eleitoral Comentado, Editora Saraiva, 4ª edição, p. 293.

3 – Curso de Direito Constitucional, 9ª edição, Malheiros, 2003.

4 – GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ensaios de Teoria Constitucional. Fortaleza: UFC, 1989.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!