Prioridades de atendimento

União não tem que arcar com fertilização in vitro

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10 de outubro de 2006, 7h00

Não é razoável exigir da União e dos estados recursos necessários à fertilização in vitro, já que o pedido não visa o interesse coletivo e não questiona a política pública de saúde. O entendimento é da juíza da Vara do Juizado Especial Federal Cível de Florianópolis que extinguiu o pedido de um casal que não pode ter filhos.

A decisão é da juíza Marjôrie Cristina Freiberger Ribeiro da Silva. Segundo ela, o cidadão brasileiro tem direito a receber tratamentos de saúde que visem à preservação da vida e da dignidade humana. No entanto, afirmou que tratamentos que não têm essa finalidade não podem ser exigidos do poder público de forma imediata. A juíza afirmou que a ação representou um confronto entre o direito à maternidade e a prerrogativa do Executivo de eleger as prioridades de atendimento.

A juíza também lembrou das carências da população brasileira em relação à educação, saúde e assistência social. Diante do quadro delineado, ela concluiu que não é razoável exigir do poder público o fornecimento de tratamento de reprodução assistida. Ela entendeu ainda que a ordem poderia significar tratamento desigual em relação às mulheres que estivessem na mesma situação e não têm acesso ao Judiciário.

“Não cuida a presente causa de um questionamento jurisdicional acerca da política pública a ser implementada. Não se trata de uma causa de cunho coletivo ou difuso, de interesse transindividual. A autora busca, na presente ação, a condenação dos entes públicos réus a uma prestação positiva em seu favor, individualmente”, concluiu a juíza ao negar o pedido do casal.

Leia a decisão

Dispensado o relatório (art. 38 da Lei nº 9.099/95 c/c o art. 1º da Lei nº 10.259/01).

Trata-se de ação em que a parte autora, XXX XXXXXXXX XXXXXXXX XX XXXXX XXXXXXXX, requer que o Estado forneça os medicamentos e realize os procedimentos necessários à realização de fertilização in vitro, tendo em vista infertilidade conjugal diagnosticada por médico.

Fundamentação

Preliminares

Ilegitimidade de parte passiva da União

Não prospera a alegação de ilegitimidade passiva da União.

É atribuição do Sistema Único de Saúde — SUS — a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, nos termos do artigo 5º, inciso III, da Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990. Na mesma legislação, resta expresso também que se inclui no campo de atuação do SUS a “assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”. Por outro lado, mais adiante, nos artigos 16 a 18 desse instrumento legislativo, estão arroladas as ações que competem à cada direção (nacional, estadual e municipal) do SUS, havendo especificação das atividades exercidas por cada um dos âmbitos de atuação do sistema. Contudo, dentre as ações apontadas nesses dispositivos, não há referência específica sobre a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, o que conduz à conclusão que as três esferas de ação do SUS são igualmente responsáveis pela sua prestação. Todos os entes da federação, que tomam frente à direção nacional, estadual ou municipal do SUS, assim, são legitimados passivos na ação em que se pleiteia procedimentos ou medicamentos que deveriam ser prestados, a princípio, por esse sistema.

Essa solidariedade na prestação do direito à saúde ficou evidenciado em decisão proferida no Egrégio Tribunal Regional Federal da 4a Região (publicado em 17/11/2004, p. 703, Juiz Relator: Valdemar Capeletti) que, analisando a legitimidade da União, expressou:

“ADMINISTRATIVO. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. AÇÃO ORDINÁRIA. EXCLUSÃO DA UNIÃO POR SUPOSTA ILEGITIMIDADE PASSIVA “AD CAUSAM”. REMESSA DO FEITO PARA A JUSTIÇA ESTADUAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AGRAVO REGIMENTAL. É consabido que a União desempenha, no plano financeiro, papel de expressão quase absoluta no Sistema Único de Saúde (CR/88, art. 198). A assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, regulada no art. 6o, inciso I, “d”, da Lei 8.080/90, não está tipificada nas competências previstas nos arts. 16 a 18 da mencionada Lei, para as direções nacional, estaduais e municipais do Sistema em questão; logo, há de caber, indistintamente, a qualquer das esferas políticas internas, porque evadida da diretriz de descentralização regulada no precitado art. 198, da Cr/88, em seu inciso I.”

A interpretação sistemática e teleológica da legislação supra-mencionada leva-nos a concluir, então, que o resguardo ao direito à saúde, revelado na obrigatoriedade da prestação de assistência terapêutica integral, deve ser suportado conjuntamente pelos três entes estatais. A norma, aliás, ao determinar a comunhão dessa responsabilidade por parte da União, Estado e Município, coaduna-se com o objetivo buscado no direito fundamental à saúde, pois possibilita maior garantia à sua efetivação.


Vale mencionar que a questão da legitimidade dos réus já foi tratada pela Egrégia Primeira Turma Recursal de Santa Catarina no processo nº 2004.72.95.05799-0 (Rel. Juiz Federal João Batista Lazzari, j. 17/11/2004), que decidiu:

“(..) A União tem legitimidade para figurar no pólo passivo, juntamente com o Estado de Santa Catarina e o Município de Camboriú, em decorrência da solidariedade prevista no texto constitucional na tutela da saúde e da vida de todos os cidadãos”.

Na mesma decisão, restou expresso que esse litisconsórcio será facultativo, já que a escolha contra quem quer litigar cabe à parte autora.

Rejeito, pois, a preliminar de ilegitimidade suscitada pela ré União.

Litisconsórcio passivo necessário do Município

O Estado de Santa Catarina alega que o Município, necessariamente, deve integrar a lide no pólo passivo, pois todos os entes da Federação, que compõem o SUS, devem ser demandados conjuntamente. Não prospera a preliminar, pelos motivos expostos no item anterior: o litisconsórcio, no presente caso, é facultativo, porque se trata de solidariedade passiva, cabendo à parte autora a escolha de quem pretende demandar.

Mérito

I — O direito fundamental à saúde e o princípio da separação dos poderes.

O direito à saúde, previsto especificamente no art. 6o, dentro do Capítulo afeto aos direitos sociais e, mais adiante, nos arts. 196 e 197 da Constituição Federal, subsume-se dentro da categoria do “direito à vida”, que é direito fundamental constante do cardápio constitucional de direitos fundamentais (art. 5º). Também está inserido dentre o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana expresso no art. 1º da Carta Magna. Portanto, deve ser compreendido como direito fundamental.

Embora revele, à primeira vista, um conteúdo programático, o que ensejaria dificuldades na sua prestação imediata, o direito à saúde, corolário do direito à vida, é direito fundamental, em relação ao qual não se pode obstaculizar sua prestação, quando, no caso concreto, restar evidenciada a ocorrência das circunstâncias que demonstrem a necessidade de sua realização.

Sobre a questão, elucida Ingo Sarlet, na obra “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”:

“(…)Cumpre relembrar, mais uma vez, que a denegação dos serviços essenciais de saúde acaba — como sói acontecer — por se equiparar à aplicação de uma pena de morte, sem crime, sem qualquer processo e, na maioria das vezes, sem a possibilidade de defesa, isto sem falar na virtual ausência de responsabilidade dos algozes, abrigados pelo anonimato dos poderes públicos. O que se pretende realçar, por ora, é que, principalmente no caso do direito à saúde, o reconhecimento de um direito originário a prestações, no sentido de um direito subjetivo individual a prestações materiais (ainda que limitadas ao estritamente necessário para a proteção da vida humana), diretamente deduzido da Constituição, constitui exigência inarredável de qualquer Estado (social ou não) que inclua nos seus valores essenciais a humanidade e a justiça.” (p. 302-3)

A despeito da necessidade de concretização do direito à saúde, haja vista sua fundamentalidade, poder-se-ia defender que o princípio da separação dos poderes impede que a sua efetivação se dê por meio do Poder Judiciário, o qual, em deferindo tal direito subjetivo, estaria exorbitando da sua órbita de atuação para imiscuir-se na função executiva do Estado, que demanda a observância das políticas públicas.

No entanto, o argumento também se mostra frágil em face do papel de que se revestem os magistrados em sociedades democráticas que buscam garantir a igualdade material dos cidadãos. Sobre a intervenção do Judiciário na realização dos direitos fundamentais, aliás, afirma Carmem Lúcia Antunes Rocha, no seu artigo “O juiz na nova ordem estatal” (in Perspectivas do direito público: estudos em homenagem a Miguel Seabra Fagundes (coord) Belo Horizonte : Del Rey, 1995, p. 256, apud Por uma Teoria dos Princípios : O princípio Constitucional da Razoabilidade, OLIVEIRA, Fábio Côrrea Souza de. Rio de Janeiro : Lumem Júris, 2003, p. 291), que:

“ o momento contemporâneo faz nascer o juiz-partícipe da sociedade; não o que lhe fica acima, não o seu espectador desinteressado e despreocupado (…) o juiz da sociedade pós-moderna é parte do processo sociopolítico e econômico da sociedade e, neste sentido, ele é governo do Estado, comprometido com políticas públicas, não as de um determinado governante, mas aquelas estabelecidas como objetivos e princípios constitucionais pelos quais ele se responsabiliza e se determina em sua conduta de prestador da Justiça material”.

O caso concreto ora apresentado relaciona-se ao Direito à Saúde, mas sob uma ótica diferente das ordinariamente apresentadas a julgamentos, motivo pelo qual será especificamente tratado.


II — Da (in)existência de um direito subjetivo ao tratamento de reprodução assistida custeado pelo Estado

O caso concreto se mostra peculiar em relação aos demais já tratados por este juízo em matéria de saúde e medicamentos, pois a autora não pugna pela cura de suas doenças (endometriose e aderência pélvica) a fim de garantir, para si, o bem-estar decorrente, simplesmente, de um estado de saúde física. Trata-se da busca pela saúde em um sentido mais amplo, como alega, compreendendo a utilização de recursos médicos que lhe permitam, não obstante suas limitações físicas, gerar um filho em seu próprio ventre.

A autora relata que o SUS oferece, gratuitamente, o tratamento de fertilização in vitro (indicado ao seu caso) apenas em alguns poucos centros de atendimento, nos quais não consegue se inserir nas filas de espera. Assim, a negativa de seu acesso ao sistema público de saúde seria uma afronta aos seus direitos constitucionais à igualdade, à dignidade, ao acesso universal e igualitário aos serviços de saúde, dentre outros.

Na esteira de normas internacionais sobre direitos humanos da sexualidade e reprodutivos, foi promulgada a Lei n. 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regulamenta o §7º do art. 226 da Constituição da República, tratando do planejamento familiar. Em seus artigos, essa lei inclui o planejamento familiar como parte integrante do conjunto de ações voltado ao atendimento integral e global da saúde (art. 3º, caput), determinando a todas as instâncias do SUS que promovam “a assistência à concepção e contracepção” (art. 3º, parágrafo único, I). Ademais, determina que, para proporcionar o planejamento familiar a todos, sejam disponibilizados os recursos técnico-científicos necessários à concepção e contracepção, garantida a liberdade de opção (artigos 4º, 5º e 9º).

Verifica-se, portanto, que no direito positivo brasileiro, desde a Constituição (art. 226, §7º) até a Lei Federal n. 9.263/96, é prevista a obrigação do poder público de propiciar aos cidadãos o acesso aos recursos científicos disponíveis a atender o direito de gerar ou filhos.

No curso das discussões acerca do papel do Estado no planejamento familiar, no direito fundamental ao exercício da sexualidade e da reprodução, tem sido dispensada mais atenção aos métodos de contracepção, como o fornecimento de pílulas anticoncepcionais, camisinhas, DIU’s, laqueadura de trompas etc. Isso porque, na atual conjuntura brasileira, em que a maior parte da população é pobre e dispõe de poucos meios materiais para criar seus filhos, a prioridade de ação governamental volta-se à contracepção. Os programas destinados a favorecer a concepção, com disponibilização de métodos de reprodução assistida, por sua vez, são exceção no sistema público de saúde brasileiro. Como relata a autora, há apenas dois lugares que realizam o procedimento pleiteado pelo SUS (em São Paulo). Os motivos para isso podem ser vários: alto custo dos procedimentos, não essencialidade para a manutenção da vida, prioridade em outras ações de saúde. Trata-se de atividade estatal que se mostra insuficiente para atender à demanda.

Apresenta-se, agora, um caso difícil, um típico hard case, em que se confrontam: o eventual direito da autora à maternidade e a prerrogativa do Poder Executivo de eleger as prioridades no atendimento à Saúde.

A possibilidade de o juiz adentrar no mérito das escolhas administrativas na elaboração de políticas públicas que objetivam a implementação de direitos prestacionais (como o que se objetiva na presente ação) tem sido tema de debate entre os estudiosos do Direito.

Todos os poderes, no contexto atual, são constituídos no âmbito de um sistema constitucional rígido e vinculativo. Na constituição estão inseridos os direitos fundamentais, que têm papel central no Estado Democrático de Direito e são, inclusive, elemento de sua legitimação. A Administração Pública, portanto, nessa perspectiva, tem sua atuação voltada à implementação desses direitos, que no mais das vezes, possui caráter prestacional, isto é, exigem atuação positiva do Estado para sua efetivação.

A juridicidade dos direitos fundamentais sociais, como são chamados os direitos prestacionais em face do Estado, é pouco discutida. Esses direitos são normas e não podem ser contrariados pelo Poder Público. A questão está na possibilidade de o cidadão exigi-los judicialmente quando não oferecidos pelo Estado.

Em se tratando de uma ação que visa a tutelar direito individual, há de se estabelecer a existência em favor da autora de um direito subjetivo à prestação estatal.

Analisando os preceitos constitucionais de 1967 concernentes à justiça social, Celso Antônio Bandeira de Mello (Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. Revista de Direito Público – RDP, São Paulo, n. 57/58, p. 233-255, janeiro-junho, 1981, p. 238, em CUNHA, Célia Iraci da. Direitos Fundamentais e Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. Monografia -Graduação em Direito. Centro de Ciências Jurídicas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2004) lembra que, mesmo os princípios de conteúdo acentuadamente ideológico-programático são normas jurídicas e, portanto, possuem alguma eficácia, sempre irradiando efeitos jurídicos. Ocorre, no entanto, que “as normas constitucionais diferem entre si quanto ao seu teor de aplicabilidade imediata ou quanto à consistência dos direitos que outorgam”.


O autor apresenta uma classificação das normas constitucionais concernentes à justiça social para verificação de sua força jurídica cujo critério é a consistência e amplitude dos direitos imediatamente resultantes para os indivíduos, de modo que se saibam quais direitos podem ser invocados desde logo pelos interessados, isto é, sua posição jurídica perante a Administração Pública (BANDEIRA DE MELLO, p. 239-240).

As normas constitucionais podem atribuir posições jurídicas aos administrados conforme a maneira que são postas:

a) A norma constitucional pode outorgar um poder jurídico ao cidadão, “uma situação subjetiva ativa cujo desfrute independe de uma prestação alheia, vale dizer, cuja satisfação não se resolve no cumprimento de uma obrigação a ser solvida por outrem” (BANDEIRA DE MELLO, p. 242). Trata-se de direitos propriamente ditos, na linguagem corrente, que criam uma posição jurídica imediata, de plena consistência ao administrado, prescindindo de qualquer regramento subseqüente. O autor exemplifica esses direitos com o direito de ir e vir, à inviolabilidade de domicílio, à propriedade, à vida etc. Em suma, trata dos direitos de liberdade.

b) A norma compõe, em favor do administrado, uma utilidade concreta, suscetível de fruição imediata dependente de prestação alheia. Nesse caso, a norma desenha a conduta do devedor da prestação, em geral o Estado. O exemplo dado é o do art. 176, §3º, V, da Constituição de 1969 (cujo similar na constituição de 1988 está no art. 210, §1º), em que se estabelece: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio” (BANDEIRA DE MELLO, p. 242). Assim, independente de regra subseqüente, a constituição garante, de imediato, o acesso ao ensino religioso, caracterizando a conduta a ser realizada, bem como aquele que é obrigado a prestá-la.

Verifica-se do exposto que em ambos os casos até agora tratados — outorga de ‘poder’ e outorga de direito (graças à suficiente descrição da conduta alheia que o satisfaz) — a posição jurídica do administrado é plenamente consistente, desde a regra constitucional. Ela atribui, de imediato, nas duas hipóteses a) o desfrute positivo de uma concreta utilidade e b) o poder jurídico de exigir este desfrute, se turbado por terceiro ou negado por quem tinha que satisfazê-lo (BANDEIRA DE MELLO, p. 243).

c) A norma expressa uma finalidade a ser alcançada obrigatoriamente pelo poder público sem indicar os meios para tanto, isto é, sem especificar as condutas a serem adotadas para satisfazer o bem jurídico protegido. Exemplos desse tipo de norma são as que estatuem a família tendo proteção do poder público, a função social da propriedade como princípio da ordem econômica. Neste caso, não é conferido ao administrado o direito à fruição de algo ou a exigir tal fruição.

Conclui-se que, segundo Bandeira de Mello, tais normas possuem normatividade, pois quaisquer normas de hierarquia inferior que as contrariem ou comportamentos a elas antagônicos são inconstitucionais. Assim, por força dos enunciados de direitos fundamentais sociais, por mais genéricos e abstratos que sejam, a Administração Pública terá de agir em sintonia com seus preceitos e suas diretrizes, e o Judiciário terá de interpretar as questões que lhe sejam postas tendo presentes os vetores constitucionais. Logo, de imediato, o administrado, perante essas normas, tem o direito a opor-se judicialmente contrário ao cumprimento de regras ou a comportamentos a elas contrários, bem como a obter do Judiciário decisão em consonância com os ditames constitucionais.

Como se vê, há que se enquadrar o direito prestacional na posição jurídica que confere ao administrado, no caso concreto.

O direito pleiteado a obter o pagamento, pelo poder público, de tratamento de reprodução assistida, não se emoldura no Direito à Saúde propugnado pelo Constituição nos artigos 6º e 196. Explica Ingo Sarlet (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 314-316) que, de fato, é tortuosa a tarefa de reconhecer o direito subjetivo de cada cidadão a prestações na área de Saúde, porque, entre outros motivos, é difícil delimitar o conteúdo desse direito, ou seja, se ele deve ser global (atendendo a todas as pessoas, independentemente de sua renda) ou restrito aos carentes de recursos financeiros; se se restringe apenas aos serviços essenciais de assistência médica ou deve abranger atendimento odontológico, psicológico etc; se a prestação corresponde a tratamentos no padrão mínimo ou devem ser os serviços gratuitos da melhor qualidade, de última geração.

Em minhas decisões anteriores a respeito dos medicamentos e tratamentos de saúde pleiteados, tenho tomado em conta, nesses critérios expostos por Ingo Sarlet, parâmetros da seguinte ordem: devem ser fornecidos àqueles que não apresentem condições financeiras para arcar com seus custos por si só e/ou por sua família; os serviços a serem fornecidos pelo Estado são aqueles que visam a promover a Saúde do ser humano no sentido de proteger a Vida e a Dignidade da Pessoa Humana, valores esses de maior relevância no ordenamento jurídico; o fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde pelo Estado deve se pautar pelo princípio da economicidade, de modo que não se pode exigir determinadas prestações, quando há outras similares de menor ônus aos cofres públicos. O fundamento disso está no fato de que os princípios constitucionais devem ser harmonizados. Os princípios que regem a Administração Pública, como a moralidade, impessoalidade, eficiência, têm supremacia constitucional e devem se coadunar com os direitos fundamentais à Vida, à Saúde, à Dignidade. Cabe ao Estado fornecer os meios de vida do cidadão, que não consistem apenas no direito a não ser morto, com cunho negativo, mas compreendem também feição positiva, de prestar os meios necessários à subsistência aos que não conseguem provê-los por si. Nesse mister, o ente público tem o dever, diante de todos os cidadãos, titulares do direito a um Estado probo e eficiente, de empregar apenas os meios necessários para cumprir o seu papel, sem desperdício de recursos e gastos desnecessários.


No plano normativo, do dever-ser, o Estado brasileiro tem sua atuação voltada a proporcionar a igualdade material entre os cidadãos, bem como promover o desenvolvimento nacional, com o objetivo de realizar a justiça social. A realidade, no entanto, conforme os índices sociais, está longe dos ideais propugnados na Constituição. Conforme relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — PNUD, em que se auferiu o Índice de Desenvolvimento Humano — IDH brasileiro no ano de 2000, o país ocupava 73º posto dentre as nações pesquisadas, apesar de ser a 12ª economia do mundo industrializado e ter a 60ª maior renda per capita do mundo (SCAFF, Fernando Facury. As contribuições sociais e o princípio da afetação. In: MARTINS, Ives Gandra (Coord.). Pesquisas Tributárias Nova Série. n. 9. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 220, em CUNHA, Célia Iraci, obra citada).

Em termos de educação e expectativa de vida no Brasil, o relatório assim está posto, literalmente:

“No caso da Educação, o problema reside no estoque de analfabetos do país. Com uma taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais de 85,2%, os brasileiros ocupam a 96ª colocação entre 173 países. Apesar de ter conseguido aumentar em quase 10% a taxa de alfabetização desde 1985, o Brasil teve um progresso mais lento e acabou ultrapassado por outros países que estavam mais atrás, como o Líbano. Não fosse isso, o Brasil estaria mais bem colocado no ranking de Educação, já que tem a 43ª melhor taxa de matrícula bruta do mundo.”

No caso da expectativa de vida, a defasagem em comparação aos outros indicadores é mais alta. O Brasil tem a 103ª maior expectativa de vida do planeta, menor do que a de países com a metade de sua renda per capita, como Filipinas, ou que estão mais de 30 posições abaixo da brasileira na classificação do IDH, como El Salvador ou Argélia. Tendo partido de um patamar muito baixo, o Brasil conseguiu somar 7,7 anos à esperança de vida da geração nascida entre 1995 e 2000, se comparada com a de seus pais. Deste modo, os avanços ficaram aquém do necessário para galgar posições no ranking mundial. O Peru, por exemplo, partindo de um número ainda mais baixo, conseguiu somar 12,6 anos à expectativa de vida de seus habitantes nos últimos 25 anos e ultrapassou os vizinhos nessa dimensão do desenvolvimento humano.”

“(…) a relativamente baixa esperança de vida ao nascer do brasileiro pode ser explicada por vários fatores, alguns históricos, como a mortalidade infantil (de 32 óbitos por mil nascidos vivos, que é a 93ª menor do mundo), outros que se intensificaram mais recentemente, como as mortes violentas, principalmente por homicídio, que fazem com que a expectativa de vida masculina seja oito anos menos do que a feminina. Por conta desses riscos, a chance de um menino brasileiro nascido entre 1995 e 2000 não atingir os 65 anos de idade é de 40%, enquanto para uma menina nascida na mesma época essa chance cai para 25%. Para se poder comparar, um jovem nascido na Costa Rica na mesma época correrá praticamente a metade do risco (20%) de não chegar à terceira idade” (SCAFF, p. 220-1).

Esses dados vêm reforçar o que é notório: o Brasil é carente de políticas básicas de educação que confrontem o analfabetismo e de saúde que combata a mortalidade infantil e a baixa expectativa de vida dos mais pobres. Nesse sentido, tendo em consideração a realidade brasileira, considero que o CIDADÃO TEM DIREITO À PRESTAÇÃO DE TRATAMENTOS DE SAÚDE QUE VISEM À PRESERVAÇÃO DA VIDA E DA DIGNIDADE HUMANA. Tratamentos outros que não tenham o fim de garantir esses direitos não se enquadram em prestações de saúde como direito subjetivo do cidadão, na classificação de Celso Antônio Bandeira de Mello exposta, como uma utilidade que possa ser exigida de imediato.

No caso, o procedimento de reprodução assistida requerido não tem o condão de garantir o direito à vida da autora. Não há risco de morte em caso de a autora não se submeter aos procedimentos pleiteados bem como aos medicamentos requeridos, nem em sua saúde e qualidade de vida.

Não se diga, tampouco, que é inerente à dignidade humana a condição de procriar, ter filhos. A maternidade não se restringe à natural, havendo a possibilidade de filiação civil, pela adoção.

Não se ignora que se trata de um estado não saudável o do casal que, em idade fértil, não consegue engravidar, mesmo mantendo relações sexuais sem método contraceptivo por determinado espaço de tempo. No entanto, como assinalado, tal estado não caracteriza vilipêndio à Vida e/ou à Dignidade.

Tampouco se deixa de reconhecer o estado de frustração em que pode se encontrar o casal, que por questões financeiras deixa de ter acesso a um serviço prestado em poucos lugares pelo Poder Público. A questão do acesso a esse serviço de reprodução assistida, no entanto, se insere em uma política pública que se mostra insuficiente ou inexistente, como adiante se tratará. O fato é que o direito subjetivo ao tratamento pleiteado a autora não possui.


O direito ao planejamento familiar, previsto na citada Lei n. 9.263/96, compreende o fornecimento pelo Estado de métodos e técnicas de concepção e contracepção. No entanto, esse direito, da forma como está positivado, representa um direito fundamental consistente em uma finalidade a ser alcançada obrigatoriamente pelo poder público sem indicar os meios para tanto, isto é, sem especificar as condutas a serem adotadas para satisfazer o bem jurídico protegido. Desse modo, não se consubstancia um direito subjetivo ao administrado de exigi-lo do poder público, como pondera Celso Antônio Bandeira de Mello em sua retrocitada classificação. Não se nega, com isso, juridicidade e força normativa ao direito. Não poderia o Estado agir contrariamente a esse direito, impedindo, por exemplo, o exercício dessa atividade de reprodução assistida. O que não há é uma política pública voltada à efetivação desse direito, dessa norma geral (que não outorga um direito subjetivo, apenas uma diretriz de ação), de modo que não é a autora titular individual de um direito à prestação.

As políticas públicas são atividades estatais voltadas à consecução de um fim atinente ao Estado. Compõem-se de normas legislativas e/ou administrativas, atos administrativos concretos, decisões, como define Rômulo Pizzolatti:

(…) política pública pode ser definida como atividade administrativa baseada em orientação geral, inserida na função de planejamento, que visa, intervindo na ordem social, a alcançar, mediante decisões, atos executivos e procedimentos administrativos, determinados objetivos de longo prazo, estipulados em normas-objetivo ou diretrizes normativas (PIZZOLATTI, Rômulo. O controle jurisdicional do mérito da atividade administrativa. Tese (Doutorado em Direito). Centro de Ciências Jurídicas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2001. p. 172, em CUNHA, Célia Iraci da, obra citada).

Desse incurso acerca das políticas públicas, depreende-se que há, no Estado brasileiro, um princípio de política pública relacionada à reprodução assistida como instrumento de planejamento familiar. Diz-se um princípio, um início, porque as normas gerais estão instituídas, quando se lê na Constituição que “o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito” (art. 226, §7º). Poder-se-ia compreender, juntamente com as normas da Lei n. 9.263/96, que ao Estado cabe disponibilizar os meios médicos necessários para que todos tenham acesso ao planejamento familiar, de forma negativa – com métodos contraceptivos – e também positiva – com tratamentos de reprodução assistida. De fato, essa é a diretriz maior de uma política que não dispõe ainda de regulamentação, identificação de critérios de atendimento, dotações orçamentárias, alocação de recursos financeiros, licitação para escolha dos fornecedores e todos os demais atos necessários à sua concretização.

No que se refere ao direito dos cidadãos a prestações administrativas, García de Enterría apresenta a posição do tema, então em vigor na doutrina e jurisprudência, de que tais declarações no texto constitucional não possuem a precisão e concretude necessárias a servir de base a uma exigência. Comentando a disposição do tema na constituição espanhola, diz que tais declarações “não definem, pois, nem obrigações propriamente tais dos entes públicos, nem direitos subjetivos do cidadão com relação a tais prestações, senão ‘determinações de fins do Estado’, próprias do Estado Social de Direito” (GARCÍA DE ENTERRÍA, GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 790, em CUNHA, Célia Iraci da, obra citada).

Tratando da criação e organização do serviço público, García de Enterría subjuga as autorizações constitucionais e legais à discricionariedade administrativa, de modo que não possui o cidadão um direito exigível jurisdicionalmente à sua implementação efetiva. Entretanto, se o legislador utilizar uma linguagem mais imperativa, a situação do administrado se torna mais protegida, prevendo-se, inclusive, o direito a uma ação de impugnação ao orçamento que não contemple destinação de recursos ao suprimento de serviços mínimos.

O direito do cidadão ao serviço público adquire maior solidez, para o autor, quando já implantado o serviço e iniciado seu funcionamento. O acesso ao serviço há de respeitar o princípio da igualdade, igualdade esta que tem, não obstante, um caráter relativo, na medida em que atua em relação a grupos ou categorias de usuários e, certamente, a partir do cumprimento, pelos mesmos, dos requisitos em cada caso previstos com caráter geral em atenção a natureza mesma do serviço e a suas concretas possibilidades de funcionamento (art. 5º da Lei Orgânica que regula o Estatuto de Centros Escolares de 19.6.80: garante-se “a liberdade fundamental de eleição”) (GARCÍA DE ENTERRÍA, 1991, p. 795).


Não cuida a presente causa de um questionamento jurisdicional acerca da política pública a ser implementada. Não se trata de uma causa de cunho coletivo ou difuso, de interesse transindividual. A autora busca, na presente ação, a condenação dos entes públicos réus a uma prestação positiva em seu favor, individualmente. O que se reconhece, agora, é que a autora não tem direito a essa prestação, pois não é titular de um direito subjetivo, diante da falta de uma política pública de reprodução assistida fornecida gratuitamente. Tampouco se verifica a ofensa ao acesso ao serviço, ao princípio da igualdade, pois a autora não comprovou que tenha sido preterida no atendimento de serviço já implantado.

III — Aplicação do princípio da ponderação de interesses

Não fossem todos os argumentos expostos, há que se ter em conta que diante da finitude dos recursos financeiros no âmbito do Estado, a implementação dos direitos fundamentais de caráter prestacional que demandam custos financeiros deve cingir-se ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Esse critério lecionado por Robert de Alexy (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, em CUNHA, Célia Iraci da, obra mencionada), chamado método ponderativo, visa a conciliar a escassez de recursos materiais e o cumprimento de direitos fundamentais sociais. Foi aplicado em decisão paradigmática da Corte Constitucional Federal alemã, versando sobre o acesso ao ensino superior, de modo que a prestação requerida deve ser aquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Assim, mesmo havendo recursos, somente se pode exigir do Estado o que estiver nos limites do razoável.

Diante das necessidades sociais apresentadas, com carências em vários serviços públicos básicos de educação, saúde, assistência social, não se mostra razoável exigir do poder público o fornecimento de tratamento de reprodução assistida. Não se observa, aí, um princípio tão relevante ao ordenamento jurídico, como a Vida, a justificar a subversão de princípios constitucionais de elevada envergadura, como a obediência às competências legislativa — na consecução do orçamento público — e executiva — ao regulamentar o serviço, bem como o tratamento anti-isonômico que o deferimento do pleito resultaria, tendo em vista as demais mulheres que se encontrassem na mesma situação e não tivessem acesso ao serviço por não terem conseguido chegar ao Poder Judiciário.

Em suma, por não possuir a autora direito subjetivo à prestação estatal de métodos de reprodução assistida não fornecidos pelo Poder Público à população em geral, o pleito deve ser julgado improcedente.

Dispositivo

Isso exposto, rejeito as preliminares e julgo IMPROCEDENTE o pedido, extinguindo o processo com exame do mérito, na forma do art. 269, I, do Código de Processo Civil.

Sem condenação em custas e honorários advocatícios, de acordo com o art. 55 da Lei nº 9.099/95 c/c o art. 1º da Lei nº 10.259/01.

Havendo recurso tempestivo e acompanhado das custas devidas, independentemente de intimação (art. 42, § 2º, da Lei nº 9.099/95), recebo-o, desde já, no efeito devolutivo, intimando-se a outra parte para contra-razões, no prazo de 10 (dez) dias. Após, remetam-se à Turma Recursal.

Marjôrie Cristina Freiberger Ribeiro da Silva

Juíza Federal Substituta na titularidade do Juizado Especial Federal Cível

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