Liberdade incondicional

Entrevista: Lourival J. Santos, advogado

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8 de outubro de 2006, 7h00

Lourival J. Santos - por SpaccaSpacca" data-GUID="lourival_santos.jpeg">Não há nada que justifique censura à imprensa — muito menos a censura prévia. A Constituição de 1988 não só assegura a liberdade de expressão, como proíbe a edição de qualquer instrumento legal que cerceie a livre manifestação das idéias. Em mais de 20 anos de militância de Direito de Imprensa, o advogado Lourival J. Santos só fez aumentar sua fé na liberdade de expressão e sua aversão à censura.

Censura não serve nem como castigo já que, se aplicada, ela estaria punindo um suposto crime que não aconteceu. O que não significa um aval à irresponsabilidade do jornalista. A imprensa pode escrever o que quiser, mas responde por cada palavra que escreve.

Em tempos em que a privacidade individual se vê crescentemente ameaçada pela escalada da publicidade e pela espetacularização da mídia, ainda assim, o advogado não vê motivos para impor limites à livre manifestação das idéias. “O direito à privacidade e a liberdade de expressão não são princípios conflitantes”, defende.

Para Lourival, acima de tudo está o interesse público. “E não podemos pensar que informação de interesse público é apenas política, economia e cultura”, ressalta. “Também é de interesse público as notícias sobre celebridades e futilidades”. Ele demonstra isso na vida prática, defendendo com o mesmo ardor a Veja e a Caras, os melhores exemplos de revistas dos dois segmentos de imprensa.

Considera-se em boa companhia na defesa sem fronteiras da liberdade de imprensa. Cita como paladinos da mesma bandeira os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, que em recente entrevista socorreu-se de Caetano Veloso para dizer que em matéria de imprensa “é proibido proibir”.

Formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Lourival especializou-se em Direito Empresarial, mas acabou enveredando por essa seara e tornou-se referência em Direito de Imprensa. Depois de 12 anos à frente do Departamento Jurídico da Editora Abril, abriu seu próprio escritório — o Lourival J. Santos Advogados. Sua experiência na Abril, como advogado dos jornalistas da ousada revista Veja encerra uma das mais ricas experiências que um profissional pode acumular nesse campo.

Lourival deu esta entrevista à Consultor Jurídico no auge da novela “Daniela Cicarelli namorando na praia”. Se praticou o voyeurismo que contaminou homens e mulheres em todas as partes do mundo, ele disfarçou com maestria. Comentou o caso dentro do mais estrito sentido jurídico e jornalístico. E concluiu que a exibição do vídeo apimentado é legal.

Participaram da entrevista os jornalistas Maurício Cardoso e Priscyla Costa.

Leia a entrevista

ConJur — Qual é o limite entre a liberdade de expressão e o direito à privacidade?

Lourival J. Santos — Não vejo qualquer tipo de conflito ou antagonismo entre os dois princípios, que foram previstos no mesmo título da Constituição. Ambos são princípios pétreos e consagram direitos e garantias individuais e coletivas. Há decisões judiciais que destacam a existência de conflitos entre os dois princípios. Entendem que o direito da personalidade pode frear a plena liberdade de expressão, de comunicação. O que não pode é o emprego da censura na liberdade de expressão. Liberdade de expressão significa liberdade sem censura, sem barreiras. Quem desrespeitar um direito da personalidade, deverá ser punido com severidade, mas isso não significa que esse direito possa cercear a liberdade de expressão. Este aparente conflito tem de ser entendido no contexto histórico que gerou a Constituição de 1988.

ConJur — O que o senhor quer dizer com isso?

Lourival J. Santos — A Constituição de 88 foi promulgada depois de passarmos pelo AI 5, o ato mais censório e autoritário que se tem notícia na história política do país. Esse foi o clima que acolheu a promulgação da Carta de 88, que veio como uma carta de alforria política, com uma visão um tanto reativa. Pode haver excesso do intérprete na valoração dos direitos da personalidade, até em razão desse clima político que antecedeu a Carta, mas isto não significa que tais direitos possam cercear a liberdade de expressão no país.

ConJur — No caso concreto, a Daniela Cicarelli pode namorar na praia?

Lourival J. Santos — A praia é um local público e não um ambiente privado que o fotógrafo, eventualmente, tivesse invadido. Não se pode impedir que uma pessoa, famosa ou não, namore em local público. Mas não se pode impedir que este fato vire um furo jornalístico. Falou-se muito que a imprensa foi invasiva. Não entendo assim.

ConJur — Mas ela não tem direito de cobrar pelo uso de sua imagem?

Lourival J. Santos — Entendo que não. No caso Cicarelli, o fato foi jornalístico. É bom destacar que a imprensa não tem apenas o direito de publicar. Ela tem o dever de publicar. E não é um dever moral de publicar, é um dever jurídico. Até porque o cidadão tem o direito sagrado de ser informado sobre todos os assuntos de seu interesse. Há pouco tempo, Chico Buarque foi fotografado em uma praia do Rio de Janeiro beijando uma jovem. Se fosse uma pessoa desconhecida passaria despercebido. Como ele é artista famoso, a imprensa deu o furo de reportagem. O mesmo aconteceu com a Cicarelli.


ConJur — Mesmo quando o objeto da notícia, como é caso do namoro da Cicarelli, não tem interesse público?

Lourival J. Santos — O namoro da Cicarelli tem interesse público. Não podemos falar que só têm interesse público as informações de política, economia ou cultura. Também a imprensa que trata de televisão, entretenimento, celebridades, eventos sociais é de interesse da população. Há pessoas que seguem de perto e com muito interesse os acontecimentos da vida do seu ídolo, os acontecimentos da vida das pessoas que ela admira.

ConJur — E isso é interesse público?

Lourival J. Santos — É de interesse público, é de interesse da população. Existem revistas e jornais dirigidos a esse determinado público e com notícias dessa natureza. Não se vê toda hora, em qualquer lugar, uma apresentadora de televisão namorando na praia.

ConJur — Uma pessoa pública em um lugar público não tem direito a privacidade?

Lourival J. Santos — Não há que se falar em privacidade quando a pessoa se expõe em local público. A pessoa pública tem seus direitos de personalidade que devem ser respeitados. A imprensa, porém, não pode ser impedida de registrar a sua aparição em público. Há de se entender que o jornalismo não é feito apenas de texto. Ele é ilustrado com fotos, com flagrantes. A informação visual, às vezes, fala muito mais do que o texto.

ConJur — Estamos falando do uso jornalístico da informação. Quais as regras para o uso comercial da imagem?

Lourival J. Santos — O uso comercial não pode ser feito sem a devida autorização, sem a devida negociação. Segundo o jurista alemão Rudolf Von Ihering, a imagem é a emanação do eu de cada pessoa. O que identifica o indivíduo é a imagem. No entanto, a imagem, desde que projetada em corpo fixo, passou a ser um bem de comércio. No caso Cicarelli, pelo que sei, não houve utilização comercial de sua imagem, mas tão somente a ilustração de uma matéria jornalística sobre seu encontro na praia.

ConJur — Qual é o limite entre o comercial e o jornalístico?

Lourival J. Santos — Não é uma questão de limite. O uso comercial não pode ser confundido com a ilustração jornalística. A utilização comercial de uma imagem caracteriza-se quando a mesma é vinculada a um determinado produto com a finalidade de incrementar a sua venda, tornar o produto comercialmente mais atraente ao público. No jornalismo, a imagem apenas ilustra o fato, a notícia, e não tem qualquer caráter comercial, ainda que se saiba que um bom furo de reportagem possa incrementar as vendas do jornal ou da revista.

ConJur — O homem público tem menos direito à privacidade do que o cidadão comum?

Lourival J. Santos — Não, mas o homem público tem algumas peculiaridades. Ele tem que entender que, por ser público, coloca a sua imagem mais à disposição da sociedade. A divisão entre vida pública e vida privada é muito tênue. Ele tem todo direito à privacidade, direito à honra e direito à imagem, mas o seu campo de privacidade fica mais restrito. Há maior interesse da população. Eu diria que há quase um dever da população de observar os atos do homem público.

ConJur — Existe alguma brecha legal para se praticar a censura à imprensa no Brasil?

Lourival J. Santos — A Constituição proíbe, de forma declarada e expressa, a edição de qualquer lei que possa constituir barreira ou cerceamento da liberdade de expressão. Até porque a censura não é uma punição a quem cometeu algo errado. Ela é um obstáculo à livre manifestação de opinião. O cidadão tem de ter a liberdade até para dar uma opinião errada sobre qualquer assunto. Depois ele poderá ser punido em razão disso. O julgador não pode entender que a liberdade é um instrumento do forte contra o fraco. O grande beneficiário da liberdade é o próprio indivíduo. Nós lutamos por ela.

ConJur — Mas tivemos vários casos de censura prévia por ordem judicial. Não é censura do mesmo jeito?

Lourival J. Santos — Sim, tivemos censura prévia depois da promulgação da Constituição chamada cidadã. No passado recente, tivemos casos emblemáticos de censura prévia da imprensa. O caso do [ex-governador do Rio de Janeiro Anthony] Garotinho e do [ex-governador do Distrito Federal, Joaquim] Roriz, entre outros casos famosos. Já, mais recentemente, o José Genoíno [ex-presidente nacional do PT] não teve êxito na ação que moveu para que sites retirassem do ar citações a seu respeito que ele considerou ofensivas. Fui advogado de alguns órgãos de imprensa que sofreram censura prévia e, felizmente, revertemos a situação nos tribunais regionais e superiores. Esses casos de censura são muito sérios.

ConJur — Mas essa é uma tendência da Justiça brasileira, de modo geral?


Lourival J. Santos — Não. Hoje se vê uma posição muito forte no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça — representados por grandes nomes como os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, o Edson Vidigal [ex-ministro do STJ] — favorável à liberdade de expressão sem qualquer censura. O ministro Marco Aurélio, há pouco tempo, concedeu entrevista em que citou trecho da música do Caetano Veloso É proibido proibir. Ele dizia: “na questão da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa, é proibido proibir”.

ConJur — O ministro Cezar Peluso [do STF] disse que a liberdade de imprensa pressupõe o direito de resposta. O senhor concorda com isso?

Lourival J. Santos — A Constituição fala em direito de resposta proporcional ao agravo. Para que haja o direito ao pedido de resposta deve haver condição legal para isso. Não é dizer que toda matéria jornalística possa gerar direito de resposta. Se ela contiver acusações indevidas, erros ou falseamento de verdades, as pessoas envolvidas terão direito de resposta sobre ela. Além da previsão constitucional, o direito de resposta é também assegurado pela Lei de Imprensa (5.250/67). Se o ministro disse que o direito de resposta independe desses pressupostos, eu discordo. Porém concordo se foi dito que a resposta deverá ser concedida se houver agravo.

ConJur — Precisamos de outra Lei de Imprensa? Ou não precisamos de nenhuma Lei de Imprensa?

Lourival J. Santos — Não precisamos de uma nova Lei de Imprensa. A que está em vigor é da época do regime militar, mas não é de todo ruim. Tem algum ranço autoritário, mas de uma forma geral não é totalmente desprezível. Ela regula o pedido de resposta, o pedido de explicações, os crimes contra a honra e, no aspecto da responsabilidade civil, impõe parâmetros para a fixação de indenização por dano moral, o que não é desfavorável à liberdade.

ConJur — Como a aplicação da figura do dano moral afetou a imprensa?

Lourival J. Santos — O dano moral veio para o sistema legal brasileiro mais por conta de influências externas, das doutrinas italiana e francesa que foram as pioneiras nessa área. O sistema jurídico brasileiro não admitia com tranqüilidade a indenização por dano moral. O jurista Pedro Lessa, que era ministro da Suprema Corte do Brasil na primeira metade do século passado, foi um dos primeiros grandes defensores do dano moral no país. De um modo geral, entendia-se que o ferimento à intimidade ou à honra não se corrigia pelo pagamento em dinheiro. Pagava-se em dinheiro as indenizações por dano material, mas jamais por dano moral. O dano moral foi previsto no Código de 16, coordenado por Clóvis Beviláqua, sem que ao mesmo tivesse sido dado muita ênfase. Leis especiais previram o dano moral, como a Lei de Imprensa de 67.

ConJur — Na Lei de Imprensa, há previsão de tarifação para o dano moral?

Lourival J. Santos — Sim, embora o entendimento corrente é de que esta previsão não foi recepcionada pelo texto constitucional. Alguns doutrinadores brasileiros fundamentaram-se na legislação externa para concluir que a natureza das indenizações por dano moral não tinham apenas o aspecto da reparação, mas também o caráter punitivo. Nos Estados Unidos o dano é punitivo, mas o sistema legal brasileiro não comporta esse caráter. A própria Constituição ao falar que a resposta deve ser proporcional ao agravo demonstra que o legislador quis assegurar o caráter da proporcionalidade. Com base nisso o Superior Tribunal de Justiça avocou para si a competência para disciplinar as indenizações por dano moral. Hoje há maior equilíbrio e ponderações nessas fixações.

ConJur — Hoje em dia a imprensa enfrenta mais ações criminais ou por danos morais?

Lourival J. Santos — Quando comecei a advogar para os meios de comunicação, mesmo após a Constituição de 88, era maior o número de ações criminais do que por dano moral. Cito um exemplo. Em 2000, a revista Placar, que assessorei, denunciou a máfia da Loteria Esportiva Foi uma reportagem polêmica. Depoimentos de pessoas ligadas ao futebol prestados à Polícia Federal, denunciando um vasto esquema de manipulação de resultados de jogos, foram publicados na revista . Contei mais de vinte ações criminais e apenas uma por dano moral. Com o tempo, o dano moral passou a ser preferido em relação a qualquer outro procedimento à disposição de pessoas envolvidas em publicação de imprensa.

ConJur — Como o senhor vê o relacionamento da imprensa com o Judiciário?

Lourival J. Santos — Não vejo e não pode haver conflito entre duas entidades tão fortes e tão necessárias à defesa da democracia e do Estado de Direito. Ainda mais com a qualidade de julgadores que temos em todas as instâncias. No Supremo Tribunal Federal, foram proferidos acórdão que são verdadeiras teses sobre a liberdade de expressão. É o caso de um julgamento recente sobre manutenção do sigilo da fonte pelo jornalista, cujo relator foi o ministro Celso Mello.


ConJur — E o que o senhor acha da cobertura que a imprensa faz do Judiciário?

Lourival J. Santos — Às vezes se percebe que o jornalismo comete seus pecadilhos, por falta de conhecimento jurídico, mas que são perfeitamente justificáveis. É compreensível, por exemplo, que um jornalista fale sobre roubo ao invés de falar sobre furto, que são figuras jurídicas diferentes. Podem existir falhas, como tudo na vida. O que não se admite, e deve ser punida, é a irresponsabilidade.

ConJur — De quem é a responsabilidade pelo que se publica, do jornal ou do jornalista?

Lourival J. Santos — Pela Lei de Imprensa, a responsabilidade penal é do jornalista que assina a matéria. Se a matéria não é assinada, o diretor de redação será responsabilizado. Na área cível, o entendimento é de que a ação pode ser contra a empresa que publicou a notícia e também contra o jornalista. Quanto aos pedidos de direito de resposta, estes deverão ser distribuídos contra a empresa jornalística.

ConJur — Aplica-se no caso o princípio da regressão?

Lourival J. Santos — Em meus vinte e poucos anos de advocacia, não tive conhecimento de nenhum pedido de regresso do dono da empresa contra o jornalista que escreveu a notícia. Mas pode.

ConJur — A legislação brasileira protege o sigilo da fonte?

Lourival J. Santos — Sim. A Constituição é clara. O artigo 5°, em seu inciso XIV, consagra o sigilo da fonte como direito fundamental do jornalista, dentro do Estado democrático. Faz parte dos direitos e garantias individuais e coletivos. Recentemente o Ministério Público quis quebrar o segredo da fonte de um jornalista. Talvez baseou sua pretensão em julgamento da Suprema Corte americana [que rejeitou recurso contra a prisão da repórter do The New York Times Judith Miller, presa por se recusar a revelar a fonte que lhe forneceu a identidade de uma agente da CIA.]. O Supremo Tribunal Federal afastou completamente a tese.

ConJur — O jornalista pode revelar segredo de Justiça?

Lourival J. Santos — Não pode. Não se determina segredo de Justiça porque sim, mas porque existem razões materiais e justificativas legais para tanto. A imprensa pode dizer que existe um processo em curso. Mas revelar o conteúdo do processo que está correndo sob sigilo de Justiça seria uma grave infração.

ConJur — Os grampos e escutas ilegais podem ser publicados?

Lourival J. Santos — Escutas ilegais já são ilegais pelo próprio princípio. Não se pode fazer jornalismo a partir do cometimento do delito.

ConJur — Mesmo que haja interesse público?

Lourival J. Santos — Às vezes, o que acontece é que a imprensa recebe informações, as publica e depois fica sabendo que essas informações foram obtidas de forma ilegal. Se a imprensa tem conhecimento de que a notícia é verdadeira e é de interesse publico é perfeitamente defensável a sua publicação, até porque não há como se instalar uma auditoria a cada notícia que lhe é revelada. O que não se pode permitir é que a imprensa cometa crimes de escutas ilegais, grampos telefônicos, como modo de colher informações e fazer jornalismo.

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